(Thomas Piketty, jornal Le Monde)
(Existem hoje evidências seguras dos erros de gestão
macroeconómica cometidos por Emmanuel Macron, alguns dos quais já referidos em
posts anteriores. Ninguém
melhor e com mais rigor do que Thomas Piketty o poderia fazer.)
Já aqui referi que a pouco cuidada e por vezes
arrogante maneira como Macron geriu a frente macroeconómica interna lhe pode
custar a derrocada política, sobretudo a interligação que pretendeu estabelecer
entre as frentes interna e europeia. Já aqui também referi que a situação em
que se encontram a economia e a sociedade francesas não são pera doce para
qualquer via reformista.
Mas à medida que se vão conhecendo melhor os contornos da gestão macroeconómica
conduzida por Macron a visão do erro fica mais clara.
O economista Thomas Piketty, talvez o mais globalizado economista francês
com os seus trabalhos sobre a desigualdade e a difusão do seu Capital no século
XXI, identifica pertinentemente os dois erros principais, ambos largamente correlacionados
com os protestos populares dos “gilets
jaunes”(link aqui para o seu blogue no Le Monde).
O primeiro prende-se com o desagravamento fiscal dos mais ricos que Macron acabou
por prosseguir, aliás logo praticamente no início do seu mandato e, imagino,
sem qualquer estudo aprofundado de suporte quanto aos efeitos visados e quanto
aos aspetos negativos que as medidas visavam combater. O desagravamento fiscal
dos mais ricos, seja por via da redução dos índices de progressividade fiscal, seja
pela abolição pura e simples de alguns impostos, designadamente sobre as
grandes fortunas ou sobre os escalões mais elevados de riqueza, não foi Macron
que o iniciou. Aliás, até pode dizer-se que ele chegou tarde a tais práticas,
iniciadas bem antes pelos conservadores britânicos e pelos republicanos nos
EUA. Sou particularmente sensível ao conceito de fadiga fiscal e às suas
consequências desorientadoras para o posicionamento dos cidadãos em democracia.
Mas não há dúvida que a fadiga fiscal não é especialmente relevante nos
estratos sociais que Macron pretendeu tratar com especial cuidado, desagravando
a sua carga fiscal. A argumentação de Macron para justificar o desagravamento e
a supressão de determinados impostos quase que se confundiu com o senso comum. A
invocação da fuga das principais fortunas para outros países foi um desses
argumentos. Não há evidências seguras que esse fluxo tenha sido relevante. O
efeito mediático das tropelias de Depardieu em deslocação para os braços de
Putin foi apenas isso e sobretudo o resultado de um Hollande em pura perda. Depois,
Piketty refere que a evolução do número de propriedades e do volume de riqueza
declarado para efeitos de aplicação do imposto sobre a riqueza não parou de
aumentar em França, contrariando o referido efeito de fuga. Piketty refere que
esse aumento aconteceu em todos os escalões do imposto, sobretudo nos escalões de
topo, e o que é mais surpreendente é que as declarações de ativos financeiros suplantaram
mesmo os de raiz patrimonial. Quase que apetece dizer que os ricaços franceses
se tornaram mais patriotas. Segundo dados de Piketty, entre 1990 e 2017 a uma duplicação
do PIB francês correspondeu uma multiplicação por quatro das receitas do
imposto sobre a riqueza (quatro mil milhões de euros), estimando o economista
francês que esse valor poderia chegar com algumas melhorias de eficiência da máquina
fiscal aos dez mil milhões.
Ora, tendo Macron se apressado a suprimir esta carga fiscal sobre os mais
ricos, não haveria como evitar a questão sagrada: como financiar essa perda de
receita? Dos EUA e do Reino Unido sabemos que muito frequentemente se financia
esse desagravamento fiscal com quedas de despesa pública que atingem, como seria
de esperar os mais desfavorecidos e a perda de qualidade dos serviços públicos.
Em parte também foi isso que sucedeu em França.
Mas Macron avançou depois com o aumento do imposto sobre os combustíveis,
pressupostamente ao serviço de uma transição para uma economia de mais baixo carbono
em linha com o empenho de França no acordo de Paris sobre as mudanças climáticas.
Como já aqui referi em post anterior, a política fiscal para a descarbonização
não pode ignorar os custos sociais da transição para um novo paradigma energético.
PIketty refere com pertinência que só 10% dos 4 mil milhões de receitas fiscais
induzidas em 2018 pelo imposto da descarbonização seria alocado a medidas
sociais. E aqui está a raiz do problema. Como o já tinha referido, gato escondido
com cauda de fora, o imposto da descarbonização visava na prática financiar o
desagravamento fiscal dos mais ricos. Ou seja, por muito de simbólico que possa
existir na revolta dos “gilets jaunes”,
como Pacheco Pereira o assinalou no último Quadratura do Círculo, neste caso há
razões bem evidentes e objetivas para os protestos, por mais infiltrados que eles
possam estar. Ao contexto dos tempos do desagravamento fiscal sucede-se hoje um
outro em que uma resposta cabal à desigualdade é necessária. Cavalgando uma onda
de modernidade energética, Macron não compreendeu, ou o compreendeu demasiado
tarde, o novo contexto de ataque à desigualdade. E fadiga fiscal é aquela que atinge
os rendimentos do trabalho, essa sim pode minar os comportamentos democráticos.
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