(Circula por aí uma trova cantada por vozes de direita
que cavalgam a ideia de que a austeridade não mudou, apenas o sorriso com que é
ministrada. Esta crónica desmonta a
diferença entre a austeridade como gestão macroeconómica de crises de
financiamento internacional e a austeridade como manifestação de contenção de finanças
públicas, no quadro de escolhas também públicas, necessárias mas frequentemente
adiadas.)
Ninguém de bom senso ignora a necessidade de
contenção das finanças públicas e das escolhas que a devem suportar. Outra
coisa bem diferente é admitir, de ânimo leve e sem a mínima ponta de juízo crítico,
que a austeridade pela austeridade constitui uma gestão macroeconómica eficaz
de crises de financiamento internacional como a que Portugal viveu na sequência
da sua louca fase dos não transacionáveis a todo o preço. A direita, à falta de
melhor trova, sobretudo o CDS-PP de Cristas, tem praticamente exaurido o tema da
austeridade com sorriso e simpatia, tentando em vão colar o eleitorado à ideia
de que o governo PS afinal não virou a página da austeridade, apenas a terá
pintado de cores mais apelativas.
Um conjunto alargado de economistas insurgiu-se desde cedo com a colagem dos
processos de ajustamento ditados pela crise das dívidas soberanas a políticas
de austeridade, ignorando sobretudo o contexto recessivo que a economia mundial
e a europeia viviam naquele momento. Essa colagem assentou na tese bizarra de
que natural e espontaneamente e sem danos colaterais significativos as economias
responderiam à destruição do mercado interno com a reafectação dos recursos e
do investimento em direção aos mercados externos. Por muito que custe aos
racionalizadores dessa colagem, teria sido possível assegurar uma gestão mais
coordenada dos ajustamentos. Hoje sabe-se, sobretudo através do caso britânico,
que já aqui classifiquei como a mais estúpida insistência nas teses da
austeridade, que tais processos de ajustamento representaram em muitos casos processos
ocultos e não democráticos de reengenharia social, com penosidade impiedosa dos
mais desfavorecidos da sociedade. É esta austeridade que merece a rejeição mais
absoluta e determinada e, ao contrário de se meterem de baixo das saias da
ortodoxia macroeconómica mais abjeta, os sociais-democratas e socialistas
europeus o que têm é de trabalhar para consolidar essa rejeição, preparando-se afincadamente
para uma nova gestão de crise.
Será que um país como Portugal, embora rejeitando a essa equiparação da
gestão macroeconómica das crises às políticas de austeridade, poderá
confortavelmente ignorar a contenção das finanças públicas? Não, não pode,
sobretudo enquanto essa gestão macroeconómica alternativa não estiver consolidada
e continuar a não ter um suporte político que se imponha ao rolo compressor dos
mercados. Para preparar eficazmente o seu desenvolvimento económico e social
futuro e garantir os níveis de investimento que esse desenvolvimento sempre
exigirá, um programa coerente de escolhas públicas tem de ser concebido e
implementado. Não me consta que esse programa esteja em formação. Não tanto o
texto que o deve suportar mas a validação dos custos presentes que deverão
abrir caminho a benefícios futuros, enfrentando a velha questão da política que
muitos se recusam a pegar de frente: as transformações fazem-se anunciando
benefícios futuros que devem ser descontados para o presente e confrontados com
os custos que elas exigem.
O panorama que estamos a viver no Sistema Nacional de Saúde, perante a atenção
interesseira e mórbida dos que o querem destruir e instaurar uma reengenharia
social assente na privatização da saúde diz bem de que esse programa de
escolhas públicas coerentes e firmes não está a ser desenhado. A crise que vive
hoje o SNS começou por ser o produto de ocorrências pontuais ampliadas pela
ditadura do pormenor em que a comunicação social, a mais abjeta e por contágio
a que deveria ter mais contenção. Mas atualmente o estado da arte da desorientação
e da falta de meios ultrapassou já e em grande escala essa multiplicação em
grande escala de situações e ocorrências pontuais. O descalabro é hoje evidente
e os serviços estão presos por um conjunto de profissionais que ainda mantêm
uma cultura arreigada e firme de serviço público. Não tenho dúvidas em afirmar
que o SNS é a conquista mais avançada e de melhor qualidade da democracia portuguesa
após 1974, produzindo um sistema cuja qualidade é mais que proporcional ao nosso
nível de desenvolvimento económico. Haverá profissionais que não entendem essa realização
da democracia e que a pretendem abocanhar com a multiplicação dos seus pequenos
interesses, como se fossem portadores de um direito de saque que alguém lhes outorgou.
Sou dos que penso que uma cultura médica mais moderna pode ser compatível com
gestões hospitalares mais eficientes sem pisar o risco da desproteção dos
utentes do SNS. Mas os portugueses precisam que alguém lhes diga preto no
branco de que é que poderão prescindir para poderem manter um SNS que proteja
os mais desfavorecidos e os mais aflitos (pois nas grandes aflições não me
consta que os mais poderosos não o procurem) qualitativamente acima do que
seria de esperar a partir do nosso nível de desenvolvimento socioeconómico.
O PS tem razão em querer manter um clima de contenção de finanças públicas.
Mas tem de o fazer com base em escolhas legíveis e escrutináveis pelos
portugueses e não em situação de recuo, pouco organizado, face a assaltos
reivindicativos em parte suscitados pela sobrevalorização do êxito macroeconómico
da governação em tempo de geringonça e de fenómenos do tipo WEB Summit. A
economia portuguesa ainda será por muitos anos o palco de confrontos entre o
muito bom e excelente de algumas pontes mais cosmopolitas e o desgraçado estado
de algum passado que teima em sobreviver, de pobreza, de desorganização, de
impunidade. Uma sociedade portuguesa que continuará a produzir a excelência de
Miguel Bastos Araújo Prémio Pessoa deste ano e a permitir a eternização de
figuras grotescas como Jaime Mata Soares ou do pouco recomendável Senhor Montepio.
As escolhas públicas determinantes equivalem sempre a questões simples, pois são
questões de sociedade e de todos e não apenas de elites ou de academias. A
defesa do SNS é das tais, simples e poderosas.
Espero que o programa do PS não contorne estas escolhas. E se essa escolha
for bem entendida pelos portugueses, não haverá seguramente nada que a possa obscurecer.
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