quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O QUE O BELICISMO COMERCIAL DE TRUMP ESCONDE



(À boleia de Brad Setser, um dos mais lúcidos analistas dos fluxos cruzados de comércio na economia mundial de hoje, é possível compreender melhor o que o belicismo desregrado de Trump esconde. E também perceber a posição claramente individualizada que a Europa hoje ocupa entre os grandes blocos económicos mundiais.)

Trump continua imprevisível e errático como sempre, embora se perceba um padrão dominante. Ele consiste em mobilizar tudo o que se apresente ao seu alcance para continuar a animar o seu eleitorado em torno do slogan America First. A possibilidade de manter o tom já viveu melhores dias. Uma grande parte do arsenal de manobras dilatórias que têm sido acionadas para o efeito começa a provocar efeitos de ricochete sobre a sociedade americana, incluindo a que o apoia mais de perto. Veremos até que ponto pode manter o fogo da sua abordagem comercial, estimando eu que subvalorizou o poder de resposta da China.

Para compreender o contexto da economia mundial que Trump agita com as suas manobras de puro belicismo comercial, nada melhor do que ler um dos seus analistas mais atentos e documentados. Brad W. Setser é um colaborador próximo do Council on Foreign Relations dos EUA para a economia internacional e pertenceu aos quadros da Roubini Global Economics e dedica uma atenção permanente ao acompanhamento dos fluxos cruzados de comércio internacional. Identificando posições estruturalmente excedentárias ou deficitárias nesses fluxos ela acaba por fornecer elementos de análise preciosos para contextualizar atitudes de tentativa de controlo político do comércio internacional, como Trump tem vindo a ensaiar nos tempos mais recentes.

Num dos seus últimos posts no seu blogue FOLLOW THE MONEY (link aqui) com a chancela do já mencionado Council of Foreign Relations, Setser segue com alguma minúcia o posicionamento relativo do triângulo EUA- Europa- China e sublinha alguns traços estruturais que vale a pena ter em conta para contextualizar estes tempos de belicismo comercial.

O traço mais curioso é o que compara as economias europeia e americana em termos de relevo da especialização manufatureira e seus reflexos nos fluxos de exportações com origem nos dois blocos económicos. Percebe-se pelos números apresentados que os EUA enveredaram mais massivamente pelo fenómeno da offshorização, aprofundando o velho princípio de conceber produtos entre muros e produzi-los no exterior, ao passo que a Europa foi bem mais parcimoniosa nesse propósito, mantendo um nível de atividade francamente superior no seu território. Essa tónica europeia permitiu, por exemplo, que Portugal mantivesse no seu território, particularmente a Norte, uma representação considerável de produção potencialmente offshorizável.

Os dados fornecidos por Setser são particularmente reveladores do confronto atrás referido, sendo visível que a economia americana apresenta um peso de exportações de manufaturados no seu PIB que é sensivelmente um terço de valor idêntico para a zona Euro.

E o que é curioso é que do lado das importações não se observa essa diferença, apresentando os dois blocos pesos similares de importações no PIB.

Esta divergência acaba por projetar-se numa outra evidência que salta aos olhos do alucinado Trump como um fator impulsionador de animosidade comercial. É que o excedente europeu em termos de manufaturas é praticamente simétrico do défice americano nessa matéria.

O olhar atento de Setser leva-o a mostrar-se reticente quanto à ideia de que os EUA não são pródigos na exportação de produtos manufaturados mas manteriam uma posição de vantagem comparativa nas exportações de serviços, designadamente de âmbito tecnológico. Parece-me que Setser está certo quando refere que não são as exportações de serviços que compensam o défice manufatureiro americano, mas antes os lucros gerados pela offshorização das grandes multinacionais americanas que o fazem. A contradição do capitalismo americano é manifesta, sobretudo se pensarmos que a offshorização da produção de manufaturados é vantajosa a curto prazo, mas facilita a longo prazo a capacitação dos territórios de produção exterior e aumenta a probabilidade de apropriação do conhecimento exportação desses produtos. Por mais importante que o domínio do conhecimento e design de produto seja para assegurar o domínio na desigualdade nas trocas, são conhecidos imensos casos de apropriação tecnológica de produtos de exportação a partir da offshorização. Para além de que compensar o défice americano em termos de exportação de manufaturados com os lucros de offshore de um conjunto relativamente de empresas poderosas não parece ser uma modalidade de grande sustentação a longo prazo, contribuindo para a concentração de interesses que se vai agravando no capitalismo americano.

Isto não significa que o bloco Europa não esteja perante vulnerabilidades, a primeira das quais regressa sempre quando a procura de produtos manufaturados na economia mundial se ressente por qualquer motivo. Por isso é tão importante investir na sua qualificação e no aumento de incorporação de conhecimento.

Setser analisa ainda o outro modelo de fluxos cruzados entre a Europa e a China, mas isso poderá constituir matéria de outro post. Sobretudo porque as exportações chinesas têm de ser sistematicamente analisadas em termos líquidos face ao elevado processamento de importações que veiculam e numa economia de tradição asiática em que a taxa de investimento (peso no PIB) é sempre muito elevada o investimento representa sempre uma fonte considerável de importações.

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