quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O ERRO DE MACRON

(Thomas Piketty, jornal Le Monde)

(Existem hoje evidências seguras dos erros de gestão macroeconómica cometidos por Emmanuel Macron, alguns dos quais já referidos em posts anteriores. Ninguém melhor e com mais rigor do que Thomas Piketty o poderia fazer.)

Já aqui referi que a pouco cuidada e por vezes arrogante maneira como Macron geriu a frente macroeconómica interna lhe pode custar a derrocada política, sobretudo a interligação que pretendeu estabelecer entre as frentes interna e europeia. Já aqui também referi que a situação em que se encontram a economia e a sociedade francesas não são pera doce para qualquer via reformista.

Mas à medida que se vão conhecendo melhor os contornos da gestão macroeconómica conduzida por Macron a visão do erro fica mais clara.

O economista Thomas Piketty, talvez o mais globalizado economista francês com os seus trabalhos sobre a desigualdade e a difusão do seu Capital no século XXI, identifica pertinentemente os dois erros principais, ambos largamente correlacionados com os protestos populares dos “gilets jaunes”(link aqui para o seu blogue no Le Monde).

O primeiro prende-se com o desagravamento fiscal dos mais ricos que Macron acabou por prosseguir, aliás logo praticamente no início do seu mandato e, imagino, sem qualquer estudo aprofundado de suporte quanto aos efeitos visados e quanto aos aspetos negativos que as medidas visavam combater. O desagravamento fiscal dos mais ricos, seja por via da redução dos índices de progressividade fiscal, seja pela abolição pura e simples de alguns impostos, designadamente sobre as grandes fortunas ou sobre os escalões mais elevados de riqueza, não foi Macron que o iniciou. Aliás, até pode dizer-se que ele chegou tarde a tais práticas, iniciadas bem antes pelos conservadores britânicos e pelos republicanos nos EUA. Sou particularmente sensível ao conceito de fadiga fiscal e às suas consequências desorientadoras para o posicionamento dos cidadãos em democracia. Mas não há dúvida que a fadiga fiscal não é especialmente relevante nos estratos sociais que Macron pretendeu tratar com especial cuidado, desagravando a sua carga fiscal. A argumentação de Macron para justificar o desagravamento e a supressão de determinados impostos quase que se confundiu com o senso comum. A invocação da fuga das principais fortunas para outros países foi um desses argumentos. Não há evidências seguras que esse fluxo tenha sido relevante. O efeito mediático das tropelias de Depardieu em deslocação para os braços de Putin foi apenas isso e sobretudo o resultado de um Hollande em pura perda. Depois, Piketty refere que a evolução do número de propriedades e do volume de riqueza declarado para efeitos de aplicação do imposto sobre a riqueza não parou de aumentar em França, contrariando o referido efeito de fuga. Piketty refere que esse aumento aconteceu em todos os escalões do imposto, sobretudo nos escalões de topo, e o que é mais surpreendente é que as declarações de ativos financeiros suplantaram mesmo os de raiz patrimonial. Quase que apetece dizer que os ricaços franceses se tornaram mais patriotas. Segundo dados de Piketty, entre 1990 e 2017 a uma duplicação do PIB francês correspondeu uma multiplicação por quatro das receitas do imposto sobre a riqueza (quatro mil milhões de euros), estimando o economista francês que esse valor poderia chegar com algumas melhorias de eficiência da máquina fiscal aos dez mil milhões.

Ora, tendo Macron se apressado a suprimir esta carga fiscal sobre os mais ricos, não haveria como evitar a questão sagrada: como financiar essa perda de receita? Dos EUA e do Reino Unido sabemos que muito frequentemente se financia esse desagravamento fiscal com quedas de despesa pública que atingem, como seria de esperar os mais desfavorecidos e a perda de qualidade dos serviços públicos. Em parte também foi isso que sucedeu em França.

Mas Macron avançou depois com o aumento do imposto sobre os combustíveis, pressupostamente ao serviço de uma transição para uma economia de mais baixo carbono em linha com o empenho de França no acordo de Paris sobre as mudanças climáticas. Como já aqui referi em post anterior, a política fiscal para a descarbonização não pode ignorar os custos sociais da transição para um novo paradigma energético. PIketty refere com pertinência que só 10% dos 4 mil milhões de receitas fiscais induzidas em 2018 pelo imposto da descarbonização seria alocado a medidas sociais. E aqui está a raiz do problema. Como o já tinha referido, gato escondido com cauda de fora, o imposto da descarbonização visava na prática financiar o desagravamento fiscal dos mais ricos. Ou seja, por muito de simbólico que possa existir na revolta dos “gilets jaunes”, como Pacheco Pereira o assinalou no último Quadratura do Círculo, neste caso há razões bem evidentes e objetivas para os protestos, por mais infiltrados que eles possam estar. Ao contexto dos tempos do desagravamento fiscal sucede-se hoje um outro em que uma resposta cabal à desigualdade é necessária. Cavalgando uma onda de modernidade energética, Macron não compreendeu, ou o compreendeu demasiado tarde, o novo contexto de ataque à desigualdade. E fadiga fiscal é aquela que atinge os rendimentos do trabalho, essa sim pode minar os comportamentos democráticos.

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