(http://www.ambientelegal.com.br/populismo-catarse-e-tragedia/)
(Breves notas sobre alguns traços marcantes de 2018,
selecionados do ponto de vista de temas que, independentemente de terem
ocorrido no ano que termina, foram em 2018 melhor compreendidos e configuram
tendências estruturais que estão para ficar. Oportunidade para insistir ou apontar novos
elementos a matérias já tratadas em posts anteriores. O tema de hoje é o populismo.)
O ano de 2018 marca a afirmação, em alguns casos parlamentar e até de
governo, nos sistemas democráticos de forças e movimentos políticos que
exploram as regras que regem esses sistemas para as subverter e negar os
princípios da tolerância e da liberdade. O termo que mais defensores suscitou
para descrever a raiz comum dessas forças e movimentos é o de populismo. Há também
quem os identifique com a designação de democracia iliberal, pois uma das suas
características é a utilização frequentemente manipulada de eleições, embora em
muitos exemplos com ataques hoje já não dissimulados a alguns pilares das
sociedades democráticas como o são, por exemplo, a comunicação social e a
liberdade política e de opinião.
Das dimensões disciplinarmente multifacetadas que o populismo abrange, com
múltiplas ligações para a ciência política e ciências sociais em geral,
obviamente a que mais me interessa é a económica. Como aqui salientei em devido
tempo, a obra mais profunda e motivadora que 2018 nos trouxe foi a de Barry
Eichengreen, The Populist Temptation
(Oxford University Press), com a vantagem de se tratar de um economista
(Universidade de Berkeley, colega de corredor de ouro economista profusamente
citado neste espaço, Bradford DeLong), conhecido dos portugueses através das
suas crónicas traduzidas regularmente no Expresso Economia. Através de
Eichengreen, compreendemos que nos seus matizes diversificados, à direita e à
esquerda, o populismo encerra sempre uma combinação variável de revolta ou
marginalização contra as elites, de autoritarismo e de tendências
nacionalistas, assumindo estas, isolada ou conjuntamente, as variantes do nacionalismo
económico, da rejeição do outro, mesclada de supremacismo e infelizmente nos
últimos tempos de rejeição, intolerância e até perseguição de imigrantes e
outras minorias.
O interesse que dedico à dimensão económica do populismo tal como
Eichengreen o define prende-se com o facto das forças e movimentos políticos que
se reivindicam de uma representação mais efetiva do povo do que a praticada
pelas indesejáveis elites necessitarem de populações com queixas efetivas seja porque
as elites as marginalizaram, seja porque algum facto económico as prejudicou em
termos de rendimento, emprego, condições de acesso a serviços públicos ou em
termos de condições de vida em geral. Ou seja, o populismo precisa de combustível
para atiçar fogos sociais. Esse combustível tanto pode ser de origem económica
como resultante da exploração do medo. Entre os combustíveis de dimensão económica,
a globalização e no caso dos Europeus a própria União Europeia e/ou zona Euro constituem
os de maior utilização pelo discurso populista, manifeste-se ele nos EUA, no Reino
Unido, em Itália ou nos países do leste europeu. Neste último caso, a União Europeia
é o papão cuja aproximação é explorada, mas esses países não têm pelo menos a
coragem de um abandono. Quanto à exploração do medo, ela tem-se processado por
um discurso de total falsidade quanto à ameaça da imigração e dos refugiados. Com
a exceção da Alemanha, em que a dimensão dos fluxos de entrada de refugiados impõe
algum respeito de compreensão, nos restantes países em que a exploração do medo
pela invasão externa é explorada a tónica comum é a total falsidade do argumento,
como o ilustram os números dos fluxos de entrada observados nesses países.
O ano de 2018 mostrou à evidência como o facto de se terem ignorado os
apelos da crítica reformista da globalização e da própria União Europeia e projeto
do Euro, com particular recriminação para os socialistas e sociais-democratas
europeus que perderam uma oportunidade histórica para liderar esse processo,
abriu uma passadeira vermelha, em grande estilo, aos populistas de expressões
diversas para cavalgarem essa onda. E, por isso, o ano de 2018 parece que cavou
em mim próprio uma contradição aparentemente insanável. Vi-me a defender que a
inversão histórica do processo de globalização, cavalgada pelas teses
populistas, é bem mais perigosa do que os riscos de uma reforma incremental
desse mesmo processo, eivado de dificuldades como todas as teses reformistas
hoje enfrentam. Aliás, em linha também com a minha convicção de hoje que a destruição
do projeto europeu é bem mais nefasta do que o limbo em que a sua reforma se encontra.
Por mais estranho que isso possa parecer face às minhas posições anteriores, a destruição
do processo de globalização e da construção europeia são bem mais ameaçadores do
que todas as dificuldades para a sua reforma, sobretudo ao serviço de uma
melhor distribuição dos seus benefícios e de uma adequada compensação social
dos seus custos. A batalha contra a afirmação dos populismos também passa por
aqui e é imperioso que a social-democracia europeia o compreenda, sob pena de perder
também a batalha com os radicalismos económicos de esquerda, que pelo menos nos
EUA irão marcar as futuras eleições americanas e seguramente as primárias entre
os democratas.
Quanto à marginalização das elites, o ano de 2018 mostrou que também aqui
uma certa ciência económica colocou a sua passadeira vermelha para que isso
acontecesse. Simplesmente, aqui a reação é forte, ainda que o establishment académico tenha muita
força e abundantes mecanismos de reprodução lhe garantam bastiões de derrube
muito difícil.