quinta-feira, 8 de agosto de 2019

A ASSEMBLEIA SELVAGEM



(Mesmo à distância de 44 anos o exercício da história contemporânea é uma tarefa com grandes exigências. O programa passado na RTP 3 (com dois episódios) sobre a alegada Assembleia Selvagem do MFA do 11 de março constitui uma bela peça de televisão e constará justamente dos arquivos da democracia portuguesa. No material recolhido percebe-se de novo a particularidade da revolução de abril e os brandos costumes em que fomos educados.)

Todos nós que tivemos seja uma relação direta, indireta ou simplesmente de observadores como cidadãos temos dificuldade em construir uma representação coerente dos acontecimentos. Eles foram de facto demasiado vertiginosos, aconteceram numa sucessão intensa de peripécias e de protagonistas pelo que mesmo fazendo um esforço pacificador de memória. A sequência 28 de setembro, 11 de março e 25 de novembro foi de arrasar corações. A história que hoje se conhece do ataque do 11 de março ao RAL 1 em Lisboa é rocambolesca, aventando-se mesmo a hipótese de que a história da “matança de Março” que terá precipitado os acontecimentos possa ter sido lançada deliberadamente para suscitar a resposta da direita militar, obrigando-a a colocar a cabeça de fora. Quem a lançou não se sabe com clareza, mas na reportagem a que nos referimos o nome do KGB chegou a ser aventado, algo de paradoxal pois aparece também a embaixada da Alemanha metida ao barulho.

Os dois programas que passaram recentemente na RTP3 tiveram como foco a célebre Assembleia do 11 de março, reunião informal e de conteúdo eminentemente revolucionário já que não é também clara a orientação que determinou a sua realização e à qual, num ato de extrema lucidez, o Presidente Costa Gomes assistiu para a enquadrar na estrutura de poder que estava então constituída. Como enquadramento e contextualização da referida reunião informal do MFA, o programa recuperou materiais preciosos de arquivo sobre a preparação (é de muito boa vontade chamar preparação ao processo) do ataque ao RAL 1. Nesse material, é possível confirmar duas coisas: a existência assumida do rumor da matança de março e a mais completa impreparação do ataque, que envolvia em plano o avanço da Cavalaria a partir de Santarém e depois, em alternativa, o ataque dos paraquedistas e de dois helicópteros.

Curiosamente, tinha bem gravada na minha memória a cena do reencontro entre os militares de Dinis de Almeida do RAL 1 e os revoltosos paraquedistas. No meio do que poderia ter sido uma tragédia real, a cena do reencontro entre os dois grupos de militares tem algo de caricato e muito da guerra do inesquecível Solnado. E ainda mais caricata o desfecho com toda a gente, revolucionários e revoltosos a darem vivas a Portugal e à revolução de abril.

O que se percebe bem é que os acontecimentos do 11 de março foram o acelerador efetivo da esquerdização e radicalização extrema da revolução, se bem que o ambiente de transição para essa radicalização não transpareça com toda a clareza da referida assembleia informal. Numa certa perspetiva, a dita Assembleia é relativamente contida e muito bem conduzida pelo Presidente Costa Gomes, não tendo muito de selvagem como a designação o poderia sugerir. É verdade que há a questão do pedido de fuzilamentos para os revoltosos e também a crítica violenta à ação do recentemente falecido e então Ministro da Administração Interna Costa Brás. Mas o que parece resultar da audição do registo áudio da assembleia é que a invocação de que o revoltoso de Beja Coronel Varela Gomes não foi fuzilado pelo então regime ditatorial terá funcionado na assembleia como um alerta decisivo para a ideia não ter passado daí. É verdade que a assembleia do 11 de março não deixou de ser radical. Conduziu à nacionalização da banca e determinou a institucionalização do MFA no Conselho da Revolução. Mas também permitiu que vencesse a tese de que as eleições para a Constituinte deveriam realizar-se, conforme aconteceu, na data prevista. O que é uma prova de maturidade revolucionária e de profundo enraizamento democrático do movimento.

Mas o que me parece ser um material precioso é o relacionamento existente entre o depositário da gravação (outro ponto de interrogação não desvendado), o Capitão de Mar-e-Guerra Almada Contreiras e Vasco Lourenço. O próprio Almada Contreiras não consegue explicar ter sido ele o depositário da fita da gravação da longa assembleia do 11 de março. Depreende-se que Almada Contreiras estaria próximo das posições do PCP, a ponto de nos acontecimentos do 25 de novembro ter sido preso por Vasco Lourenço, já então associado ao grupo dos Nove e no qual o saudoso Melo Antunes foi responsável pelo facto do 25 de novembro não ter erradicado da vida política portuguesa o PCP. Só a colaboração entre Contreiras e Lourenço permitiu a reconstituição da gravação da assembleia e aquele diálogo e compreensão mútua permanente representa a meu ver o que foi a revolução portuguesa.

A título de curiosidade e a propósito do pedido de fuzilamento para os revoltosos, que envolveu algumas tomadas de posição mais radicais em algumas unidades, como o regime de Engenharia, há na reportagem da RTP 3 um testemunho marcante de alguém com quem tenho há longo uma relação de amizade profissional, o Jorge Abegão responsável técnico pelo COMPETE há já longos anos e que muito prezo. O testemunho de Abegão é relevante pois ele presencia uma reunião no regimento de Engenharia em que o oficial Cabral e Silva, então adjunto de Vasco Gonçalves, realiza uma intervenção crucial para matar à nascença o comunicado mais radical (na reportagem apontado à UDP) que apontava para os referidos fuzilamentos.

A peça da RTP 3 é de uma grande qualidade, contenção e rigor. Ela tem no seu interior um valioso material pedagógico que deveria ser trabalhado com os mais novos como peça de história contemporânea. Ela é crucial para compreender o nosso inestimável “nós cá somos todos amigos”, as nossas inépcias organizativas e sobretudo o caldo do qual brota o nosso regime democrático e constitucional.

Não sei se foi do período de férias mas raras vezes assisto a um programa de televisão com o prazer com que recordei as peripécias da assembleia selvagem.

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