segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A GARAGEM



(Um país com a carga de passado de pobreza e de deseducação nunca provavelmente deixará de ser contraditório. Estamos preparados para isso e já ganhámos endurance para ler por vezes a progressão nos traços opostos. Mas a situação que está por trás da história macabra das duas miúdas que viveram anos e anos numa garagem está para lá dessa preparação.)

Estou decididamente entre aqueles que sempre defenderão o mundo da intervenção e das políticas públicas contra os que glorificam o alcance do mercado “tout court”. Mas, retomando o artigo de António Barreto no Público deste fim-de-semana, que merece aliás uma leitura futura, não confundo o universo das políticas públicas com o simples manejamento formal de planos e estratégias, multiplicados até à exaustão para satisfação das consciências legais e muitas vezes condenados ao esquecimento ou obsolescência pelo não uso daqueles que gostam de governar em função da reatividade dos meios de comunicação. O grau de consistência de um quadro de políticas públicas não se mede pela multiplicação de planos, mas antes pelo respeito escrupuloso e intransigente por princípios bem definidos e escrutinados. Há uma prática das políticas públicas e há a encenação da sua existência, criada por legisladores e burocratas, com a estranha convicção de que as políticas públicas não têm limites. E quantos limites elas enfrentam na sua implementação!

O caso das miúdas que encerradas numa garagem à revelia das mínimas condições de humanidade e de respeito pelo seu futuro escaparam aos alertas das políticas sociais de vária natureza que deveriam ter-se ocupado do caso e evitado a tragédia embateu estrondosamente com as nossas convicções. Ele diz-nos, na sua crueza, como a existência de planos, programas e de toda a caterva de medidas sociais constituirá uma encenação enquanto casos desta natureza não forem sinalizados.

Assistiremos obviamente à manifestação da evidência de que a máquina da intervenção pública é verticalizada e incompatível com uma saudável cooperação de recursos entre os seus diferentes braços. Identificaremos de novo através deste caso a incontornável necessidade de trabalhar a intermediação das políticas públicas desde a sua conceção até ao seu efeito final sobre quem delas deve beneficiar. Reconheceremos ainda que nessa intermediação existe uma dimensão espacial a ter em conta como garantia da proximidade às necessidades dos mais vulneráveis.

Noutras situações identificamos e reconhecemos coisas similares, senão exatamente as mesmas evidências. Aprendemos pouco. E não me venham com a história do caso isolado. Há matérias em que tais casos não podem existir, ponto.

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