sábado, 31 de agosto de 2019

GOLPE E CONTRA-ATAQUE

(Ilias Makris, http://www.kathimerini.gr)

Já só faltava mais esta! Depois de tudo quanto de impensável assolou o Reino Unido desde o malfadado referendo do Brexit, a começar pelo próprio e seu resultado e pela teimosa e titânica resistência de Theresa May até à sua derrota final, tinha ainda de surgir esse indefinível e inenarrável BoJo para nos conseguir voltar a surpreender e inquietar com um infame ataque à mais prestigiada democracia parlamentar do mundo – diga-se de passagem que com a cumplicidade da velha monarca Isabel II – em nome de ambições e interesses muito próprios (para dizer o mínimo). As reações de protesto atingiram o máximo de sempre, das ruas das grandes cidades até mesmo ao quase pleno do espetro político – juntando um Jeremy Corbyn tardiamente focado a Philip Hammond ou John Major, para só citar três nomes –, abrindo um enorme espaço de expectativa quanto ao que poderá ocorrer nos dias e semanas mais próximos. Aceitam-se apostas!



sexta-feira, 30 de agosto de 2019

APRENDIZAGEM POLÍTICA

(Com a devida vénia ao Fernando Campos)


(Acabo de ver a entrevista de Mário Centeno à cada vez mais elegante e profissional Ana Lourenço e, contrariando o que poderia pensar no início da legislatura, hoje não tenho dúvidas de que o ministro das Finanças pode ser considerada a principal mais-valia que este governo transporta para o ato eleitoral de 6 de outubro. Uma evidência mais para demonstrar algo que penso já há muito tempo: não menosprezem a aprendizagem dos agentes políticos em plena governação.)

Recordo que, em plena formação do governo da geringonça e no seguimento da plataforma de preparação primeiro do programa do PS, depois do Governo, ninguém questionou a competência técnica de Mário Centeno. Mesmo sabendo que Centeno é um economista com prestígio académico internacional inequívoco na área da economia do trabalho e não nas finanças, a sua exposição pública no processo de preparação do programa do governo com adaptação do modelo macro com que o PS se apresentou às eleições permitiu clarificar que não seria por falta de competência técnica que o ministério das Finanças abriria brechas.

A questão que se levantava na altura e eu próprio alinhava com essas reticências era a de saber se Centeno tinha estaleca para suportar o desgaste que o cargo de ministro das Finanças representa, sobretudo num país em que a cada cavadela aparecia uma minhoca mais problemática em matéria de situação da banca. É curioso notar que a própria presença física de Centeno se foi alterando à medida que a governação da geringonça ia avançando. Dos tempos em que Centeno parecia um aluno no meio de mestres até à segurança dos últimos tempos, bem visível na entrevista de hoje. Talvez a passagem a presidente do Eurogrupo tenha sido o clique de autoconfiança que o ministro precisava para se impor definitivamente no seio do governo e na presença mediática.

Podemos questionar a estratégia orçamental de Centeno, a perspetiva férrea de controlo da despesa pública construindo o que futuramente pode vir a ser designado como a arte das cativações e o défice de investimento público que só agora e para o próximo horizonte de programação irá ser superado. Podemos questionar tudo isso. Mas alguém consegue imaginar o governo de Costa sem a presença tutelar e temperadora de Mário Centeno e de um ministério das Finanças como o que foi observado nesta legislatura?

Mário Centeno entra assim para a minha galeria de casos notáveis de aprendizagem política, como mais um exemplo da reflexividade prática que uma boa inteligência pode capitalizar em termos de aprendizagem. António Costa terá compreendido bem cedo a importância dessa presença tutelar. O que também vai bem com a sua intuição política. Na política nacional, para todas as Mortáguas e Catarinas deste mundo tem de existir um Centeno no apogeu das suas capacidades e competências. Para nossa segurança e conforto.

CONTE II

(Pierre Kroll, http://www.lesoir.be)

(cartoon de Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)

Boas notícias chegam de Itália por via do afastamento governativo de um personagem inteiramente não recomendável como Salvini. Apesar de sabermos que a nova coligação entre “Movimento Cinco Estrelas” e o “Partido Democrático” tem muito de contranatura e dificilmente sobreviverá por muito tempo com a popularidade de Salvini em estranha mas forte alta. Será aproveitar para que as forças do mal possam ganhar pontos enquanto o acordo dura, para o que sempre contribuirão a credibilidade adquirida por Giuseppe Conte e a sua zanga irredutível com Salvini. Será Roberto Gualtieri o ministro das Finanças? Tenho sobre isso mixed feelings, sobretudo considerando o seu papel essencial no grupo S&D do Parlamento Europeu...

BANCOS MAUS


Um gráfico extremamente útil para evidenciar o que foi ocorrendo desde a crise financeira de 2008 em matéria de bancos maus (bad banks). De onde retiro, entre muitos outros hipotéticos elementos de leitura, quatro pontos essenciais: (i) o buraco que emergiu do rigor alemão (designadamente por via dos dois momentos de aflição do Deutsche Bank, traduzidos num cúmulo de 413 mil milhões de euros no respetivo book value, mas também os 176, 87 e 38 mil milhões registados no Hypo Real Estate, no WestLB e no Commerzbank); (ii) a dimensão do estouro ocorrido no país de origem da crise (especialmente o Bank of America e o Citigroup com 1183 e 450 mil milhões de euros, respetivamente); (iii) o significativo peso das dominantes imparidades britânicas na Europa (designadamente os 376, 292 e 143 mil milhões de euros no RBS, no Lloyds e no Barclays); (iv) a pequenez relativa (4,4 mil milhões) do nosso BES enquanto banco mau, apesar do tanto mal que tal causou às nossas débeis economia e sociedade. Dá que pensar e mostra o muito que há ainda para explorar!

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

ALARME



(De quando em vez torna-se imperioso trazer a terreiro editoriais do Economist pelo significado que apresentam e pelo alcance das denúncias que veiculam. O Economist não é uma revista qualquer, independentemente do seu posicionamento ideológico que o tem. A suspensão do Parlamento Britânico é um desses temas. Esperaria pelo menos em Londres uma reação do tipo da que se tem registado em Hong-Kong e não estou a forçar a nota)

Apenas a citação: 

“Esta semana temos duas capas relacionadas. Na Grã-Bretanha, onde Boris Johnson anunciou que suspenderia o Parlamento por cinco semanas a partir de meados de Setembro, pelo que perguntamos quem é que agora pode parar um BREXIT sem acordo. O sentido de inevitabilidade acerca do não-acordo, cultuivado pelos extremistas que aconselham Mr. Johnson é falso. A União Europeia está contra esse resultado, a maioria dos Britânicos também; o Parlamento já votou contra a ideia. Quando os deputados regressarem ao trabalho na próxima semana, terão uma fugaz oportunidade para impedir uma calamidade nacional indesejável. O amordaçamento imposto por Johnson ao Parlamento tornou claro por que razão o terão de fazer. A manobra de Mr. Johnson é legal mas leva as convenções constitucionais ao limite. A sua maquinação é apenas um exemplo do cinismo que está a roer as democracias Ocidentais – e que constitui o foco da nossa capa para o resto do mundo. As democracias são geralmente pensadas para morrerem à mercê do cano de uma arma, de um golpe ou de uma revolução. Por estes dias, a probabilidade é serem estranguladas lentamente em nome do povo. As políticas de longa existência como as da Grã-Bretanha e América não irão transformar-se em estados de partido único, mas a sua democracia mostra já sinais de declínio. Quando a podridão começa, é extremamente difícil pará-la”.

Zanny Minton Beddoes, Editor-in-Chief

UM APONTAMENTO DE BASE AMAZÓNICA



Há matérias de tal modo transversais e óbvias numa lógica de interesse da Humanidade que entendo tornarem desnecessário que aqui procurasse desmontar as barbaridades e bestialidades proclamadas por alguns irresponsáveis que ocupam postos-chave na atual política mundial, a começar pelo mais perigoso de todos – o presidente americano Donald Trump –, a prosseguir na Europa com o perigoso primeiro-ministro britânico Boris Johnson e alguns chefes de governo populistas e antidemocráticos e a acabar no tão previsível quanto ignorante e perigoso presidente brasileiro Jair Bolsonaro.

No que a este diz respeito, tornaram-se mundialmente notórias as lamentáveis histórias cruzadas que por estes dias fomos ouvindo e conhecendo a propósito da tragédia que assola o “maior pulmão do mundo” que é a floresta amazónica, designadamente no tocante à cumplicidade das autoridades brasileiras com os interesses dos madeireiros e outros agentes privados, divulgação e denúncia internacionais essas que desaguaram numa aparência de recuo face às declarações e posições iniciais (a culpa é dos ambientalistas, o assunto não é novo e teve particular dedo dos seus antecessores ou o Brasil é soberano e dispensa ajudas externas) por parte do dito presidente – que, ademais, quis arvorar-se publicamente em macho de origem latina, atirando-se a Macron e à situação política interna francesa enquanto dirigia grosseirices indecentes à sua mulher Brigitte, assim ratificando a perfeição da imagem utilizada por Seixas da Costa quanto a um “mimetismo tropical de Trump”.

(Bruno Aziz, http://atarde.uol.com.br)

(João Montanaro,http://folha.uol.com.br)

OS FANTASMAS DA YIELD CURVE



(Imagino que pelas sessões, corredores e refeições de Jackson Hole no Wyoming a reunião de bancos centrais tenha amplamente discutido o tema do comportamento anómalo recente da chamada yield curve americana. Para além dos fantasmas recessivos que a inversão da curva traz consigo, o que me parece importante destacar é o dilema que ele coloca ao banco central americano, aliás como o bem identifica David Glasner no Uneasy Money.)

Comecemos por explicitar o que é a Yield Curve (YC).

A YC não é mais do que a representação gráfica das taxas de juro (rendimento), representadas no eixo vertical, que um dado investidor estima obter para diferentes maturidades de empréstimo, representadas no eixo horizontal. A YC pode ser interpretada como um meio de medir o modo como o investidor avalia o risco de diferentes maturidades de empréstimos que possa conceder.

Normalmente, os títulos com maturidades de curto prazo, digamos a três meses, estão associados a rendimentos (yields) mais baixos, sugerindo um risco menor do que o associado a maturidades mais longas, por exemplo, 10 ou 30 anos. Assim, uma YC considerada normal significará que, para uma economia a crescer a um ritmo regular com inflação estável, os investidores esperam ser melhor remunerados para maturidades mais longas, associando a estas últimas um maior risco.



Em regra, poderá dizer-se que uma YC normal tenderá a manifestar-se em tempos “normais”. Ora sabemos que, embora possa discutir-se a velha questão de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (This time will be different) se desta vez as coisas são diferentes ou apenas uma réplica do passado, os tempos que correm, particularmente no universo financeiro, estão longe de poder considerar-se “normais”.

Uma forma expedita de o verificar consiste em representar graficamente o modo como varia ao longo do tempo a diferença entre os yields de longo prazo (10 ou 30 anos) e de curto prazo (com grande variabilidade de escolha da maturidade que represente o curto prazo, 3 meses ou 1 ano por exemplo). Em tempos de normalidade, essa diferença será relativamente estável ou até ligeiramente crescente. 
 



O que vemos entretanto nos gráficos respetivamente do Financial Times e da Bloomberg (a abrir o post) é tudo menos essa normalidade. A diferença entre os rendimentos que os investidores estimam obter a longo prazo e a curto prazo contrai-se decisivamente à medida que caminhamos para a atualidade, a ponto de poder ser inclusivamente negativa, significando uma avaliação de risco estranhamente mais acentuada para o curto prazo. O que significa, por outras palavras, que a YC se apresenta invertida.


Recordo aqui que a projeção de yields muito baixos para maturidades de longo prazo já aqui neste blogue foi referenciada como um indicador da chamada estagnação secular, um dos temas que mais tem atraído a minha atenção neste espaço, na esteira dos contributos seminais de Lawrence Summers.

A entrada em cena de uma YC invertida faz normalmente a delícia de analistas económicos e financeiros. A inversão da YC pressagia a emergência de recessões, podendo com algumas reservas e cautelas ser apresentada como um “leading indicator” (indicador avançado) das mesmas.

Do que tenho lido em matéria de explicações para a YC americana ter passado recentemente de um simples achatamento para uma completa inversão, a prosa de David Glasner no Uneasy Money é a que me parece mais robusta (link aqui). A inversão da YC ocorre segundo Glasner quando a economia manifesta uma inequívoca preferência por liquidez seja porque a política monetária atravessou um período de forte restrição ou porque se formaram expectativas de que esse comportamento restritivo tenderá a manter-se durante um período considerável. Compreendo a reflexão de Glasner quando ele chega à conclusão de que a política monetária americana não produziu recentemente nada de substancial que explique essa voracidade pela liquidez. Já há algum tempo que o FED anunciou que não prosseguiria a sua política de subida regular e gradual da taxa de juro.

O que pode então justificar a procura pela liquidez?

A única explicação plausível é a onda de profunda indeterminação provocada pelo belicismo comercial de Trump e pela antecipação dos efeitos devastadores que uma guerra comercial destrutiva pode provocar. Glasner é particularmente arguto quando estabelece a diferença entre o que se depara hoje ao FED e o que aconteceu no início da década de 2000, com os rumores de que a administração Bush iria desencadear uma intervenção militar no Iraque. Neste último caso, tratava-se de uma decisão política, manifestamente exógena à ação do Banco Central. Hoje, porém, a inversão YC acontece porque uma descabelada política comercial externa está a provocar na economia americana uma profunda indeterminação, anunciando uma enorme procura de liquidez a curto prazo.

Não resisto a citar a parte final do post de David Glasner, pois ela é de uma clarividência que gosto de associar a este espaço, trazendo para ele pensamento fora da caixa:

O FED enfrenta, por isso, um dilema cruel. Deve mitigar, reduzindo taxas de juro, os efeitos de políticas que aumentam a incerteza, atuando consequente como um facilitador dessas políticas, ou deve manter-se firme e recusar o caucionamento dos efeitos de políticas que são elas próprias a causa da incerteza cujos efeitos destruidores se pede ao FED que mitigue? Este é o tipo de dilema que Arthur Burns, num contexto relativamente diferente, uma vez referiu como “a agonia da Banca central”.

Percebe-se agora como Trump sempre manifestou vontade de ter um governador do FED à sua medida e semelhança. Até agora, Jay Powell, o governador, tem conseguido manter alguma distância. Mas este dilema é preocupante.

E de novo a independência dos bancos centrais vem a terreiro. Por muito que pense que nos tempos que correm a ortodoxia monetária está nos seus limites e a política fiscal tem de regressar ao universo da estabilidade macroeconómica, o exemplo americano mostra o que pode representar de sinistro a existência de um governador do FED lacaio do Trumpismo. Será que temos de aguentar mais um mandato deste pirómano da instabilidade mundial?