No passado dia 3 de Outubro, o Porto acordou de outra forma. Ou melhor, encontrou mais um marco possível de entendimento de mudança social nas esferas da cultura e do lazer e, do ponto de vista mais abrangente, da identidade e do projeto musical. Falo-lhes de
San Miguel Primavera Sound que, aqui, no Porto, ganhou nome de
Optimus Primavera Sound 2012; um festival de quatro dias, com um cartaz farto de concertos, a realizar-se no Parque da Cidade, com animações em diversas zonas do Porto, entre 7 e 10 de Junho próximo. A decorrer desde 2001 em Barcelona, o
San Miguel Primavera Sound é um evento de referência, a nível mundial, no panorama da música
indie, tendo alcançado os 120 mil espetadores na sua última edição em Junho passado.
A minha trajetória de vida e posicionamento científico têm-me ensinado a ler e até a acreditar na mudança social. Exige-se que pensemos na sua natureza dinâmica, num espaço-tempo alargado, na possibilidade de transformações nas condições das atividades e no âmbito das acções dos actores na intervenção nas estruturas sociais. O anúncio deste evento no Porto leva-me a identificar algumas dimensões de mudança social nos mercados da cultura e do lazer na sociedade portuguesa, associados à proliferação de festivais de música
pop rock na última década.
Os festivais têm-se vindo a caracterizar por flexibilidade, veemência e impacto. A flexibilidade da apresentação diversificada de projectos musicais e de actividades num espaço limitado de tempo. A veemência da espessura de actividades (audiovisuais, performativas, audição, execução musical, instalações, etc.) desenvolvidas no tempo e no espaço do festival. O impacto medido pelo alcance dos efeitos destes eventos a um nível interno (no próprio acontecimento), a um nível local (no concelho e cidade onde se realizam) e na programação e ocorrências de eventos congéneres. Portanto, as repercussões endógenas que podem incidir no reforço das actividades inovadoras no tocante à produção musical, na divulgação de novos projectos, na fidelização de públicos ou no seu alargamento inter-concelhio, regional, nacional ou mesmo internacional, são aspectos fundamentais de avaliação estratégica destes eventos. E isto, é tão mais verdade quando falamos do primeiro franchise de um festival em Portugal.
A nível exógeno, podem ter efeitos nas comunidades, na sua economia local e no desenvolvimento de programas formativos ligados ao som, luz, imagem. Ou até mesmo nas estruturas de recepção aos artistas e de aluguer de equipamentos. Aqui estão presentes algumas das tendências mais importantes de intervenção em matéria cultural: a organização por projecto e a intensa mercantilização dos domínios musicais, muito importante nos sectores de intermediação da produção, da distribuição e da promoção.
Todas as narrativas construídas a propósito da realização do Primavera Sound no Porto o representam como um importante canal de distinção musical. Isso leva a balizar o hype em torno deste evento, em torno de uma concepção da cidade antes e depois do festival, na compra desenfreada das primeiras mil entradas, no reavivar da luta ancestral entre Porto e Lisboa, na inscrição da cidade do Porto num roteiro internacional, na insistência na retórica indie associada ao Porto. Estaremos perante um espírito de enunciação em torno de uma marca que tem credenciais suficientes para mobilizar crenças? Aparentemente sim, todas estas ideias assentam na existência de uma fé implícita num nome (Primavera Sound, ATP,...). Aqui é o lugar simbólico mais que a sua realização efectiva que importa, é a promessa
do ser confirmada pela
fé que mobiliza e explica grande parte da efervescência que rodeou este anúncio. Assim, e porque os nomes ou as marcas são, então, uma epítome destes discursos, importa dizer que os festivais de música também são palcos por excelência de consumo além da música, desde a sua promoção às vivências no seu seio. Neste sentido, existe uma referência importante às sociabilidades afectivas proporcionadas pelos festivais como sendo tão ou mais importantes que as actuações das bandas. Também existe um entendimento que os festivais de música são palcos por excelência de um consumo de música mais alternativa e independente e, muitas vezes, constituem uma oportunidade única para ver determinadas bandas em território nacional.
Considerar o caráter social da música permite-nos perceber a importância de que os festivais de música se revestem e a prova é o estarmos a falar do
Primavera Sound. Sendo a música construída socialmente, os festivais de música podem ser vistos como constituindo momentos nos quais as pessoas, colectivamente, atribuem significado aos sons, transformando-os em música relevante. A música desempenha relevantes funções sociais que se reflectem na construção da identidade dos indivíduos, nas relações que desenvolvem e no modo como organizam o seu quotidiano. Assim, sendo os festivais momentos de consumo colectivo de música, são também cenários possíveis destas funções. Não podemos deixar de lembrar que apesar de a música
indie se definir pela sua autonomia relativamente à música comercial das massas, ela própria é alvo de comercialização e a sua ideia de autenticidade constitui também uma estratégia de
marketing num engodo permanente. Com tudo isto, o que significará para a cidade a realização deste festival? Será uma real mudança, ou esta estará marcada por uma reprodução de uma lógica usual de fazer política cultural? Será que poderemos falar de um Porto que se impõe a Lisboa em termos de oferta de eventos musicais de qualidade ou mais indies? Será um evento de impacto exógeno, de mero decalque de uma receita de sucesso? Incontornável, parece ser a sua inscrição num contexto de mudança da procura e oferta de eventos culturais e lúdicos em território nacional no andamento da última década.