quinta-feira, 29 de agosto de 2019

OS FANTASMAS DA YIELD CURVE



(Imagino que pelas sessões, corredores e refeições de Jackson Hole no Wyoming a reunião de bancos centrais tenha amplamente discutido o tema do comportamento anómalo recente da chamada yield curve americana. Para além dos fantasmas recessivos que a inversão da curva traz consigo, o que me parece importante destacar é o dilema que ele coloca ao banco central americano, aliás como o bem identifica David Glasner no Uneasy Money.)

Comecemos por explicitar o que é a Yield Curve (YC).

A YC não é mais do que a representação gráfica das taxas de juro (rendimento), representadas no eixo vertical, que um dado investidor estima obter para diferentes maturidades de empréstimo, representadas no eixo horizontal. A YC pode ser interpretada como um meio de medir o modo como o investidor avalia o risco de diferentes maturidades de empréstimos que possa conceder.

Normalmente, os títulos com maturidades de curto prazo, digamos a três meses, estão associados a rendimentos (yields) mais baixos, sugerindo um risco menor do que o associado a maturidades mais longas, por exemplo, 10 ou 30 anos. Assim, uma YC considerada normal significará que, para uma economia a crescer a um ritmo regular com inflação estável, os investidores esperam ser melhor remunerados para maturidades mais longas, associando a estas últimas um maior risco.



Em regra, poderá dizer-se que uma YC normal tenderá a manifestar-se em tempos “normais”. Ora sabemos que, embora possa discutir-se a velha questão de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (This time will be different) se desta vez as coisas são diferentes ou apenas uma réplica do passado, os tempos que correm, particularmente no universo financeiro, estão longe de poder considerar-se “normais”.

Uma forma expedita de o verificar consiste em representar graficamente o modo como varia ao longo do tempo a diferença entre os yields de longo prazo (10 ou 30 anos) e de curto prazo (com grande variabilidade de escolha da maturidade que represente o curto prazo, 3 meses ou 1 ano por exemplo). Em tempos de normalidade, essa diferença será relativamente estável ou até ligeiramente crescente. 
 



O que vemos entretanto nos gráficos respetivamente do Financial Times e da Bloomberg (a abrir o post) é tudo menos essa normalidade. A diferença entre os rendimentos que os investidores estimam obter a longo prazo e a curto prazo contrai-se decisivamente à medida que caminhamos para a atualidade, a ponto de poder ser inclusivamente negativa, significando uma avaliação de risco estranhamente mais acentuada para o curto prazo. O que significa, por outras palavras, que a YC se apresenta invertida.


Recordo aqui que a projeção de yields muito baixos para maturidades de longo prazo já aqui neste blogue foi referenciada como um indicador da chamada estagnação secular, um dos temas que mais tem atraído a minha atenção neste espaço, na esteira dos contributos seminais de Lawrence Summers.

A entrada em cena de uma YC invertida faz normalmente a delícia de analistas económicos e financeiros. A inversão da YC pressagia a emergência de recessões, podendo com algumas reservas e cautelas ser apresentada como um “leading indicator” (indicador avançado) das mesmas.

Do que tenho lido em matéria de explicações para a YC americana ter passado recentemente de um simples achatamento para uma completa inversão, a prosa de David Glasner no Uneasy Money é a que me parece mais robusta (link aqui). A inversão da YC ocorre segundo Glasner quando a economia manifesta uma inequívoca preferência por liquidez seja porque a política monetária atravessou um período de forte restrição ou porque se formaram expectativas de que esse comportamento restritivo tenderá a manter-se durante um período considerável. Compreendo a reflexão de Glasner quando ele chega à conclusão de que a política monetária americana não produziu recentemente nada de substancial que explique essa voracidade pela liquidez. Já há algum tempo que o FED anunciou que não prosseguiria a sua política de subida regular e gradual da taxa de juro.

O que pode então justificar a procura pela liquidez?

A única explicação plausível é a onda de profunda indeterminação provocada pelo belicismo comercial de Trump e pela antecipação dos efeitos devastadores que uma guerra comercial destrutiva pode provocar. Glasner é particularmente arguto quando estabelece a diferença entre o que se depara hoje ao FED e o que aconteceu no início da década de 2000, com os rumores de que a administração Bush iria desencadear uma intervenção militar no Iraque. Neste último caso, tratava-se de uma decisão política, manifestamente exógena à ação do Banco Central. Hoje, porém, a inversão YC acontece porque uma descabelada política comercial externa está a provocar na economia americana uma profunda indeterminação, anunciando uma enorme procura de liquidez a curto prazo.

Não resisto a citar a parte final do post de David Glasner, pois ela é de uma clarividência que gosto de associar a este espaço, trazendo para ele pensamento fora da caixa:

O FED enfrenta, por isso, um dilema cruel. Deve mitigar, reduzindo taxas de juro, os efeitos de políticas que aumentam a incerteza, atuando consequente como um facilitador dessas políticas, ou deve manter-se firme e recusar o caucionamento dos efeitos de políticas que são elas próprias a causa da incerteza cujos efeitos destruidores se pede ao FED que mitigue? Este é o tipo de dilema que Arthur Burns, num contexto relativamente diferente, uma vez referiu como “a agonia da Banca central”.

Percebe-se agora como Trump sempre manifestou vontade de ter um governador do FED à sua medida e semelhança. Até agora, Jay Powell, o governador, tem conseguido manter alguma distância. Mas este dilema é preocupante.

E de novo a independência dos bancos centrais vem a terreiro. Por muito que pense que nos tempos que correm a ortodoxia monetária está nos seus limites e a política fiscal tem de regressar ao universo da estabilidade macroeconómica, o exemplo americano mostra o que pode representar de sinistro a existência de um governador do FED lacaio do Trumpismo. Será que temos de aguentar mais um mandato deste pirómano da instabilidade mundial?






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