sábado, 3 de agosto de 2019

O DIÁRIO



(Embora comparativamente com outros escritos de maior fôlego se trate de reflexões menores, o Diário de Vasco Pulido Valente no Público continua a representar um olhar imperdível sobre o país profundo. Depressivo, pessimista, pode ser, mas são reflexões que não devemos ignorar se pretendermos recolher e sistematizar o que se vai dizendo sobre o tempo longo do país)

VPV não pretende enganar ninguém. Continua fiel ao “seu” (aquele que investigou mais profundamente) passado histórico português, ao seu pessimismo depressivo sobre as maleitas estruturais do país, vertendo aqui e ali uma ponta de maior veneno, de maior ou menor elitismo. São escritos contextualizáveis com facilidade, até porque nesta fase da sua vida dificilmente lhe poderemos associar uma agenda oculta que vicie a interpretação do que escreve.

Sou dos que aprendi a fazer essa contextualização e a ganhar a distância necessária ao estilo da personagem. Mas tenho de reconhecer que se pretendermos reconstruir o modo como as interpretações do tempo longo português têm evoluído teremos de integrar nessa síntese a perspetiva azeda e amarga de VPV.

Do Diário desta semana retenho a referência correspondente ao dia 28 de julho (link aqui):

As televisões têm dedicado grande parte do seu tempo a discutir o mercado de transferências. O futebol português precisa para subsistir de vender jogadores, o que é uma bela metáfora do país. Hoje vendemos jogadores; amanhã venderemos físicos, biólogos, economistas ou engenheiros de sistemas. A nossa pobreza já nos levava a vender tudo: as praias e a cozinha. Era inevitável que acabássemos a vender pessoas”.

A metáfora das transferências do futebol é poderosa. E, de facto, pode ser considerada uma metáfora do país na medida em que ela se organiza em torno dos desafios gigantescos que se colocam a Portugal do ponto de vista da melhoria de qualificações, sobretudo superiores e avançadas, que temos vindo a construir. Há quem tenha dificuldade em compreender que a melhoria de qualificações que o país tem desenvolvido não é sinónimo imediato e sem problemas de empregabilidade. Durante alguns períodos da nossa história recente, foi a administração pública o destino de uma percentagem muito significativa de jovens licenciados. Mas a renovação etária da administração pública não é tarefa fácil, atendendo a que as contas públicas estão sob vigilância e também ao problema de que a distribuição de recursos humanos da administração pública está longe de ser a mais equilibrada. Conhecemos as reservas e resistência a uma alocação territorialmente mais equilibrada de recursos humanos nas administrações do Estado.

Quer isto significar que a parte de leão da melhoria de qualificações terá de se entender com o setor empresarial privado, mesmo admitindo que o chamado terceiro setor e o social em particular esteja a cumprir uma função muito relevante na absorção de melhores qualificações. Ora, a relação da melhoria de qualificações com o setor empresarial privado enfrenta um fator de mediação que é crucial, o das remunerações salariais. E aqui, embora possam apresentar-se exemplos em que esse problema não existe, já que algumas atividades pagam acima da remuneração contratual dada pelo mercado. Há dias, em diálogo com um colega de trabalho acerca de matérias relacionadas com o Alentejo, fazia-se referência aos baixos salários que o setor do turismo paga neste momento nessa região. A título ilustrativo, falava-me de uma técnica que trabalhava no setor e que trocou com vantagem a sua posição pela de caixa numa grande superfície. É problemático fazer destes exemplos prova de tendências mais vastas. Mas o setor do turismo pela sua emergência e peso na nova afetação de recursos da economia portuguesa acaba por ter uma enorme influência na fixação dos níveis de salário médio.

Pelas implicações dinâmicas que acarreta, a evolução da estrutura salarial na economia portuguesa representa talvez o seu maior desafio, até numa perspetiva de retorno do avultado investimento que tem sido realizado em capital humano.

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