segunda-feira, 19 de agosto de 2019

MAL DE ESPÍRITO

(The Grumpy Cat)


(Reflexões um pouco azedas sobre a greve dos motoristas transportadores de matérias perigosas. O comentário político incompetente e incapaz de realizar uma crítica robusta e consistente à ação governativa encontrou um truque fácil para o fazer, o da denúncia dos tiques antidemocráticos dessa ação e o de a associar ao momento eleitoral. Já não há pachorra para tanta preguiça intelectual)

O caráter azedo desta crónica não resulta, esclareço desde já, nem do regresso ao trabalho (as férias de um reformado no ativo serão sempre equívocas e com mixed feelings), nem da vontade de defender a ação do governo atual e dos ministros mais diretamente envolvidos na gestão política da greve que marcará o mês de agosto. Julgo manter a distância crítica necessária apesar de me identificar com o seu referencial político e com a solução da maioria parlamentar à esquerda. O que me irrita profundamente é a preguiça intelectual que, em vez de prosseguir uma consistente revisão crítica da ação do Governo (e há matéria para tal com algum esforço de elaboração de ideias) dá com burros na água face à inépcia da oposição (que vai desde o caso confrangedor de Santana Lopes a falar com grevistas aos sobressaltos do acordar de Rui Rio, passando pelo desaparecimento em parte incerta da Madame Cristas, fartinha de mandar lamber sabão, um travo de erotismo?, aos seus correlegionários.

Ora relembremos o contexto em que surge a greve dos motoristas de matérias perigosas, nunca esquecendo o mês de abril que, não planeado, gerou as incomodidades que todos conhecemos. A greve foi anunciada por tempo ilimitado o que por si só inspira respeito e cautela pelas suas consequências. O que não é fator despiciendo. Mais ainda, a greve é promovida por um sindicato sobre o qual se gerou uma grande unanimidade de não respeitar os princípios basilares do sindicalismo organizado e dirigido ou representado (a confusão sempre existiu) por um personagem volátil, errático, que teve o desplante de proclamar perante os seus representados de que agora ou nunca, ou seja, como há eleições ou vai ou racha. Para complicar ainda mais as coisas, a matéria em disputa apontava para um horizonte económico em que ninguém minimamente rigoroso conseguirá antecipar para a economia portuguesa. Assim, depois de um eco generalizado sobre comentários agressivos sobre o sindicato e o seu porta-voz, eis que quando o governo se organizou para controlar o processo e adotou uma via mais musculada do que em abril, emergiram em catadupa os tiques de esquerda tão preocupados com a situação económica (flagrantemente desrespeitosa em termos salariais e de condições de trabalho) dos trabalhadores. Voltaremos daqui a pouco a essas condições salariais e de trabalho, que nos devem preocupar mas que é outra conversa, não a que os cândidos democratas vieram a terreiro para zurzir na ação governativa.

Se o governo não tivesse planeado musculadamente a situação e deixado a situação evoluir para o descalabro cairiam então Carmos e Trindades, já que teríamos algo de similar a Pedrogão e suas consequências. Nessa altura, tudo cairia em cima do governo e rapidamente se esqueceria a imprevisibilidade do sindicato e a sua deficiente avaliação da situação.

A política de fixação de serviços mínimos, a mobilização das forças de segurança e a requisição civil parcial são modalidades musculadas que não podem transformar-se em prática corrente. Mas, caros amigos, o problema surge quando o sindicato do Pardal deixou cair na praça pública a ideia de que iriam gerar o caos, abrindo candidamente o espaço para o planeamento antecipado por parte do Governo, metendo-se na boca do lobo e tendo que recuar como seria previsível a partir do momento em que ficou isolado.

Ora os nossos comentadores de serviço, irritados pela ausência do espaço público da comunicação da oposição, particularmente de um Rui Rio, que acordou algumas vezes sobressaltado do cochilo em que estava mergulhado lá para as bandas da Amorosa, e como têm que ganhar o seu graveto (e não é pouco pelo que vou ouvindo) centraram-se decididamente nos tiques antidemocráticos do Governo. Seria bom não gastarem demasiado as palavras e antidemocrático é uma delas.

Pode ser que os incêndios ainda regressem e com eles algumas descoordenações de um aparato que terá de estabilizar e ser afinado nos próximos anos. Podem arriscar nessa matéria. Mas se calhar seria melhor dar corda aos sapatos e construir uma crítica consistente à ação do Governo, pois se essa crítica não existir Rio, Cristas, Santana e suas hostes irão à última hora irão apresentar arremedos para consumo eleitoral imediato.

Mas há uma matéria que subsiste, a das condições salariais e de trabalho destes trabalhadores. As transportadoras não são flor que se cheire, embora me pareça que estarão em transformação. Nessa matéria haverá que separar as atividades que se processam no domínio dos transacionáveis e do mercado aberto. Nesse plano, reina a selvajaria com free-lancers provenientes sobretudo do Leste europeu, gerando situações de profunda concorrência desleal e dificultando, por esse motivo, a progressão salarial e a humanização das condições de trabalho, só reguladas pelas condições de proteção rodoviária. Pelo contrário, no plano da logística de matérias perigosas, a segurança nacional e a política de regulação de riscos exige salários decentes e embora seja um problema a regular entre patrões e trabalhadores a intervenção pública é crucial para garantir que a degradação das condições salariais e de trabalho não se constitua ela própria em risco. É o bom senso que se pede às negociações que irão começar amanhã, com Pardal ou sem Pardal, de trotinete ou Maserati não interessa.

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