sábado, 15 de outubro de 2011

CRIME, DISSERAM


Em torno do pedido de “ajuda externa”

Procurei reconstituir a cena do “crime”, isto é, Sócrates a tentar evitar o recurso à “ajuda externa”. Só a facilidade com que fazemos “prognósticos no fim do jogo”, por um lado, e com que queremos subservientemente agradar, por outro, tornou este um tema fora de destaque/interesse. Valorizo aqui os danos internos e externos (“custos simbólico-reputacionais e custos sociais”, como disse Vital Moreira) que tal recurso nos trouxe e que duradouramente nos irão acompanhar. Quem não vê, como diz o povo, que nos perderam o respeito? E quem não vê, hoje, que a intervenção externa abriu a “caixa de Pandora” de um caminho incontrolável de retrocesso do País?

Avivando memórias, portanto: em Fevereiro/Março, havia quem considerasse (com Ricardo Costa…) que “a estratégia [esperar que a UE acordasse] bateu certo” e que o FMI (como se dizia então...) já não viria; em pleno mês de Março, estando em negociação aberta uma versão mais “light” do FEEF, foi conseguido o aval da chanceler alemã e da dupla Comissão Europeia/Banco Central Europeu para que fosse dispensado o recurso à “ajuda externa” (contra a apresentação de um novo programa de consolidação orçamental). Como então explicava Teresa de Sousa: “Portugal está disposto a aceitar o novo contrato para o euro, com tudo o que isso implica, mas não o quer fazer como um país falido”; e até Rui Ramos referia: “Sócrates quer dinheiro sem parecer que está a ser ‘ajudado’; Merkel quer ‘ajudar’ sem parecer que está a dar dinheiro.”

Neste quadro, percepcionando elementos de um “clima irrespirável” e a saturação de muitos cidadãos em relação à figura de Sócrates, ademais preso nas teias de uma “entourage” partidária medíocre e sem ideias nem energia, o aparelho laranja decidiu jogar a sua cartada: “ou há já eleições para primeiro-ministro ou, o mais provável, é termos eleições para a presidência do PSD” (Marco António Costa, 4 de Março)! Trapalhadas e politiquices à parte, o “chumbo” do PEC IV veio a ser o instrumento mais à mão. E o “golpe de Estado” fez-se, com a colaboração presidencial e o aplauso das agências de rating e dos “mercados”.

Formulo, assim, uma hipótese impopular mas possível: ao invés do carácter criticável ou gravoso de outras suas alegadas práticas e opções – entre escândalos pessoais, autoritarismos injustificados, desgaste de instituições, permeabilidades grupais, efabulações propagandistas, opções inconsequentes e contabilidades criativas –, Sócrates poderá não ter estado tão mal quanto se quis fazer crer naquela sua “obstinação” de “defender Portugal”!

Ninguém poderá dizê-lo com certeza, mas até talvez tudo pudesse ter acabado por se saldar pelo resultado que temos à vista; de facto, muito estava periclitante e bastante era contingente. Mas, além de o esforço e a forma não deverem ser desmerecidos, importará sublinhar, sobretudo, quanto as evoluções dos últimos meses (Espanha e Itália, em especial) esclarecem sobre a vantagem da preservação de galões europeus no “braço-de-ferro” entre Estados e mercados que também estava, e continua a estar, em causa. E, mesmo com resultado finalíssimo não muito diverso, a manutenção das “costas direitas” teria sido, provavelmente, a condição primeira para garantirmos mínimos de independência e dignidade…


E agora?

Agora, não haverá mesmo outro caminho de curto prazo que não seja o que se vai fazendo: obedecer e cumprir, por imperativos de financiamento. O resto são, em face da triste agenda que temos pela frente, variações de detalhe – ora encaradas por alguns como meras questões de estilo ora consideradas por outros como atitudes mais ou menos humilhantes/degradantes – sobre sermos “bons alunos”, respeitadores dos grandes, gratos aos credores, diferentes dos gregos e eficazes na austeridade.

Dito isto, não confundamos os imponderáveis dessa agenda com excessos de zelo (?) tipo ser “mais troikista que a troika” ou “troikista inteligente”, basicamente castradores de quaisquer réstias de margem de manobra que pudéssemos conseguir salvaguardar para uso futuro. Afinal, Passos explicou em Março que “votamos contra [o PEC IV] não porque se foi longe de mais, mas porque não foram suficientemente longe” – quantos mais PECs ainda faltam? Um assunto a merecer mais esclarecimento(s)…

Não confundamos, também, os imponderáveis dessa agenda com virtuosismos de um Governo alegadamente reformador mas que, de mexida pontual em mexida pontual (conjuntura), vai criando uma realidade sem nexo (estrutura). Porque “não se estão a cortar as gorduras do Estado, não se está a racionalizar e a tornar mais eficaz o Estado, está-se apressadamente a tentar ir buscar dinheiro a tudo o que mexe para garantir as metas do défice” (Pacheco Pereira); ou, por outras palavras: “Isto não é neoliberalismo. Isto é vender as pratas.” (Vasco Pulido Valente). Além de que convirá não esquecer, mais do que tudo, que o problema central “é a economia, estúpido!” Outro assunto a merecer mais esclarecimento(s)…

Não confundamos, ainda, os imponderáveis dessa agenda com unanimismos (in)desejáveis e fundamentalmente limitadores da democracia, isto é, da construção de alternativa. Cabe à actual oposição mais do que apenas privilegiar o “politicamente correcto” do “ser responsável” (Assis), confundindo-se na lama que alimenta a desesperança. Cabe-lhe, isso sim, ”pensar Portugal hoje” e – não repetindo erros passados, como os de se enredar numa dominância de lógicas mediático-gestionárias sobre os princípios (o erro da “terceira via”) ou os de evitar a abordagem política de matérias dogmaticamente impostas como “intocáveis” (o “dossier” da abertura incondicional ao comércio mundial, p.e.) – não se deixar acantonar num “sem-proposta” alegadamente justificado pelas condicionantes financeiras…

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