segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

PASSAGEM DE ANO


Acima, os votos mais humanitariamente enriquecedores para o ano de 2019 que começa: diversidade, fraternidade e tolerância, por esta ou outra ordem, são valores a cada vez mais valorizar e preservar na nossa vida pessoal, como na nossa vida coletiva à escala nacional, europeia ou global. Abaixo, uma leitura mais objetiva e realista do nosso honoris causa El Roto. Um Bom e Feliz Ano para todos!

(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

POPULISMO PELO CORREIO


Querem uma evidencia do que significa o chamamento por um populismo ainda por soltar em Portugal? Pois vejam esta manchete recente do jornal diário mais vendido no nosso País, afinal apenas uma pequena ilustração do sensacionalismo com que se joga com assuntos sérios e merecedores de análise fina e cuidada e não de insinuações bombásticas e as mais das vezes mentirosas. Com a agravante de o visado ser sempre o mesmo sob as mais diversas e múltiplas formas, da ação governativa ao papel do Estado, dos governantes aos poderosos, dos pequenos aproveitamentos a uma alegada corrupção reinante. Como por aqui se vai repetindo: depois queixem-se...

OUTRA PERSPETIVA DAS PERSONALIDADES DO ANO

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

Em complemento da perspetiva mais francófona de Vadot que aqui reproduzo ontem, recorro hoje à contrastada visão germanófila de Stuttman para apontar as personagens que mais preencheram a nossa vida pública em 2018. Vale a pena uma análise cuidada das semelhanças e das diferenças, incluindo as ênfases.

DUAS MORTES DISPENSÁVEIS



Chamo dispensáveis a estas mortes apenas porque elas doem especialmente, tratando-se de seres que viveram a tanta distância de nós semeando humanidade e uma infinidade de boas razões para que deles nos ficassem marcas inapagáveis, daquelas que afinal fazem a diferença entre quem viveu uma vida e quem meramente circulou por aí. Miúcha na música e Amos Oz na literatura deixaram-nos esse legado e esse exemplo, que simbolizo naquele belíssimo tema (“Pela luz dos olhos teus”) que me fez transbordar de bem-estar em vários momentos ou naquele romance autobiográfico (“Uma História de Amor e Trevas”) que foi um dos melhores que li. Aqui fica o devido tributo.

O ACONTECIMENTO INTERNACIONAL DO ANO

(Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

As incidências em torno do “Brexit” acabam por ser a escolha que é mais óbvia quanto ao acontecimento de maior relevância ocorrido no ano que termina. E não apenas por razões de proximidade imediata e de repercussão sobre as nossas realidades, nacional e europeia. Também pelo interminável emaranhado de processos que vai envolvendo e, sobretudo, pelo grau de indeterminação que ainda o carateriza a menos de três meses da data convencionada para a sua concretização. A ter de indicar outra possibilidade, sempre optaria pelas múltiplas incidências e consequências potenciais da chamada “guerra comercial” EUA-China, sem com isso me permitir esquecer os vários e criminosos dramas associados à caravana de migrantes latino-americanos que procuram desesperadamente alcançar a fronteira sul dos Estados Unidos, as incontáveis e inenarráveis diatribes de Trump e as suas primeiras dificuldades no pós-eleições intercalares ocorridas, a terrível situação política interna do Brasil de Lula e Bolsonaro, as manifestações e os abalos políticos provenientes dos “coletes amarelos” em França ou a grave crise humanitária no Iémen. Nada de positivo, portanto. E, para cúmulo, com a agravante do período que vive a nossa Europa, mergulhada numa aparente acalmia tendencialmente otimista que mais não é do que uma espécie de enconchamento sobre si própria suscetível de esconder, cada vez mais claramente, um acumulado de problemas por assumir e enfrentar, algo que mais dia menos dia aportará um preço dificilmente suportável – nem de propósito, por estes dias andei a ler o inquietante “Euro Tragedy” de Ashoka Mody (ao qual voltarei, referenciando o que ele designa por “união monetária incompleta”, falling forward thesis como a filosofia orientadora da moeda única e groupthink como descrição da “inabalável crença coletiva” dos líderes europeus de que tudo corre e vai correr bem) e ainda pude passar os olhos sobre a tremendista entrevista de João Ferreira do Amaral ao “Sol”; argumentos, uns mais batidos do que outros, mas que fornecem matéria vasta para reflexões muito sérias e preocupantes quando se olha para o que aí está para vir...

domingo, 30 de dezembro de 2018

O ACONTECIMENTO NACIONAL DO ANO

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Poderá parecer pessimismo em excesso ou, pelo menos, contra a corrente. Mas 2018 poderá ficar na nossa história recente como o ano em que, depois de termos conseguido dar a volta ao texto do derrotismo austeritário e do liberalismo mal assimilado, fomos também evidenciando que somos ainda um país pobre e com problemas (como, aliás, veio sublinhar por outras palavras o primeiro-ministro na sua mensagem de Natal). Um país em que a falência do Estado está sempre ao virar da esquina de um qualquer aparente acaso (e o desastre de Borba foi uma situação absolutamente paradigmática), em que a debilidade institucional emerge de todos os lados (e o caso dos deputados do PSD foi apenas um exemplo anedótico disso mesmo) e em que o populismo espreita cada vez mais perigosamente à espera de que surja a sua real oportunidade nacional (e a invasão de Alcochete e tudo o que se lhe seguiu ali para os lados de Alvalade foi uma manifestação quase dantesca de mau gosto não premiado nessa perspetiva). No meio disto tudo, as armas de Tancos e a correspondente demissão do ministro da Defesa, os emails e quejandos provindos dos lados do Estádio da Luz ou a avalanche de greves em final de ano (enfermeiros, professores, estivadores, etc.) acabaram por ser fait-divers que dificilmente passarão à história numa ótica de médio prazo. Tal como, em sentido contrário, os bons resultados económico-financeiros do País, a aprovação do quarto orçamento da “Geringonça” ou alguns destaques empresariais (entre os quais os chamados “unicórnios portugueses”, ainda a confirmar em toda a sua plenitude). Voltando a Borba, e para terminar, cito Ana Sá Lopes no seu editorial de hoje no “Público”: “A descentralização [mesmo aos solavancos, acrescento eu] é uma coisa boa, desde que não ponha em causa a segurança dos cidadãos”.

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

TRAÇOS DE 2018 (2)



(Alternando traços marcantes de natureza externa e interna, é hoje a vez de me referir ao 2018 interno, subordinado ao tema “ E afinal o quarto orçamento foi possível” para descrever a confirmação do que tudo indica ser a conclusão de uma legislatura de geringonça. O tema em si oculta outras questões, essas sim bem mais importantes e que, em 2018, se tornaram irremediavelmente mais claras e isso é sempre bom para a democracia.)

O país anda agitado, com uma multiplicidade de reivindicações grevistas a brotar quase todos os dias, procurando à sua maneira disputar o quinhão ambicionado primeiro nas atenções da comunicação social e depois no bolo dos recursos públicos. Curiosamente, os nossos comentadores/palradores de serviço saltaram de um período em que repetidamente que se referiam à calma domesticada que a geringonça estava a comprar na esfera social e política para um outro em que apontam o dedo ao PS pelas cedências que proporcionou nesse mesmo campo do apoio parlamentar à esquerda.

Já aqui expressei preto no branco que o governo de António Costa foi precipitado na invocação do slogan “vamos virar a página da austeridade”. O que o governo deveria ter denunciado com clareza é o erro desastroso de, em contexto de recessão internacional, se ter imposto a austeridade como política de gestão macroeconómica da crise. A expressão acabou por ficar mas rapidamente o governo percebeu que a mensagem fundamental a transmitir era outra, ou seja, que era possível com a melhoria das condições internacionais (apesar da incerteza global que as domina) repor condições de rendimentos e de direitos e manter as contas públicas em progressivo equilíbrio. Podemos discutir se a combinação entre a reposição de rendimentos e de direitos e a melhoria do investimento público poderia ou não ter assumindo outros cambiantes. Não me custa admitir que isso teria sido possível, embora tivesse de tirar o chapéu a quem o conseguisse atingir na negociação social.

O que toda a agitação reivindicativa no plano público está a mostrar, numa espécie de Caixa de Pandora que está longe de ter sido plenamente levantada, é que a Administração Pública, num quadro de reforma do Estado permanentemente adiada e simplesmente maquilhada ao sabor das diferentes maiorias parlamentares, se transformou em material explosivo. A questão da contagem do tempo de serviço dos professores, que o veto do Presidente Marcelo veio reavivar em toda a linha, é toda ela um universo de pormenores e condições que o vulgar dos mortais desconhece e que está muito para além de contar ou não integralmente o tempo de serviço interrompido e de pagar as remunerações correspondentes. As condições estabelecidas de remuneração e progressão das carreiras de muitas das profissões da Administração Pública (quais? É uma boa questão!) transformaram-se num emaranhado de regalias ocultas cujo não conhecimento público lesa a democracia, sobretudo porque induz desconfiança, permanentemente. Para além disso, trata-se de uma máquina pública, contraditória, plena de poderzinhos acantonados em algumas administrações setoriais, cujos órgãos de racionalidade técnica foram morrendo à medida que as máquinas políticas se instalaram. Os incêndios e as pedreiras de Borba mostraram-no à evidência, mas em outros domínios a situação é similar. José Pacheco Pereira costuma dizer frequentemente no Quadratura do Círculo que Portugal não é a Suiça. Pois é óbvio que não é. Por mais importante e democraticamente genuína que seja a barganha social, ela não pode alhear-se do nível de desenvolvimento económico do país e das escolhas públicas que esse nível suscita em termos da dimensão e natureza do Estado, designadamente do Estado Social.

A ideia que está muito generalizada de que “tudo está a rebentar pelas costuras” marcou indiscutivelmente o ano de 2018, ainda que tenhamos de distinguir entre o “rebentar pelas costuras” impressivo e descrito pelas incidências da comunicação social e o “rebentar pelas costuras” real e resultante de escolhas que se foram adiando e de maquilhagens introduzidas a dedo e em função dos que falam mais alto.

A transformação que a economia empresarial privada está a experimentar, essencialmente através do binómio internacionalização-inovação, que se potenciam mútua e virtuosamente não ignoremos isso, é lenta, com uma longa maturação de efeitos, largamente tornada possível por uma linha persistente de política com cofinanciamento dos Fundos Estruturais. É essa transformação que vencerá a prazo a debilidade de capacidade empresarial que historicamente a democracia herdou em Portugal e permitirá ir clarificando o papel do Estado, limitando-o a funções em que ele é mais necessário, como o são a educação, a saúde e as políticas sociais. O ano de 2018 tornou isto mais claro, mas a sua tradução em posicionamentos políticos mais objetivos tarda a manifestar-se.

UMA PERSPETIVA DAS PERSONALIDADES DO ANO

(Nicolas Vadot, “Vadot au Carré”, http://www.levif.be)

Aqui deixo aos nossos seguidores uma perspetiva das personalidades do ano de 2018 segundo Vadot. Votos de uma boa passagem de ano para todos.

sábado, 29 de dezembro de 2018

TRAÇOS DE 2018 (1)

(http://www.ambientelegal.com.br/populismo-catarse-e-tragedia/)


(Breves notas sobre alguns traços marcantes de 2018, selecionados do ponto de vista de temas que, independentemente de terem ocorrido no ano que termina, foram em 2018 melhor compreendidos e configuram tendências estruturais que estão para ficar. Oportunidade para insistir ou apontar novos elementos a matérias já tratadas em posts anteriores. O tema de hoje é o populismo.)

O ano de 2018 marca a afirmação, em alguns casos parlamentar e até de governo, nos sistemas democráticos de forças e movimentos políticos que exploram as regras que regem esses sistemas para as subverter e negar os princípios da tolerância e da liberdade. O termo que mais defensores suscitou para descrever a raiz comum dessas forças e movimentos é o de populismo. Há também quem os identifique com a designação de democracia iliberal, pois uma das suas características é a utilização frequentemente manipulada de eleições, embora em muitos exemplos com ataques hoje já não dissimulados a alguns pilares das sociedades democráticas como o são, por exemplo, a comunicação social e a liberdade política e de opinião.

Das dimensões disciplinarmente multifacetadas que o populismo abrange, com múltiplas ligações para a ciência política e ciências sociais em geral, obviamente a que mais me interessa é a económica. Como aqui salientei em devido tempo, a obra mais profunda e motivadora que 2018 nos trouxe foi a de Barry Eichengreen, The Populist Temptation (Oxford University Press), com a vantagem de se tratar de um economista (Universidade de Berkeley, colega de corredor de ouro economista profusamente citado neste espaço, Bradford DeLong), conhecido dos portugueses através das suas crónicas traduzidas regularmente no Expresso Economia. Através de Eichengreen, compreendemos que nos seus matizes diversificados, à direita e à esquerda, o populismo encerra sempre uma combinação variável de revolta ou marginalização contra as elites, de autoritarismo e de tendências nacionalistas, assumindo estas, isolada ou conjuntamente, as variantes do nacionalismo económico, da rejeição do outro, mesclada de supremacismo e infelizmente nos últimos tempos de rejeição, intolerância e até perseguição de imigrantes e outras minorias.

O interesse que dedico à dimensão económica do populismo tal como Eichengreen o define prende-se com o facto das forças e movimentos políticos que se reivindicam de uma representação mais efetiva do povo do que a praticada pelas indesejáveis elites necessitarem de populações com queixas efetivas seja porque as elites as marginalizaram, seja porque algum facto económico as prejudicou em termos de rendimento, emprego, condições de acesso a serviços públicos ou em termos de condições de vida em geral. Ou seja, o populismo precisa de combustível para atiçar fogos sociais. Esse combustível tanto pode ser de origem económica como resultante da exploração do medo. Entre os combustíveis de dimensão económica, a globalização e no caso dos Europeus a própria União Europeia e/ou zona Euro constituem os de maior utilização pelo discurso populista, manifeste-se ele nos EUA, no Reino Unido, em Itália ou nos países do leste europeu. Neste último caso, a União Europeia é o papão cuja aproximação é explorada, mas esses países não têm pelo menos a coragem de um abandono. Quanto à exploração do medo, ela tem-se processado por um discurso de total falsidade quanto à ameaça da imigração e dos refugiados. Com a exceção da Alemanha, em que a dimensão dos fluxos de entrada de refugiados impõe algum respeito de compreensão, nos restantes países em que a exploração do medo pela invasão externa é explorada a tónica comum é a total falsidade do argumento, como o ilustram os números dos fluxos de entrada observados nesses países.

O ano de 2018 mostrou à evidência como o facto de se terem ignorado os apelos da crítica reformista da globalização e da própria União Europeia e projeto do Euro, com particular recriminação para os socialistas e sociais-democratas europeus que perderam uma oportunidade histórica para liderar esse processo, abriu uma passadeira vermelha, em grande estilo, aos populistas de expressões diversas para cavalgarem essa onda. E, por isso, o ano de 2018 parece que cavou em mim próprio uma contradição aparentemente insanável. Vi-me a defender que a inversão histórica do processo de globalização, cavalgada pelas teses populistas, é bem mais perigosa do que os riscos de uma reforma incremental desse mesmo processo, eivado de dificuldades como todas as teses reformistas hoje enfrentam. Aliás, em linha também com a minha convicção de hoje que a destruição do projeto europeu é bem mais nefasta do que o limbo em que a sua reforma se encontra. Por mais estranho que isso possa parecer face às minhas posições anteriores, a destruição do processo de globalização e da construção europeia são bem mais ameaçadores do que todas as dificuldades para a sua reforma, sobretudo ao serviço de uma melhor distribuição dos seus benefícios e de uma adequada compensação social dos seus custos. A batalha contra a afirmação dos populismos também passa por aqui e é imperioso que a social-democracia europeia o compreenda, sob pena de perder também a batalha com os radicalismos económicos de esquerda, que pelo menos nos EUA irão marcar as futuras eleições americanas e seguramente as primárias entre os democratas.

Quanto à marginalização das elites, o ano de 2018 mostrou que também aqui uma certa ciência económica colocou a sua passadeira vermelha para que isso acontecesse. Simplesmente, aqui a reação é forte, ainda que o establishment académico tenha muita força e abundantes mecanismos de reprodução lhe garantam bastiões de derrube muito difícil.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

TRANSFORMAR O CAPITALISMO


Encontrei por estes dias nas páginas do “Le Monde” um artigo do meu principal mestre parisiense, Michel Aglietta. Aos 80 anos, o académico e investigador francês que marcou uma época enquanto expoente da “Escola da Regulação” continua lúcido e assertivo, na linha do que sempre fez a atratividade do seu pensamento e o seu profundo brilhantismo e rigor analítico. Este texto (“Transformer le capitalisme est une nécessité vitale”), escrito a pretexto do desafio que lhe foi lançado para que fornecesse aos leitores pistas com vista à compreensão do movimento dos coletes amarelos, trouxe-me especialmente à memória uma sua obra menos citada (“Les Métamorphoses de la Société Salariale: La France en Projet”), que escreveu em 1984 em coautoria com o seu amigo Anton Brender – e onde se explicava detalhadamente porque se deveria entender a “sociedade salarial” como o horizonte incontornável da nossa época. As imagens deste post serão talvez pouco canónicas e, sobretudo, de menos perfeita legibilidade, mas assim teve de ser para juntar em cada uma delas a riqueza de um diagnóstico em cinco parágrafos que prolonga e atualiza aquele conceito – ao contrapor “a exigência de um desenvolvimento inclusivo e durável” à “causa histórica essencial desta dinâmica divergente”, a acumulação capitalista – e quatro parágrafos contendo algumas das linhas programáticas transformadoras que dele decorrem no sentido de uma “transformação ‘progressista’ das estruturas do capitalismo”, quer alertando para as mudanças climáticas como “um potencial de destruição da civilização”, quer recorrendo à pujante ideia de um “catastrofismo esclarecido” (enquanto “instrumento de escolha social para o tempo das roturas e das incertezas”), quer convocando “uma forte implicação do político e uma adesão dos cidadãos” com vista a uma “planificação do tempo que os dirigentes políticos e económicos são incapazes de conduzir sob a dominância do capitalismo financiarizado” e a uma democracia participativa que “só mobilizará os cidadãos associada a um princípio de justiça para democratizar a riqueza”. Aqui fica, pois, um retorno a Aglietta, para devida consideração dos que persistem na procura de entendimentos sólidos e caminhos viáveis.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

AINDA A QUESTÃO DA ADSE



(Breves notas sobre um ensaio jornalístico do Observador de Mário Amorim Lopes, Porto Business School, que mergulha na questão ADSE anteriormente por mim analisada no quadro das escolhas que o SNS suscita. Este tipo de ensaios jornalísticos que o Observador tem publicado sobre algumas matérias, embora genericamente informados pela orientação liberal do jornal, são bem mais interessantes do que a generalidade das crónicas residentes.)

No meu post anterior, procurei demonstrar que as escolhas suscitadas em torno do futuro do sistema nacional de saúde (SNS) em Portugal não devem ser exclusivamente informadas por princípios fundamentais de escolha entre saúde pública e privada, devendo pelo contrário ter em devida conta o estado da arte do sistema que se pretende transformar em termos de sustentabilidade e garantia de qualidade de cuidados de saúde para os mais desfavorecidos.

Embora não comungue da posição defendida por Mário Amorim Lopes, o qual considera o SNS uma parte de um universo mais lato que ele designa de sistema nacional de saúde alargado, o ensaio traz ao conhecimento público alguns elementos de informação que importa generalizar para uma correta avaliação do papel que o subsistema ADSE pode desempenhar.

Há dois aspetos referidos pelo ensaísta que vale a pena reter para uma plena compreensão das opções que se abrem nesta matéria.

O primeiro aspeto prende-se com a alteração legal introduzida nos últimos tempos que permitiram a saída do sistema de quem o pretendesse, mais ou menos concomitante com o aumento observado nas comparticipações de ativos empregados e de aposentados para 3,5%. Existe evidência que mostra que os abandonos observados respeitam aos titulares de rendimentos mais elevados que encontraram nos seguros de saúde privados uma alternativa mais competitiva. Mas, nestas condições, a permanência de cerca de 1.275.000 beneficiários, nem todos quotizados pois que para além de ativos e aposentados há os familiares que beneficiam do subsistema, representa um exemplo de decisão voluntária de pagar uma comparticipação relativamente elevada como é a de 3,5% do rendimento bruto auferido. Parece-me que MAL tem razão ao afirmar que este facto sugere atribuição de valor real ao subsistema por a por parte dos que mantiveram as suas quotizações.

O segundo aspeto diz respeito à evidência dos últimos anos, após o aumento da quotização para 3,5%, de que o subsistema é hoje financeiramente autónomo, com receitas de quotização superiores aos pagamentos a beneficiários, destruindo por isso a ideia tão propagada de que o subsistema ADSE é tributário do financiamento público. Um problema de diferente natureza é a da sua eventual não sustentabilidade financeira mais a longo prazo. Nessa matéria, o artigo não é muito convincente, pois limita-se a invocar literatura produzida sobre outros países e a trabalhar os argumentos do envelhecimento demográfico e da chamada seleção adversa, com a tendência para o subsistema ser procurado pelos casos com maior propensão ao gasto médico.

Cito estes dois aspetos pois eles ilustram o meu argumento do estado da arte a que deve ser ponderado para além do confronto de princípios fundamentais, público versus privado.

Como qualquer outro subsistema de saúde, é inevitável que a gestão dos cuidados de saúde comparticipáveis pela ADSE tenda para um maior controlo, já que ele, como outro qualquer subsistema, tem de se preocupar com a propensão para o consumo indiscriminado de medicamentos e de meios auxiliares de diagnóstico e pedagogicamente regulá-lo a bem de cultura de saúde mais moderna. Tratando-se de um subsistema que, pelo menos nos anos mais próximos, tenderá para preservar a autonomia financeira, será imperioso e fundamental melhorar a transparência da gestão do subsistema, proporcionando aos quotizadores um maior escrutínio das opções de gestão e das condições em que a rede de entidades médicas aderentes é selecionada.

Recordando um aspeto mencionado no meu post anterior, o subsistema ADSE não pode ignorar que da sua atividade resulta em boa medida a sobrevivência de muitas unidades de saúde privadas. Continuo a pensar que isso não equivale necessariamente a aderir à tese de que a ADSE pode ser o cavalo de Troia da subversão do SNS, precipitando a sua queda. Mas seria bom que o subsistema tivesse uma palavra a dizer na promoção da qualidade do subsistema privado de saúde.