sábado, 15 de dezembro de 2018

ROMA



(Na intimidade quase familiar da sala do Trindade, oportunidade para uma noite de sexta com um filme notável, um exercício de memória nostálgica sobre o passado da infância, de quando em vez dilacerado pelo encontro com a realidade cruel e violenta. O rigor naturalista do filme não apaga a profunda poesia da memória que dele se respira.)

Não consigo imaginar o ambiente caótico e violento de uma cidade como a Cidade do México. A literatura fantástica que alguns Bolaños nos trouxeram não é seguramente suficiente para imaginar aquilo que alguns amigos documentaram, que tiveram a sorte ou o azar (consoante as experiências vividas) de conhecer o México profundo. O Roma de Alfonso Cuarón é uma verdadeira preciosidade, por vários motivos, mas também pelo simples facto da NETFILIX, sua produtora, ter autorizado a sua difusão em salas de cinema, não em todas e pelos vistos a escolha do Trindade intimista e quase familiar. Eu sei que a sala do Trindade estará próxima das salas que alguns figurões ricaços terão nas suas mansões, mas isso pouco importa, acho que o Roma se for visto com cheiro de pipocas e risinhos parvo-estúpidos à mistura perderia muito da sua poesia nostálgica.

Com suporte num som prodigioso de captação de ruídos e de sons da grande cidade, Cuarón desce às profundidades da sua experiência familiar de um ambiente de média burguesia, num bairro que dá o nome ao filme, para encontrar na narrativa a força de uma personagem notável, o México profundo e de raízes índias, Cleo ou Manita como lhe chama carinhosamente a outra empregada. Numa família de quatro filhos, uma avó e um pai que estará futuramente ausente por motivos de paixão por alguém muito mais jovem, Cleo, a empregada que tudo trata, da ternura aos miúdos, da organização de toda a casa, da limpeza da merda do cão Borras, é a fonte de todo o equilíbrio, antes e depois da tempestade familiar.

O que me espantou no filme é a coexistência de uma calma muito mexicana do dia-a-dia daquela casa num bairro tradicional com a sua dilaceração determinada por momentos de raro confronto violento com o inferno que lá fora se desenvolve (o incêndio numa finca rural, a manifestação estudantil e a sua repressão violenta, que se articula com o parto acidentado de Cleo e o prodígio da cena hospitalar e finalmente o quase afogamento de dois dos filhos da senhora burguesa patroa de Cleo na praia de um resort). A cada clímax de violência sucede-se a calma daquela casa e a força equilibradora de Cleo, mesmo depois de viver o seu drama pessoal de perda da criança.

No meio desta dialética “violência urbana da mais dura versus tenacidade e equilíbrio de uma empregada doméstica”, a referência às artes marciais e ao seu culto por Fermín, o namorado ocasional de Cleo que não assumiu a gravidez desta, é um elemento de dissonância do naturalismo cultivado por Cuarón até ao mais ínfimo pormenor. As imagens do treino de massas daquelas artes marciais são impressionantes, encarregando-se Cuarón de as situar no quadro de uma realidade bem tipicamente latino-americana, as dos esquadrões da morte que matam ao serviço dos interesses mais obscuros.

Roma é um filme poderoso e não deixa de ser paradoxal que seja produzido por uma das forças apontadas à destruição do cinema mais tradicional. E que tenha passado no Porto numa sala que se situa dos lados do cinema de autor ainda acentua mais o seu caráter paradoxal. Mas a ver repetidas vezes para se gozar até à exaustão a força do pormenor.

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