segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A (IN) DETERMINAÇÃO DA IMAGEM



Nos últimos dias circularam pela imprensa diária algumas imagens do interior da Cimeira da Zona Euro de 26 de Outubro de 2011 e do frenesim das negociações complexas frequentemente bilaterais. O mundo do “por detrás do palco” é seguramente fascinante e ajudar-nos-ia a compreender decisões adiadas, compromissos e toda a série de desvios ao que nos pareceria um rumo mais racional.
Várias das imagens (fotos) mereceriam atenção. Em tom mais divertido, poderíamos isolar o olhar furtivo de Berlusconi dirigido à silhueta esbelta da Primeira Ministra Dinamarquesa recém- chegada ao palco da decisão que circulou em vídeo pelo You Tube. Mas a imagem mais forte é a que acompanha o lúcido artigo de Teresa de Sousa publicado no Público de domingo passado (30 de Outubro) (fotografia de Eric Feferberga –AFP), centrado no pós-cimeira e nas indefinições associadas (ver posts anteriores sobre esta matéria). A imagem tem múltiplas interpretações possíveis. José Luís Zapatero (?) é certamente um cavalheiro e o beija-mão da Senhora Merkel pode ter essa perspectiva. O olhar do Senhor Rumpuy é enigmático. Mas a inclinação de Zapatero (?) é tão marcada (que quase esconde o seu rosto) que a imagem de reverência suplanta claramente o cavalheirismo da saudação. A relação de poder que salta dessa reverência é tudo menos institucional. A ausência da imagem de Sarkozy mata qualquer ideia de directório Berlim-Paris. É mesmo uma zona euro alemã que transparece da crueza desta imagem.

SHOULD KNOW BETTER

Acaba de dar à estampa um livro lamentável sob vários pontos de vista: “Como os políticos enriquecem em Portugal – os casos de 15 ex-governantes que multiplicaram os rendimentos depois de saírem do Governo”, da autoria do jornalista António Sérgio Azenha e prefaciado por Henrique Neto (!). Trata-se, a meu ver, de um excelente contributo para alimentar as principais doenças de que padece a sociedade portuguesa, nomeadamente as tão bem retratadas por José Gil em “Portugal, Hoje: O Medo de Existir” (2004) e, em particular, no seu capítulo “Queixume, Ressentimento, Invejas”. Como a propósito referiu António Guerreiro: “Portugal é uma sociedade normalizada, onde o horizonte dos possíveis é extremamente pobre e onde a prática democrática encontra resistências ao aprofundamento.”

Não que não haja cidadãos que passaram pela política e que tenham enriquecido. Não que esse enriquecimento não possa ter estado associado a práticas e actividades menos próprias ou menos lícitas. Não que os números e factos apresentados não possam corresponder com exactidão a informação real e publicamente disponível. Não que o rigor e a transparência não devam ser exigíveis em acréscimo a quem desempenhe ou tenha desempenhado funções públicas.

Mas não, também, a confundir “alhos com bugalhos”, como seguidamente ilustro. O título escolhido pretende apontar para um contributo dirigido ao esclarecimento ou acaba, sobretudo, por apelar ao escândalo e ao “voyeurismo”? Não haverá uma diferença entre subir de rendimento (viver melhor) e enriquecer? Nesta perspectiva, falar em enriquecimento não corresponderá necessariamente a insinuar algo de outra natureza? Algumas das pessoas analisadas, assim como outras que ficam implicitamente referenciadas, não mereceriam análises minimamente mais detalhadas sobre quem são e de onde vieram, que competências possuíam ou que resultados apresentaram, até para ajudar a “separar o trigo do joio”?

Além de que se justificaria, numa sociedade marcada por claros indícios de corrupção e a viver uma crise grave (também cívica e moral), um pouco mais de exigência e de escalpelização do tema. Os políticos são todos, igualmente, “feios, porcos e maus”? E são os restantes cidadãos, entre empresários e contribuintes, exemplos comportamentais aos seus níveis de envolvimento? E onde radicam as grandes razões do problema que não numa esfera que ultrapassa largamente a dimensão estritamente pessoal? E porque se não refere como central o vergonhoso tratamento que continuadamente tem sido concedido à questão do financiamento partidário? E quais não foram os mais altos responsáveis que com tudo isto conviveram “distraidamente” ao longo dos anos? E porque se insiste, afinal, em empurrar o estado da democracia portuguesa para um grau abaixo de zero?

Há assuntos que merecem análise e o que ao tema deste livro subjaz é concerteza um deles. Mas não sem que objectividade e seriedade sobrelevem sobre fins comerciais e efeitos mediáticos ou, mesmo, sobre invejas, frustrações, ódios e vinganças. Não foi bonito ver Mário Crespo a salivar enquanto entrevistava o autor…

domingo, 30 de outubro de 2011

A 8ª de MAHLER E A AUTO-ESTIMA REGIONAL


Não tenho nem cultura nem formação musical que me permita escrever criticamente sobre a apresentação na Casa da Música da 8ª Sinfonia de Mahler pela Orquestra Sinfónica do Porto, ontem, sábado (29 de Outubro) e o que pode ter representado como performance musical de uma obra profundamente tocante.
Mas independentemente da qualidade intrínseca dessa prestação (vejam as críticas se elas aparecerem), dificilmente poder-se-ia ficar indiferente ao que o espectáculo pode ter representado do ponto de vista da afirmação nacional do projecto Orquestra Sinfónica do Porto. Pelo número de elementos que a 8ª implica (número de coros, solistas, intérpretes, complexidade, imagino, da direcção) e pelo aparato que representa num palco com as características do da Casa da Música, trata-se de um concerto que deixa marcas no colectivo a que ele assiste. A Casa da Música foi certamente um projecto controverso sobretudo na sua maturação. Mas o que tem derivado da sua prática já está muito para além dessa controvérsia. O projecto Orquestra Sinfónica do Porto está nessa linha e respira confiança à medida que as mais duras provas são suplantadas. Internacionalismo cosmopolita quanto baste na sua composição, capacidade de organização, reconhecimento visível por via de quem tem actuado neste espaço, o projecto ilustra bem o que o Porto (Norte) pode ser no contexto nacional. Por isso, por mera intuição e sem ter discutido esta ideia com nenhum dos presentes no evento, estou em crer que a auto-estima do colectivo presente foi significativamente estimulada. Quem diria que o intimismo quase divino de Mahler poderia ser um factor de auto-estima regional.

URBANISMO E SUSTENTABILIDADE


Na sequência do simpático convite da Associação dos Urbanistas Portugueses (www.aup.org.pt), estive na Covilhã, sexta-feira passada, a animar uma sessão do VIII Congresso Ibérico do Urbanismo dedicada ao tema da economia do (s) território (s) e da sustentabilidade. Trata-se de um tema que será seguramente uma preocupação recorrente deste blogue, já que se cruza com o coração da relação público-privado que nos traz à blogosfera. Significativamente, o tema do congresso apontava para um novo ciclo do urbanismo, alinhando por isso com o reconhecimento em várias frentes de que nada será como dantes após o rigor da travessia que nos espera.
Para além de rever alguns dos profissionais que têm interpelado a minha forma de ver a relação da economia com o território, fica uma sensação estimulante de ver um conjunto de profissionais e de universitários animados em reflectir sobre as margens de manobra do futuro possível e não dominados por uma perspectiva de desistência. Embora fortemente atingidos pelo ambiente restritivo geral e pela rarefacção do mercado de consultadoria e de investigação com financiamento público, encontrei porém um grupo profissional interessado no desenvolvimento de uma prática urbanística de contenção, de rigor e sobretudo deliberadamente à procura de ferramentas de planeamento para operacionalizar no terreno os conceitos de sustentabilidade. Utilizando uma metáfora que dominou a minha própria intervenção, vi profissionais mais interessados em protagonizar e favorecer uma” retirada estratégica” face ao modelo de afectação de recursos públicos das duas últimas décadas do que em contribuir para uma “retirada caótica”, tipo “salve-se quem puder”, a que o corte cego da despesa pública nos pode conduzir.
A operacionalização do conceito e de estratégias de sustentabilidade como ferramenta crucial de um urbanismo de contenção e de compactação dominou uma parte considerável de intervenções e debates. Entre as várias linhas de debate que foram abertas, há pelo menos uma que marca na minha perspectiva linhas de orientação a explorar mais activamente. Embora o pilar social da sustentabilidade tenha de merecer nas condições concretas da sociedade portuguesa uma atenção inventiva, a procura de um balanço equilibrado entre condições de emissão e de absorção de C02 esteve na mira de muitos dos participantes. E o que é mais relevante é que essa procura vem acompanhada de um urbanismo mais trans-disciplinar e transversal, diríamos mais holístico sem perder operacionalidade nas ferramentas que utiliza. Este é seguramente um tema de debate ao qual alguns dos colegas já registados neste blogue e que ainda não iniciaram as suas hostilidades dedicarão reflexões futuras. Como matéria que interpela frontalmente a economia será também por mim revisitada em próximas oportunidades.

sábado, 29 de outubro de 2011

OS CAMINHOS DA DÚVIDA


Impossibilidades de vária ordem determinaram que não pudesse aqui comentar os resultados da cimeira da Zona Euro da madrugada de 27 do corrente mês. Esta simples distância de dois dias entre essa comunicação e o dia de hoje é estranhamente suficiente para avaliar com mais rigor e desencanto a comunicação então realizada.
Parece ser cada mais evidente que, entre os sorrisos mais ou menos circunspectos dos líderes na fotografia final, com os quais podemos encontrar alguma correspondência nas reacções imediatas dos meios de comunicação, e o desenvolvimento e comentários nos dias seguintes, o desvio começa a ser preocupantemente mais significativo.
Analisando os materiais conclusivos que saíram da cimeira e os comentários mais ponderados que se lhe seguiram, ressalta em primeiro lugar que a natureza da declaração final começa por ser insuficiente para pesar em bom rigor a efectividade dos resultados atingidos. O aspecto que melhor ilustra essa insuficiência é a decisão do “haircut” de 50% na dívida grega. Afinal, o que a declaração consagra é o acordo com o representante da banca internacional neste processo (o Institute of International Finance), desenvolvendo-se agora a complexa gestão das participações “voluntárias” nesse processo. Se estive atento e compreendi bem, ainda ontem havia instituições bancárias nacionais que não sabiam concretizar o impacto real dessa decisão nos seus balanços. De uma decisão voluntária a um corte efectivo e involuntário haverá procedimentos complexos a considerar e do ponto de vista do impacto real essa “nuance” é mais relevante do que pode parecer. Depois, a solidez do sistema de protecção que o Fundo de Estabilidade Financeira pretende representar continua a ser fortemente tributário da solidez dos países que nele participam. Não pode ainda considerar-se como uma nova ameaça de alarme, mas alguns espíritos ficaram abalados pelos resultados da ida ao mercado da Itália após a cimeira.
Mas a cimeira nada contribuiu para dissipar os “caminhos da dúvida” gerados por toda esta situação. Todos esses caminhos vão dar a duas matérias cruciais: a incapacidade de reconsideração do papel do Banco Central Europeu e a não produção de soluções para acomodar na Zona Euro as performances divergentes de crescimento e de défices (excedentes) externos. Quanto ao primeiro, a declaração continua inamovível :”We fully support the ECB in its action to maintain price stability in the euro area”. Quanto ao segundo, o vazio é total e nessa medida muitos observadores consideram que a previsão de uma meta de 120% para o rácio grego Dívida/PIB continua a subvalorizar o impacto da austeridade no crescimento económico. No fim de contas, tanto esforço para estruturalmente as ameaças permanecerem.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

BEM PREGA FREI TOMÁS

“Estado fica dono do Europarque com um ‘buraco’ de 30 milhões deixado pela AEP”, escreve-se no “Jornal de Negócios” de hoje 27/10, com chamada de primeira página e assinatura do jornalista Rui Neves (http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=515149). Aqui está um excelente exemplo da “inconsistência institucional” – envolvendo governos, políticos, empresários, gestores, entidades de utilidade pública e outros – que tem vindo a caracterizar o Portugal democrático: dezasseis anos depois de pomposamente inaugurado pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva e pelo então presidente da Associação Industrial Portuense (hoje Associação Empresarial de Portugal, AEP) Ludgero Marques, o projecto – então proclamado “âncora”, “símbolo” e “exemplo” – aí está prestes a integrar o nosso depauperado/engordurado Estado!

Pelo caminho ficaram, no plano do mais público e notório, um forte contributo dos fundos comunitários à construção (sob a égide do então ministro do Planeamento Valente de Oliveira, que desde há anos desempenha funções de administração na AEP), um aval ao financiamento por um sindicato bancário assinado pelo então ministro das Finanças Eduardo Catroga, um mandatário do candidato Cavaco Silva à PR em 1996, pagamentos de juros e renegociações de prazos, tentativas diversas de solução junto de sucessivos Governos (nomeadamente do último Governo Sócrates), um negócio (aliás projecto PIN) de 850 milhões de euros com a multinacional TCN-TramCroNe a abortar entre acusações cruzadas, um novo Presidente da AEP a referir-se ao Europarque como “um disparate e “um flop’”, uma moratória da prestação de Abril e o previsível reconhecimento de incumprimento no final deste mês com as consequências de execução das garantias pela banca e inerente assumpção de responsabilidades pela esfera pública.


Eis uma inesperada ajuda ao “enriquecimento” do património nacional...

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

EUROPA ILUSTRADA

























Com a devida vénia à prestigiada revista britânica "The Economist", aqui fica uma dupla e complementar perspectiva do que há [Oct 15th 2011, "Charlemagne - The driver and the passenger" (http://www.economist.com/node/21532283) & Aug 20th 2011 - KAL's cartoon (http://www.economist.com/node/21526440)].

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

OBSERVADOR METROPOLITANO ACIDENTAL


Permitam-me que partilhe convosco uma experiência de observador metropolitano acidental.
Missão programada: recuperar artefacto informático imprescindível, deixado por esquecimento em acção de formação para funcionários da Administração Local em Oliveira de Azeméis. Distância: Matosinhos-Oliveira de Azeméis e volta (cerca de 120 Kms, percorrendo espaços fundamentais da aglomeração metropolitana do Porto a norte e a sul. Oportunidade: testar a estrutura viária de alto débito e testar a sustentabilidade de uma decisão pessoal.
O teste realizado envolveu a utilização de eixos fundamentais (A4, A3, ligações metropolitanas e a novidade A32 (Vila Nova de Gaia – Oliveira de Azeméis). Não tentem encontrar mapa de traçado desta última na NET, creio que ainda não existe, tamanha é a novidade do empreendimento.
Missão cumprida: cerca de 1 hora e meia, em condições difíceis de chuva intensa e vento fortíssimo, com troços de muito deficiente pavimento em termos de absorção de chuva, velocidade adequada, com reduzida companhia de tráfego (A32, particularmente).
Questões de sustentabilidade: no plano pessoal, será melhor evitar esquecimentos deste tipo ou encontrar fórmulas mais sustentáveis de recuperar artefactos perdidos; no plano das infraestruturas e da conectividade viária, sem conhecer em pormenor condições de concessão de alguns dos troços portajados percorridos (fundamentais para um cálculo mais abrangente), não deixa de ser um indicador de grande fluidez, em dia climaticamente adverso, concretizar uma missão deste tipo no coração metropolitano nortenho numa hora e meia.
O que me leva a uma reflexão a desenvolver em contributos seguintes. Há um consenso generalizado de que se avançou excessivamente em termos de conectividade viária de alto débito, não só pelas condições de insustentabilidade financeira que se antevêem, mas sobretudo pelo lastro de constrangimento que a opção representa do ponto de vista da procura de soluções de maior sustentabilidade no plano da conexão intra-metropolitana. Mas a dotação está aí. Como tirar partido da mesma em termos metropolitanos?

O DIA DA CIMEIRA: OUTRO PROLONGAMENTO?

(ilustração de Peter Schrank em
“The Economist”)

É já hoje a segunda parte da tal Cimeira dita decisiva para o futuro do Euro e talvez da própria União Europeia. O “Financial Times”, que de há meses/anos tem vindo a posicionar-se activa e profissionalmente sobre a matéria, acaba de voltar a oferecer-nos uma ilustração de jornalismo económico de alta qualidade. Sintetizo em dois parágrafos.

Há dois dias, Wolfgang Munchau (
http://www.ft.com/intl/cms/s/0/d89b0c32-fb51-11e0-8df6-00144feab49a.html) avisava que “Europe is now leveraging for a catastrophe”, preparando-nos para “o impensável” (“uma significativa probabilidade de que o euro não sobreviva na sua corrente forma”), para as possíveis consequências nefastas que decorrerão do acordo que os líderes europeus muito provavelmente alcançarão (sobretudo, “uma Facilidade Europeia de Estabilidade Financeira alavancada”) e para a aproximação de um “ponto de bifurcação” (a poucas semanas ou meses de vista) entre um colapso do euro ou a alternativa de os países se resignarem a massivas transferências formais de soberania.

Horas atrás, Martin Wolf (
http://www.ft.com/intl/cms/s/0/bd60ab78-fe6e-11e0-bac4-00144feabdc0.html) assinava uma Carta-Aberta ao novo Presidente do Banco Central Europeu (“Be bold, Mr Draghi, put out that fire”) apelando a uma opção pelo BCE em favor de uma salvação da Zona Euro (mesmo que desagradando aos falcões ortodoxos), valorizando os contributos teóricos de Paul De Grauwe (especialmente quanto ao desejável papel do BCE na crise), sublinhando que só o BCE conjuga responsabilidade institucional e poder efectivo para agir e terminando prosaicamente incentivador (“a sorte protege os audazes”).

Mais logo, algo virá certamente de Bruxelas via Berlim. Mas, “technicalities” à parte, tudo indica que irá continuar a ser esticada a “corda” de um tempo que não é infinitamente elástico. Enquanto os mais crentes perguntarão, ainda, se e quando uma qualquer lucidez europeia se irá fazer ouvir, os menos crentes perguntarão, tão-só, que peças do puzzle germânico estarão ainda em falta para que a “Europa alemã” (ver meu post de 14 de Outubro) dê definitivamente à costa…

terça-feira, 25 de outubro de 2011

À ESPERA DA CIMEIRA: NOVO INTERLÚDIO EUROPEU

A União Europeia (UE) mudou de natureza com o surgimento da Zona Euro. Ao que antes fora uma construção largamente política motivada pelos traumas de duas grandes guerras, e sucessivamente capaz de ir vencendo dificuldades e reforçando ambições, sucedeu a “troca desigual” (“the whole of Germany to Kohl, half the Deustche Mark for Mitterrand”) tornada viável pela implosão soviética e abrindo caminho a esse desafio máximo de uma união económica e monetária (UEM). “One market, one money”, eis aquela que foi a síntese alegadamente perfeita dessa “demasiado grande aventura” (The Economist, 1994) cujas exigências de sucesso pressupunham condições que dificilmente estavam – e cada vez menos vieram a estar – preenchidas.

Nesse clima optimista de há vinte anos, e embora reconhecendo-se politicamente díspar e economicamente fragmentada, a UE apresentava-se confiante ao ponto de prescindir de fazer opções entre aprofundamento e alargamento (escolhendo ambos!) e de deliberadamente querer ostentar os galões de campeã mundial da liberalização comercial externa (trocando, objectivamente, abertura de mercados de produtos industriais tradicionais pelos interesses de fabricantes de automóveis e aviões alemães e franceses e de importadores britânicos e holandeses!).

Empurrada pela afirmação de vontades políticas fortes e determinadas, a UE parecia então capaz de admitir ir ao ponto de se dotar de um orçamento comunitário significativamente reforçado e de patrocinar entretanto, com generosidade, o “catching-up” de parceiros menos sólidos (por via do lançamento de uma “coesão económica e social” compensatoriamente sólida!). Mas o facto é que esta Europa – que alguns bem-intencionados quiseram erroneamente ler como da “solidariedade” –, se existiu, não existe mais…

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

CONHECIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS: REBELDIAS


 
Cheguei ao mais recente livro de John Friedmann (Insurgencies: Essays in Planning Theory, Londres: Routledge, 2011) através de uma nota de Patsi Healey sobre o retorno aos fundamentos na teoria e prática do planeamento e não me arrependi. Em vários momentos do nosso percurso pela prática do planeamento e pela reflexão sobre essa prática, a obra de Friedmann nos interpelou, marcando a evolução dos paradigmas. Esta obra é preciosa para acompanhar esse percurso, pois a evolução dos contributos de Friedmann, tão bem documentada na sequência que organiza o livro, pode ser utilizada por cada um de nós (da minha geração de planeadores) para revisitar as perplexidades, ensinamentos e angústias da nossa própria prática.
Mas a invocação desta obra e dos contributos de Friedmann para a prática reflexiva do planeamento compreende-se também face ao âmbito deste blogue. Em vários dos estádios que marcaram a evolução do seu pensamento podemos encontrar laços relevantes com o espírito da reflexão que aqui pretendemos manter, centrada no ir além da relação tradicional entre público e privado. Destacaria, por hoje, a concepção do planeamento como a relação entre conhecimento e acção, integrando o resultado desta última como uma fonte de aprendizagem social regular. É esta concepção que tem marcado a relação entre muitos de nós e um vasto e diversificado conjunto de actores (públicos e privados), incluindo políticos. Inspirados por esta concepção, entretanto enriquecida por avanços no planeamento colaborativo ou participativo (de que o próprio Friedmann foi um pioneiro), recusamos hoje o estatuto de “políticos encapotados ou ocultos” ou de “profissionais acríticos ou abúlicos”.
Não apenas por mera intuição, mas como resultado da própria prática reflexiva, pode afirmar-se que os tempos que se avizinham vão ser um campo fértil para o desenvolvimento desta forma de encarar o planeamento. A transformação do conhecimento em input estratégico de novos processos para dar a volta necessária a todo este processo de fuga para o abismo alguém o terá de fazer.

domingo, 23 de outubro de 2011

GATO ESCONDIDO …


Enquanto que no ambiente non stop de reuniões e contra-reuniões em Bruxelas se pratica a vertigem do abismo de uma saída para o euro e projecto europeu, convém estar atento a documentos que vão sendo conhecidos e que vão dando conta da inconsistência interna da abordagem assumida para atacar a crise das dívidas soberanas. É verdade que o apagão das instituições europeias é preocupante, constituindo em si próprio um tema para futuras reflexões. Mas por agora as mensagens que transparecem de documentos de circulação restrita justificam alguma atenção.
Embora classificado de “strictly confidential” circula na NET um documento, “Greece: Debt Sustainability Analysis” (21 de Outubro de 2011), elaborado no âmbito da Comissão Europeia, que considero crucial para compreender o que poderíamos chamar a “revelação da inconsistência”. Aparentemente, o documento estará a ser tido em conta na vertigem de reuniões acima referida e visa dar alguma fundamentação à imposição de cortes da dívida grega a assumir pelo sector privado. Mas no meu entender o documento vale mais do que isso. Ele permite avaliar em que medida a incapacidade da estratégia mais ou menos punitiva concretizar os seus próprios objectivos se revela em toda a sua fragilidade, interiorizando a insustentabilidade do ambiente que vai criando. A abertura não pode ser mais eloquente: “Desde o quarto relatório de monitorização, a situação na Grécia evoluiu para o pior, com a economia a ajustar-se crescentemente mais por via da recessão e dos mecanismos associados de salários-preços do que por aumentos de produtividade determinados por reformas estruturais.” Esta é uma das ilusões que exige um combate persistente. De facto, a questão que está em causa é que uma terapia deste tipo tende a privilegiar os referidos mecanismos recessivos de ajustamento, sendo a miragem dos aumentos de produtividade uma espécie de publicidade enganosa.
A imprensa de hoje refere generalizadamente impressões captadas na esfera governamental sobre a precária interacção entre o que se vai impondo em Portugal e o que se vai discutindo na vertigem das reuniões de Bruxelas. Considerando que a ortodoxia declarada da equipa económica do Ministério das Finanças aparentemente acredita nas “virtualidades” da terapia, não é difícil imaginar o impacto em Portugal de uma eventual mudança ou ajustamento de rumo ditado pela situação da Grécia. Se a comunicação da estratégia não tem sido famosa, imagine-se o que não será um cenário em que a abordagem punitiva é desacreditada pelo “ter de ser” dos factos.

sábado, 22 de outubro de 2011

À ESPERA DA CIMEIRA: INTERLÚDIO EUROPEU

Ensinei Teoria da Integração Económica a centenas de alunos. Apliquei muito desse “second best” teórico ao estudo do nosso espaço europeu de referência, sobretudo em períodos que largamente coincidiram com momentos áureos desse desafio integrador que já passou a meia-idade. Falei-lhes das “quatro liberdades”, do “mercado interno europeu” e das expectativas supervenientes em termos de eficácia na afectação dos recursos, coerência macroeconómica, coesão social e equilíbrio na repartição dos ganhos que adviessem. Não esqueci de lhes referir quanto ligados sempre historicamente estiveram homogeneização mercantil e unificação monetária, nem que a união política seria a natural evolução a culminar este processo.

Mas penitencio-me hoje do muito que ou não enfatizei suficientemente ou subestimei prospectivamente. Em especial: de quanta perturbação estava escondida na coexistência de diferentes leituras ou “várias velocidades” (desde logo, a perspectiva inglesa de uma “zona de comércio livre” versus a perspectiva franco-alemã de uma “união monetária”), de quanto incompleta estava ainda a consumação do mercado único em 1992 (sobretudo em matéria de harmonização fiscal), de quanto a união monetária em construção se afastava dos requisitos que a teoria ensinava exigíveis (zona monetária óptima), de quanto a união monetária careceria de uma equivalente união económica (uma efectiva coordenação de políticas e a introdução de mecanismos compensatórios, impactando sobre a qualidade e quantidade do orçamento comunitário), de quanto a autonomia do BCE teria de se articular adequadamente com a definição de objectivos de política, de quanto poderia ir ficar próxima uma necessária negociação de transferências de poder decisional mesmo sem explícitas transferências de soberania, de quanta resistência iriam necessariamente encontrar quaisquer avanços consequentes para a união política.

Aqui ficam as devidas adendas e corrigendas…

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

NO FIO DA NAVALHA


“No fio da navalha” é uma expressão que alguns economistas que trabalham a incerteza utilizam frequentemente para descrever situações de instabilidade sem perspectivas de auto-correcção. Esta é a expressão que me ocorre para descrever sucintamente os dias mais recentes em matéria de validação ou interpelação do processo em curso de aplicação do memorando de resgate financeiro.
A multiplicação de opiniões sobre a eventual incapacidade da estratégia restritiva cavar a sua própria sepultura, isto é, comprometer os próprios objectivos que definiu constitui parte do fio da navalha em termos de base de apoio à estratégia em curso. É sobretudo relevante essa multiplicação entre os que afirmam não haver outra solução que não a de suportar a penosidade do processo. Ilustração representativa desta subtil mudança de contexto: Pacheco Pereira, na Quadratura do Círculo de ontem, citando em termos gerais: “é preciso questionar os meios, porque as opções podem, em última análise, comprometer o próprio cumprimento das metas”.
Outra fonte de fio de navalha é a forma como o processo em curso é visto pela imprensa internacional, designadamente na área da informação económica. Esta perspectiva é relevante porque toda a cacofonia nacional em torno desta questão se esbate do ponto de vista externo. Mas há referências que vale a pena ponderar. Peter Wise, correspondente do Financial Times em Lisboa, refere no Eurozone Crisis: live blog que “parece praticamente certo que Portugal acompanhe a Grécia e a Espanha na incapacidade de cumprir a meta de défice público para este ano”. São dois tipos de rombos na credibilidade da estratégia em curso.
Se acrescentarmos a estes factores a incerteza que resulta de não ser possível equacionar a credibilidade interna da estratégia em curso dissociadamente do rumo da solução para a zona euro (onde a incerteza se multiplica a todo o momento), então o fio de navalha parece ser a metáfora certa para descrever a situação dos últimos dias em matéria de resgate financeiro.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

TENTAÇÕES SALARIAIS

A via punitiva da estratégia que inspira o pós-memorando da TROIKA teve, entre ontem e hoje, o seu processo de aceleração (um rolo compressor …) perturbado por algumas inesperadas contrariedades, leia-se críticos, opositores ou Pilatos de nova geração, para além claro está da esperada e compreensível indignação ou revolta. O tema da inequidade dos sacrifícios (ou mesmo de violação do princípio da equidade fiscal) ocupou o impacto mediático da proposta de orçamento. Numa vertigem crucificadora, muitos clamaram pela multiplicação dos cordeirinhos para o sacrifício, exigindo o que poderíamos designar de equidade na penosidade. Não é esta vertigem que me desperta o comentário de hoje.
Interessa-me, pelo contrário, concentrar-me naqueles que, numa onda determinada não por considerações de equidade, mas por considerações de cátedra sobre a competitividade da economia portuguesa, clamam pela redução salarial no sector privado, agora não por via fiscal mas por uma espécie de choque de oferta, visando a recuperação dos ambicionados níveis de competitividade. Curiosamente, não me apercebi que o sector empresarial (associativismo ou empresários prestigiados) propriamente dito estivesse muito representado nesta redução ao absurdo. Vi sim a expor-se gente que se tem mantido bastante afastado da esfera empresarial transaccionável, escondido numa perspectiva abstracta da empresa e incapaz de raciocinar nas condições concretas em que as empresas concretas exercem a sua actividade.
A tentação do choque salarial reflecte bem a resiliência em alguma classe pensante do universo dos baixos salários como condimento histórico de competitividade. Impor um choque salarial em condições de manifesta queda do rendimento disponível real não apenas do emprego público mas de toda a população empregada conduz-nos a paradigmas de competitividade que a economia portuguesa tem interesse crucial em erradicar. Sobretudo após uma década de forte ajustamento de uma parcela significativa do tecido empresarial português, este regresso à tentação transformar-se-ia no sinal mais errado que poderia ser dado às estratégias empresariais. O choque salarial em baixa constituiria o pior incentivo à inovação empresarial e, em contexto recessivo imposto pela terapia punitiva, tenderia a agravar a já explosiva destruição de emprego na produção de não transaccionáveis. Esta vertigem do sacrifício é doentia e neste caso nem as preocupações de equidade a podem minimizar.

REGRESSO A ORIGENS POUCO REMOTAS

Sobre oportunidades

Aquando da concretização da nossa adesão comunitária (1986), a “oportunidade de mudança” parecia óbvia para um país tão longamente viciado em fechamento e protecção: uma dupla e virtuosa importação, quer de regras e padrões de funcionamento inéditos (“chicote”) quer de fundos avultados para favorecer/financiar a internalização modernizadora dos mesmos (“cenoura”).


Tempos mais tarde, Cavaco posicionou-se perante a moeda única como correspondendo à “nova oportunidade” de um factor externo catalisador de desenvolvimento para uma sociedade pretendida em concorrência aberta e sem muletas (desvalorização da moeda) no quadro europeu e global. Já com o “guterrismo” à porta, uma “oportunidade imperdível” – a possível participação de Portugal no primeiro pelotão da União Económica e Monetária (UEM) – viria a impor-se; e, depois, a concretizar-se.

Chegou então a chamada “década perdida” que – sem prejuízo de nela se singularizar o período socrático por alguns corajosos arremedos reformistas (nomeadamente em termos de dimensões específicas como comportamentos individuais, dignidade cidadã e condição social) – nos fez desfrutar de uma vida à sombra dos benefícios (ou, mais propriamente, dos mal-entendidos) de tantas oportunidades.

No presente (mau) momento da nossa vida colectiva, e de forma só paradoxal na aparência, Carlos Costa veio inteligentemente recuperar a hipótese de uma “grande oportunidade” que foi ficando para trás: a de “romper com o ‘ancien régime’, romper com a ideia que a sociedade civil captura o Estado e o Estado captura a sociedade civil”; incluindo, em coerência, uma das suas “damas” de sempre: a mudança de cultura empresarial. Sobra a dúvida pertinente de saber se o “austeritarismo”, que impiedosamente nos assaltou entretanto, não irá destruir as condições objectivas e subjectivas permissivas da exploração dessa potencial oportunidade…

Sobre inconsistências

Naqueles tempos, já Silva Lopes pregava no deserto quanto à desigual repartição dos ganhos da UEM entre países, regiões, sectores e empresas, sublinhando que “um país como Portugal estará numa posição ainda mais desfavorável relativamente a choques adversos do que as regiões mais deprimidas dos prósperos Estados-membros” e apontando riscos agravados “se o papel das forças do mercado não for complementado por políticas redistributivas” (designadamente, um maior peso do orçamento comunitário e uma facilitação dos movimentos laborais dentro da UE).

Mas, lá como cá, o peso da inércia levou a melhor. Como as convicções que Ernâni Lopes, embora sobrevalorizando a componente estratégica e subvalorizando os custos do ajustamento/financiamento, tão exuberantemente exprimiam:
(i) “Quanto à UEM, jamais os doze Estados membros acabarão de se preparar, seja qual for o calendário. As economias ajustar-se-ão ‘post facto’. [Pensar num esforço prévio] é um exercício puramente burocrático-cartesiano.(…) [Para efeitos burocráticos, os indicadores de convergência nominal] servem, mas ninguém lhes vai dar uma excessiva atenção”;
(ii) “Porque [‘se se fizer a mini-UEM’] Portugal ficaria fora do fluxo central dos acontecimentos [‘é um problema de estratégia global que está em jogo’] e não há nada que saia mais caro do que isso”.


Acrescem, em linha directa com o que foi dito, as luso-agravantes que toda esta história veio subsequentemente a observar. Com efeito, e fazendo uma comparação entre Portugal e Espanha, o relatório EMU@10 sugere que “ambos os países estavam expostos a muito diferentes choques cambiais de partida associados à entrada na zona euro”. Porque as taxas de conversão irrevogavelmente fixadas em 1998 – 166 pesetas por euro e 200 escudos por euro – corresponderam a desvalorizações próximas, respectivamente, de 30% (peseta) e 12% (escudo) face às cotações prevalecentes no início da década de 90 (128 pesetas e 179 escudos por euro); sendo ainda que as evoluções registadas desde os anos 90 se traduziram igualmente em desfavor da economia portuguesa – a taxa de câmbio real efectiva da Espanha estará ao nível dos inícios dos anos 90 e a de Portugal terá conhecido uma apreciação de 20%...

O ANÚNCIO DE UMA NOVA REVOLUÇÃO?

No passado dia 3 de Outubro, o Porto acordou de outra forma. Ou melhor, encontrou mais um marco possível de entendimento de mudança social nas esferas da cultura e do lazer e, do ponto de vista mais abrangente, da identidade e do projeto musical. Falo-lhes de San Miguel Primavera Sound que, aqui, no Porto, ganhou nome de Optimus Primavera Sound 2012; um festival de quatro dias, com um cartaz farto de concertos, a realizar-se no Parque da Cidade, com animações em diversas zonas do Porto, entre 7 e 10 de Junho próximo. A decorrer desde 2001 em Barcelona, o San Miguel Primavera Sound é um evento de referência, a nível mundial, no panorama da música indie, tendo alcançado os 120 mil espetadores na sua última edição em Junho passado.

A minha trajetória de vida e posicionamento científico têm-me ensinado a ler e até a acreditar na mudança social. Exige-se que pensemos na sua natureza dinâmica, num espaço-tempo alargado, na possibilidade de transformações nas condições das atividades e no âmbito das acções dos actores na intervenção nas estruturas sociais. O anúncio deste evento no Porto leva-me a identificar algumas dimensões de mudança social nos mercados da cultura e do lazer na sociedade portuguesa, associados à proliferação de festivais de música pop rock na última década.

Os festivais têm-se vindo a caracterizar por flexibilidade, veemência e impacto. A flexibilidade da apresentação diversificada de projectos musicais e de actividades num espaço limitado de tempo. A veemência da espessura de actividades (audiovisuais, performativas, audição, execução musical, instalações, etc.) desenvolvidas no tempo e no espaço do festival. O impacto medido pelo alcance dos efeitos destes eventos a um nível interno (no próprio acontecimento), a um nível local (no concelho e cidade onde se realizam) e na programação e ocorrências de eventos congéneres. Portanto, as repercussões endógenas que podem incidir no reforço das actividades inovadoras no tocante à produção musical, na divulgação de novos projectos, na fidelização de públicos ou no seu alargamento inter-concelhio, regional, nacional ou mesmo internacional, são aspectos fundamentais de avaliação estratégica destes eventos. E isto, é tão mais verdade quando falamos do primeiro franchise de um festival em Portugal.

A nível exógeno, podem ter efeitos nas comunidades, na sua economia local e no desenvolvimento de programas formativos ligados ao som, luz, imagem. Ou até mesmo nas estruturas de recepção aos artistas e de aluguer de equipamentos. Aqui estão presentes algumas das tendências mais importantes de intervenção em matéria cultural: a organização por projecto e a intensa mercantilização dos domínios musicais, muito importante nos sectores de intermediação da produção, da distribuição e da promoção.

Todas as narrativas construídas a propósito da realização do Primavera Sound no Porto o representam como um importante canal de distinção musical. Isso leva a balizar o hype em torno deste evento, em torno de uma concepção da cidade antes e depois do festival, na compra desenfreada das primeiras mil entradas, no reavivar da luta ancestral entre Porto e Lisboa, na inscrição da cidade do Porto num roteiro internacional, na insistência na retórica indie associada ao Porto. Estaremos perante um espírito de enunciação em torno de uma marca que tem credenciais suficientes para mobilizar crenças? Aparentemente sim, todas estas ideias assentam na existência de uma fé implícita num nome (Primavera Sound, ATP,...). Aqui é o lugar simbólico mais que a sua realização efectiva que importa, é a promessa do ser confirmada pela que mobiliza e explica grande parte da efervescência que rodeou este anúncio. Assim, e porque os nomes ou as marcas são, então, uma epítome destes discursos, importa dizer que os festivais de música também são palcos por excelência de consumo além da música, desde a sua promoção às vivências no seu seio. Neste sentido, existe uma referência importante às sociabilidades afectivas proporcionadas pelos festivais como sendo tão ou mais importantes que as actuações das bandas. Também existe um entendimento que os festivais de música são palcos por excelência de um consumo de música mais alternativa e independente e, muitas vezes, constituem uma oportunidade única para ver determinadas bandas em território nacional.

Considerar o caráter social da música permite-nos perceber a importância de que os festivais de música se revestem e a prova é o estarmos a falar do Primavera Sound. Sendo a música construída socialmente, os festivais de música podem ser vistos como constituindo momentos nos quais as pessoas, colectivamente, atribuem significado aos sons, transformando-os em música relevante. A música desempenha relevantes funções sociais que se reflectem na construção da identidade dos indivíduos, nas relações que desenvolvem e no modo como organizam o seu quotidiano. Assim, sendo os festivais momentos de consumo colectivo de música, são também cenários possíveis destas funções. Não podemos deixar de lembrar que apesar de a música indie se definir pela sua autonomia relativamente à música comercial das massas, ela própria é alvo de comercialização e a sua ideia de autenticidade constitui também uma estratégia de marketing num engodo permanente. Com tudo isto, o que significará para a cidade a realização deste festival? Será uma real mudança, ou esta estará marcada por uma reprodução de uma lógica usual de fazer política cultural? Será que poderemos falar de um Porto que se impõe a Lisboa em termos de oferta de eventos musicais de qualidade ou mais indies? Será um evento de impacto exógeno, de mero decalque de uma receita de sucesso? Incontornável, parece ser a sua inscrição num contexto de mudança da procura e oferta de eventos culturais e lúdicos em território nacional no andamento da última década.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

ERRO MACRO OU MACRO ERRO?


Por tradição de estratégia pessoal de pesquisa, sempre gastei mais pestanas a procurar incongruências nos paradigmas económicos dominantes do que a navegar nos universos alternativos de investigação. Trata-se de uma simples opção pessoal de afectação de tempo e não tem implícita nenhuma avaliação pejorativa da qualidade do universo alternativo, que é, tal como o primeiro, heterogéneo. Tenho aplicado esta discutível opção a tentar encontrar brechas relevantes na abordagem dominante à crise das dívidas soberanas e à sua contígua expressão da crise da zona euro. E, diga-se, que mais amplamente do que seria de antever, essas brechas têm vindo a mostrar-se cada vez com mais nitidez, vindas de dentro, por outras palavras de origens e testemunhos com uma audiência francamente mais ampla do que as críticas exteriores, por mais estruturadas que estas se apresentem.
Não resisto nesta orientação a destacar neste espaço de reflexão o mais recente artigo de Wolfang Münchau no Financial Times (Outubro 16, 2011: www.ft.com) sobre a incapacidade de proposta de uma solução consistente para a zona euro. O argumento que preside a esta crítica que considero demolidora assenta afinal nas ideias básicas iniciais que transmitimos aos nossos alunos de economia quando contrapomos o micro e o macro. As 17 economias da zona euro quando perspectivadas individualmente são pequenas e abertas. A zona euro é uma economia de grande dimensão e fechada. Toda a política económica actual estaria a ser conduzida com base num erro macro crucial: não ter em conta o impacto global das terapias de austeridade recomendadas para cada uma das economias. O somatório de políticas macroeconómicas de 17 pequenas economias abertas tenderá a produzir uma solução indesejável para a grande economia fechada que, no seu conjunto, representam. Pela simplicidade do que está aqui em causa estaremos perante um macro erro de proporções e custos sociais e económicos incalculáveis. E o que é mais grave (o economista alemão não morre de amores pela Comissão Europeia) é que esta última institucionaliza o macro erro e vende-nos a fábula de que uma contracção fiscal pode ser expansionista, não afectando decisivamente o crescimento a curto prazo. E demolidor quanto baste: “os economistas europeus são daqueles que não desistem de uma teoria com base em evidência empírica. (…) Não ficaria surpreendido que a consequência de um programa de austeridade falhado fosse um outro programa de austeridade”.
Quem diria que citar o Financial Times poderia ser tão estimulante e demolidor. Mas, por detrás das evidências empíricas que não convencem os economistas europeus (leia-se da burocracia europeia ou ao seu serviço), não há apenas números, há pessoas com capacidade de reacção …

DERIVAS EUROPEIAS

(ilustração de Vlahovic em “Polska The Times”,
(ilustração de Arend van Dam em “Het Financieele
Dagblad”, http://fd.nl)
A questão do Estado, sempre

A crise financeira internacional e, sobretudo, as suas multifacetadas efervescências europeias, ao mesmo tempo que vieram abalar visivelmente a fé do “mainstream” fundamentalista no poder auto-regulador dos mercados – uma ideia a que o insuspeito Dani Rodrik se refere como devendo ser “abandonada de uma vez por todas” –, trouxeram também uma revalorização do público, assim fazendo regressar a questão primeira das nossas sociedades – a questão do Estado, do seu papel, das suas funções, da sua qualidade, da sua dimensão – ao centro das atenções que lhe cabe.

No caso específico da Europa, a confusão tem vindo a prevalecer sobre o esclarecimento. “Quem disse que a Europa é obrigatória?”, perguntava Paulo Portas já em 1988. E foram anos de debate e interrogações como as seguintes: salvaguardar o “projecto europeu” e o seu “modelo social”, reforçando um e reformando o outro, ou assumir a sua “inexequibilidade”/”insustentabilidade”? E repensá-los a partir e no quadro do Estado-nação ou numa perspectiva dele menos subsidiária porque obrigatoriamente mais vasta?

A crise trouxe novas urgências: para uns, “a Europa não é um país” (Pacheco Pereira) ou “só no âmbito das democracias nacionais é que os projectos europeus podem adquirir sentido e realidade” (Rui Ramos); para outros, “não há democracia europeia porque não há Estado europeu” (Boaventura Sousa Santos) ou “a União Europeia, como projecto político de paz e desenvolvimento sustentável, tem de caminhar no sentido federal, ou seja, ‘os Estados Unidos da Europa’" (Mário Soares). Modelos mais recuados (entre uma “não união de transferências” e uma resignação a arquitecturas menos ambiciosas), modelos institucionalmente imaginativos (entre variadas formas de “várias velocidades” e lógicas confederativas) ou federalismo como “única via” (em versões improvisadas, como as do “nouveau moment fédérateur” de Barroso, em versões contidas, como as de “um federalismo orçamental mitigado ao lado do federalismo monetário” de Cavaco, ou nas versões “puras e duras” de muitos dos europeístas de sempre)? Um imenso mar de implicações que talvez nunca venhamos a conhecer…
Fim de linha?

Como vai toda esta “esquizofrenia” europeia terminar? Em bom rigor, ninguém o saberá dizer. Nem mesmo o Dr. Doom (Nouriel Roubini), que se diz ter previsto a crise imobiliária nos Estados Unidos contra a maioria dos restantes analistas. A prosseguir esta persistente navegação à vista, a ponto de se ter guindado Trichet a “salvador do Euro”, o “filme” não terá um final feliz – citando avulsamente das últimas semanas: “no good choices remain” (Martin Wolf), “it is hard to find reasons for optimism” (Paul Krugman), “we are moving closer towards an involuntary break-up” (Wolfgang Munchau).

Elenco perguntas frequentes: a Grécia vai falir? De forma ordenada ou desordenada? Há alternativas de reestruturação? E vai a Grécia sair do Euro? Que mecanismos de contágio se poderão produzir? A Itália já é o “novo epicentro da crise”? “Já não estamos a lidar com uma crise apenas na periferia da zona euro”? A melhor forma de aumentar a competitividade e o crescimento nos países da periferia do euro é o regresso às moedas nacionais? A Europa está próxima do seu “momento Lehman”? O “núcleo duro” franco-alemão tem solidez? Que instituições podem/devem assumir possíveis instrumentos de solução? “A zona euro encaminha-se para a fractura”? É o fim do Euro?

Termino com pedaços de sensatez, em nome de um “milagre” que ainda possa contrariar o que Krugman anuncia como um “desastre impecável”: “as medidas de austeridade são contraproducentes” (Dani Rodrik), está a criar-se “uma nova geração de eurocépticos” (Jean-Claude Juncker), o BCE deve ser o “garante de última instância” (Paul De Grauwe), “a Alemanha está entre os países que mais beneficiam do mercado interno [europeu] e do euro” (Van Rompuy), os “países detentores de margem de manobra” têm de a utilizar de forma eficaz (Teodora Cardoso), é necessária uma “trajectória credível de ajustamento” (Martin Wolf), importa “romper o ciclo vicioso que ata a crise bancária à dívida” (El País)...