(Na intimidade quase familiar da sala do Trindade,
oportunidade para uma noite de sexta com um filme notável, um exercício de memória
nostálgica sobre o passado da infância, de quando em vez dilacerado pelo
encontro com a realidade cruel e violenta. O rigor naturalista do filme não apaga a profunda
poesia da memória que dele se respira.)
Não consigo imaginar o ambiente caótico e
violento de uma cidade como a Cidade do México. A literatura fantástica que alguns
Bolaños nos trouxeram não é seguramente suficiente para imaginar aquilo que
alguns amigos documentaram, que tiveram a sorte ou o azar (consoante as experiências
vividas) de conhecer o México profundo. O Roma de Alfonso Cuarón é uma
verdadeira preciosidade, por vários motivos, mas também pelo simples facto da
NETFILIX, sua produtora, ter autorizado a sua difusão em salas de cinema, não
em todas e pelos vistos a escolha do Trindade intimista e quase familiar. Eu
sei que a sala do Trindade estará próxima das salas que alguns figurões ricaços
terão nas suas mansões, mas isso pouco importa, acho que o Roma se for visto
com cheiro de pipocas e risinhos parvo-estúpidos à mistura perderia muito da
sua poesia nostálgica.
Com suporte num som prodigioso de captação de ruídos e de sons da grande
cidade, Cuarón desce às profundidades da sua experiência familiar de um ambiente
de média burguesia, num bairro que dá o nome ao filme, para encontrar na
narrativa a força de uma personagem notável, o México profundo e de raízes índias,
Cleo ou Manita como lhe chama carinhosamente a outra empregada. Numa família de
quatro filhos, uma avó e um pai que estará futuramente ausente por motivos de
paixão por alguém muito mais jovem, Cleo, a empregada que tudo trata, da
ternura aos miúdos, da organização de toda a casa, da limpeza da merda do cão
Borras, é a fonte de todo o equilíbrio, antes e depois da tempestade familiar.
O que me espantou no filme é a coexistência de uma calma muito mexicana do
dia-a-dia daquela casa num bairro tradicional com a sua dilaceração determinada
por momentos de raro confronto violento com o inferno que lá fora se desenvolve
(o incêndio numa finca rural, a manifestação estudantil e a sua repressão violenta,
que se articula com o parto acidentado de Cleo e o prodígio da cena hospitalar
e finalmente o quase afogamento de dois dos filhos da senhora burguesa patroa
de Cleo na praia de um resort). A cada clímax de violência sucede-se a calma daquela
casa e a força equilibradora de Cleo, mesmo depois de viver o seu drama pessoal
de perda da criança.
No meio desta dialética “violência urbana da mais dura versus tenacidade e
equilíbrio de uma empregada doméstica”, a referência às artes marciais e ao seu
culto por Fermín, o namorado ocasional de Cleo que não assumiu a gravidez desta,
é um elemento de dissonância do naturalismo cultivado por Cuarón até ao mais ínfimo
pormenor. As imagens do treino de massas daquelas artes marciais são
impressionantes, encarregando-se Cuarón de as situar no quadro de uma realidade
bem tipicamente latino-americana, as dos esquadrões da morte que matam ao
serviço dos interesses mais obscuros.
Roma é um filme poderoso e não deixa de ser paradoxal que seja produzido
por uma das forças apontadas à destruição do cinema mais tradicional. E que tenha
passado no Porto numa sala que se situa dos lados do cinema de autor ainda
acentua mais o seu caráter paradoxal. Mas a ver repetidas vezes para se gozar
até à exaustão a força do pormenor.
Sem comentários:
Enviar um comentário