(Mesmo à distância de 44 anos o exercício da história
contemporânea é uma tarefa com grandes exigências. O programa passado na RTP 3 (com
dois episódios) sobre a alegada Assembleia Selvagem do MFA do 11 de março constitui
uma bela peça de televisão e constará justamente dos arquivos da democracia
portuguesa. No material recolhido
percebe-se de novo a particularidade da revolução de abril e os brandos
costumes em que fomos educados.)
Todos nós que tivemos seja uma relação direta,
indireta ou simplesmente de observadores como cidadãos temos dificuldade em
construir uma representação coerente dos acontecimentos. Eles foram de facto demasiado
vertiginosos, aconteceram numa sucessão intensa de peripécias e de protagonistas
pelo que mesmo fazendo um esforço pacificador de memória. A sequência 28 de setembro,
11 de março e 25 de novembro foi de arrasar corações. A história que hoje se conhece
do ataque do 11 de março ao RAL 1 em Lisboa é rocambolesca, aventando-se mesmo
a hipótese de que a história da “matança de Março” que terá precipitado os
acontecimentos possa ter sido lançada deliberadamente para suscitar a resposta
da direita militar, obrigando-a a colocar a cabeça de fora. Quem a lançou não
se sabe com clareza, mas na reportagem a que nos referimos o nome do KGB chegou
a ser aventado, algo de paradoxal pois aparece também a embaixada da Alemanha
metida ao barulho.
Os dois programas que passaram recentemente
na RTP3 tiveram como foco a célebre Assembleia do 11 de março, reunião informal
e de conteúdo eminentemente revolucionário já que não é também clara a orientação
que determinou a sua realização e à qual, num ato de extrema lucidez, o Presidente
Costa Gomes assistiu para a enquadrar na estrutura de poder que estava então constituída.
Como enquadramento e contextualização da referida reunião informal do MFA, o programa
recuperou materiais preciosos de arquivo sobre a preparação (é de muito boa
vontade chamar preparação ao processo) do ataque ao RAL 1. Nesse material, é
possível confirmar duas coisas: a existência assumida do rumor da matança de março
e a mais completa impreparação do ataque, que envolvia em plano o avanço da
Cavalaria a partir de Santarém e depois, em alternativa, o ataque dos
paraquedistas e de dois helicópteros.
Curiosamente, tinha bem gravada na minha memória
a cena do reencontro entre os militares de Dinis de Almeida do RAL 1 e os revoltosos
paraquedistas. No meio do que poderia ter sido uma tragédia real, a cena do
reencontro entre os dois grupos de militares tem algo de caricato e muito da
guerra do inesquecível Solnado. E ainda mais caricata o desfecho com toda a
gente, revolucionários e revoltosos a darem vivas a Portugal e à revolução de abril.
O que se percebe bem é que os acontecimentos do
11 de março foram o acelerador efetivo da esquerdização e radicalização extrema
da revolução, se bem que o ambiente de transição para essa radicalização não
transpareça com toda a clareza da referida assembleia informal. Numa certa
perspetiva, a dita Assembleia é relativamente contida e muito bem conduzida
pelo Presidente Costa Gomes, não tendo muito de selvagem como a designação o
poderia sugerir. É verdade que há a questão do pedido de fuzilamentos para os
revoltosos e também a crítica violenta à ação do recentemente falecido e então
Ministro da Administração Interna Costa Brás. Mas o que parece resultar da audição
do registo áudio da assembleia é que a invocação de que o revoltoso de Beja
Coronel Varela Gomes não foi fuzilado pelo então regime ditatorial terá
funcionado na assembleia como um alerta decisivo para a ideia não ter passado daí.
É verdade que a assembleia do 11 de março não deixou de ser radical. Conduziu à
nacionalização da banca e determinou a institucionalização do MFA no Conselho
da Revolução. Mas também permitiu que vencesse a tese de que as eleições para a
Constituinte deveriam realizar-se, conforme aconteceu, na data prevista. O que é
uma prova de maturidade revolucionária e de profundo enraizamento democrático do
movimento.
Mas o que me parece ser um material precioso é
o relacionamento existente entre o depositário da gravação (outro ponto de
interrogação não desvendado), o Capitão de Mar-e-Guerra Almada Contreiras e
Vasco Lourenço. O próprio Almada Contreiras não consegue explicar ter sido ele
o depositário da fita da gravação da longa assembleia do 11 de março. Depreende-se
que Almada Contreiras estaria próximo das posições do PCP, a ponto de nos
acontecimentos do 25 de novembro ter sido preso por Vasco Lourenço, já então
associado ao grupo dos Nove e no qual o saudoso Melo Antunes foi responsável pelo
facto do 25 de novembro não ter erradicado da vida política portuguesa o PCP. Só
a colaboração entre Contreiras e Lourenço permitiu a reconstituição da gravação
da assembleia e aquele diálogo e compreensão mútua permanente representa a meu
ver o que foi a revolução portuguesa.
A título de curiosidade e a propósito do pedido
de fuzilamento para os revoltosos, que envolveu algumas tomadas de posição mais
radicais em algumas unidades, como o regime de Engenharia, há na reportagem da
RTP 3 um testemunho marcante de alguém com quem tenho há longo uma relação de
amizade profissional, o Jorge Abegão responsável técnico pelo COMPETE há já longos
anos e que muito prezo. O testemunho de Abegão é relevante pois ele presencia
uma reunião no regimento de Engenharia em que o oficial Cabral e Silva, então
adjunto de Vasco Gonçalves, realiza uma intervenção crucial para matar à
nascença o comunicado mais radical (na reportagem apontado à UDP) que apontava para
os referidos fuzilamentos.
A peça da RTP 3 é de uma grande qualidade,
contenção e rigor. Ela tem no seu interior um valioso material pedagógico que
deveria ser trabalhado com os mais novos como peça de história contemporânea. Ela
é crucial para compreender o nosso inestimável “nós cá somos todos amigos”, as
nossas inépcias organizativas e sobretudo o caldo do qual brota o nosso regime democrático
e constitucional.
Não sei se foi do período de férias mas raras
vezes assisto a um programa de televisão com o prazer com que recordei as peripécias
da assembleia selvagem.
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