(Imagino que pelas sessões, corredores e refeições de Jackson Hole no
Wyoming a reunião de bancos centrais tenha amplamente discutido o tema do
comportamento anómalo recente da chamada yield curve americana. Para além dos fantasmas recessivos que a inversão
da curva traz consigo, o que me parece importante destacar é o dilema que ele
coloca ao banco central americano, aliás como o bem identifica David Glasner no
Uneasy Money.)
Comecemos por explicitar o que é a Yield Curve (YC).
A YC não é mais do que a representação gráfica
das taxas de juro (rendimento), representadas no eixo vertical, que um dado
investidor estima obter para diferentes maturidades de empréstimo,
representadas no eixo horizontal. A YC pode ser interpretada como um meio de medir
o modo como o investidor avalia o risco de diferentes maturidades de empréstimos
que possa conceder.
Normalmente, os títulos com maturidades de
curto prazo, digamos a três meses, estão associados a rendimentos (yields) mais
baixos, sugerindo um risco menor do que o associado a maturidades mais longas, por
exemplo, 10 ou 30 anos. Assim, uma YC considerada normal significará que, para
uma economia a crescer a um ritmo regular com inflação estável, os investidores
esperam ser melhor remunerados para maturidades mais longas, associando a estas
últimas um maior risco.
Em regra, poderá dizer-se que uma YC normal tenderá
a manifestar-se em tempos “normais”. Ora sabemos que, embora possa discutir-se
a velha questão de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (This time will be different) se desta vez as coisas são diferentes
ou apenas uma réplica do passado, os tempos que correm, particularmente no
universo financeiro, estão longe de poder considerar-se “normais”.
Uma forma expedita de o verificar consiste em
representar graficamente o modo como varia ao longo do tempo a diferença entre
os yields de longo prazo (10 ou 30 anos) e de curto prazo (com grande
variabilidade de escolha da maturidade que represente o curto prazo, 3 meses ou
1 ano por exemplo). Em tempos de normalidade, essa diferença será relativamente
estável ou até ligeiramente crescente.
O que vemos entretanto nos gráficos respetivamente
do Financial Times e da Bloomberg (a abrir o post) é tudo menos essa normalidade. A diferença entre
os rendimentos que os investidores estimam obter a longo prazo e a curto prazo
contrai-se decisivamente à medida que caminhamos para a atualidade, a ponto de
poder ser inclusivamente negativa, significando uma avaliação de risco estranhamente
mais acentuada para o curto prazo. O que significa, por outras palavras, que a
YC se apresenta invertida.
Recordo aqui que a projeção de yields muito baixos
para maturidades de longo prazo já aqui neste blogue foi referenciada como um
indicador da chamada estagnação secular, um dos temas que mais tem atraído a
minha atenção neste espaço, na esteira dos contributos seminais de Lawrence
Summers.
A entrada em cena de uma YC invertida faz
normalmente a delícia de analistas económicos e financeiros. A inversão da YC pressagia
a emergência de recessões, podendo com algumas reservas e cautelas ser apresentada
como um “leading indicator” (indicador
avançado) das mesmas.
Do que tenho lido em matéria de explicações para
a YC americana ter passado recentemente de um simples achatamento para uma
completa inversão, a prosa de David Glasner no Uneasy Money é a que me parece
mais robusta (link aqui). A inversão da YC ocorre segundo Glasner quando a economia manifesta
uma inequívoca preferência por liquidez seja porque a política monetária atravessou
um período de forte restrição ou porque se formaram expectativas de que esse comportamento
restritivo tenderá a manter-se durante um período considerável. Compreendo a reflexão
de Glasner quando ele chega à conclusão de que a política monetária americana não
produziu recentemente nada de substancial que explique essa voracidade pela
liquidez. Já há algum tempo que o FED anunciou que não prosseguiria a sua política
de subida regular e gradual da taxa de juro.
O que pode então justificar a procura pela
liquidez?
A única explicação plausível é a onda de
profunda indeterminação provocada pelo belicismo comercial de Trump e pela
antecipação dos efeitos devastadores que uma guerra comercial destrutiva pode
provocar. Glasner é particularmente arguto quando estabelece a diferença entre
o que se depara hoje ao FED e o que aconteceu no início da década de 2000, com
os rumores de que a administração Bush iria desencadear uma intervenção militar
no Iraque. Neste último caso, tratava-se de uma decisão política, manifestamente
exógena à ação do Banco Central. Hoje, porém, a inversão YC acontece porque uma
descabelada política comercial externa está a provocar na economia americana
uma profunda indeterminação, anunciando uma enorme procura de liquidez a curto prazo.
Não resisto a citar a parte final do post de
David Glasner, pois ela é de uma clarividência que gosto de associar a este
espaço, trazendo para ele pensamento fora da caixa:
“O
FED enfrenta, por isso, um dilema cruel. Deve mitigar, reduzindo taxas de juro,
os efeitos de políticas que aumentam a incerteza, atuando consequente como um
facilitador dessas políticas, ou deve manter-se firme e recusar o caucionamento
dos efeitos de políticas que são elas próprias a causa da incerteza cujos
efeitos destruidores se pede ao FED que mitigue? Este é o tipo de dilema que Arthur
Burns, num contexto relativamente diferente, uma vez referiu como “a agonia da
Banca central”.
Percebe-se agora como Trump sempre manifestou
vontade de ter um governador do FED à sua medida e semelhança. Até agora, Jay
Powell, o governador, tem conseguido manter alguma distância. Mas este dilema é
preocupante.
E de novo a independência dos bancos centrais
vem a terreiro. Por muito que pense que nos tempos que correm a ortodoxia monetária
está nos seus limites e a política fiscal tem de regressar ao universo da
estabilidade macroeconómica, o exemplo americano mostra o que pode representar
de sinistro a existência de um governador do FED lacaio do Trumpismo. Será que
temos de aguentar mais um mandato deste pirómano da instabilidade mundial?
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