(Um país com a carga de passado de pobreza e de deseducação
nunca provavelmente deixará de ser contraditório. Estamos preparados para isso e
já ganhámos endurance para ler por
vezes a progressão nos traços opostos. Mas a situação que está por trás da história
macabra das duas miúdas que viveram anos e anos numa garagem está para lá dessa
preparação.)
Estou decididamente entre aqueles que sempre
defenderão o mundo da intervenção e das políticas públicas contra os que glorificam
o alcance do mercado “tout court”. Mas,
retomando o artigo de António Barreto no Público deste fim-de-semana, que merece
aliás uma leitura futura, não confundo o universo das políticas públicas com o simples
manejamento formal de planos e estratégias, multiplicados até à exaustão para
satisfação das consciências legais e muitas vezes condenados ao esquecimento ou
obsolescência pelo não uso daqueles que gostam de governar em função da reatividade
dos meios de comunicação. O grau de consistência de um quadro de políticas públicas
não se mede pela multiplicação de planos, mas antes pelo respeito escrupuloso e
intransigente por princípios bem definidos e escrutinados. Há uma prática das
políticas públicas e há a encenação da sua existência, criada por legisladores
e burocratas, com a estranha convicção de que as políticas públicas não têm
limites. E quantos limites elas enfrentam na sua implementação!
O caso das miúdas que encerradas numa garagem
à revelia das mínimas condições de humanidade e de respeito pelo seu futuro
escaparam aos alertas das políticas sociais de vária natureza que deveriam
ter-se ocupado do caso e evitado a tragédia embateu estrondosamente com as
nossas convicções. Ele diz-nos, na sua crueza, como a existência de planos,
programas e de toda a caterva de medidas sociais constituirá uma encenação enquanto
casos desta natureza não forem sinalizados.
Assistiremos obviamente à manifestação da
evidência de que a máquina da intervenção pública é verticalizada e incompatível
com uma saudável cooperação de recursos entre os seus diferentes braços. Identificaremos
de novo através deste caso a incontornável necessidade de trabalhar a intermediação
das políticas públicas desde a sua conceção até ao seu efeito final sobre quem
delas deve beneficiar. Reconheceremos ainda que nessa intermediação existe uma
dimensão espacial a ter em conta como garantia da proximidade às necessidades
dos mais vulneráveis.
Noutras situações identificamos e reconhecemos
coisas similares, senão exatamente as mesmas evidências. Aprendemos pouco. E não
me venham com a história do caso isolado. Há matérias em que tais casos não podem
existir, ponto.
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