domingo, 16 de dezembro de 2018

AUSTERIDADE, RAIOS



(Circula por aí uma trova cantada por vozes de direita que cavalgam a ideia de que a austeridade não mudou, apenas o sorriso com que é ministrada. Esta crónica desmonta a diferença entre a austeridade como gestão macroeconómica de crises de financiamento internacional e a austeridade como manifestação de contenção de finanças públicas, no quadro de escolhas também públicas, necessárias mas frequentemente adiadas.)

Ninguém de bom senso ignora a necessidade de contenção das finanças públicas e das escolhas que a devem suportar. Outra coisa bem diferente é admitir, de ânimo leve e sem a mínima ponta de juízo crítico, que a austeridade pela austeridade constitui uma gestão macroeconómica eficaz de crises de financiamento internacional como a que Portugal viveu na sequência da sua louca fase dos não transacionáveis a todo o preço. A direita, à falta de melhor trova, sobretudo o CDS-PP de Cristas, tem praticamente exaurido o tema da austeridade com sorriso e simpatia, tentando em vão colar o eleitorado à ideia de que o governo PS afinal não virou a página da austeridade, apenas a terá pintado de cores mais apelativas.

Um conjunto alargado de economistas insurgiu-se desde cedo com a colagem dos processos de ajustamento ditados pela crise das dívidas soberanas a políticas de austeridade, ignorando sobretudo o contexto recessivo que a economia mundial e a europeia viviam naquele momento. Essa colagem assentou na tese bizarra de que natural e espontaneamente e sem danos colaterais significativos as economias responderiam à destruição do mercado interno com a reafectação dos recursos e do investimento em direção aos mercados externos. Por muito que custe aos racionalizadores dessa colagem, teria sido possível assegurar uma gestão mais coordenada dos ajustamentos. Hoje sabe-se, sobretudo através do caso britânico, que já aqui classifiquei como a mais estúpida insistência nas teses da austeridade, que tais processos de ajustamento representaram em muitos casos processos ocultos e não democráticos de reengenharia social, com penosidade impiedosa dos mais desfavorecidos da sociedade. É esta austeridade que merece a rejeição mais absoluta e determinada e, ao contrário de se meterem de baixo das saias da ortodoxia macroeconómica mais abjeta, os sociais-democratas e socialistas europeus o que têm é de trabalhar para consolidar essa rejeição, preparando-se afincadamente para uma nova gestão de crise.

Será que um país como Portugal, embora rejeitando a essa equiparação da gestão macroeconómica das crises às políticas de austeridade, poderá confortavelmente ignorar a contenção das finanças públicas? Não, não pode, sobretudo enquanto essa gestão macroeconómica alternativa não estiver consolidada e continuar a não ter um suporte político que se imponha ao rolo compressor dos mercados. Para preparar eficazmente o seu desenvolvimento económico e social futuro e garantir os níveis de investimento que esse desenvolvimento sempre exigirá, um programa coerente de escolhas públicas tem de ser concebido e implementado. Não me consta que esse programa esteja em formação. Não tanto o texto que o deve suportar mas a validação dos custos presentes que deverão abrir caminho a benefícios futuros, enfrentando a velha questão da política que muitos se recusam a pegar de frente: as transformações fazem-se anunciando benefícios futuros que devem ser descontados para o presente e confrontados com os custos que elas exigem.

O panorama que estamos a viver no Sistema Nacional de Saúde, perante a atenção interesseira e mórbida dos que o querem destruir e instaurar uma reengenharia social assente na privatização da saúde diz bem de que esse programa de escolhas públicas coerentes e firmes não está a ser desenhado. A crise que vive hoje o SNS começou por ser o produto de ocorrências pontuais ampliadas pela ditadura do pormenor em que a comunicação social, a mais abjeta e por contágio a que deveria ter mais contenção. Mas atualmente o estado da arte da desorientação e da falta de meios ultrapassou já e em grande escala essa multiplicação em grande escala de situações e ocorrências pontuais. O descalabro é hoje evidente e os serviços estão presos por um conjunto de profissionais que ainda mantêm uma cultura arreigada e firme de serviço público. Não tenho dúvidas em afirmar que o SNS é a conquista mais avançada e de melhor qualidade da democracia portuguesa após 1974, produzindo um sistema cuja qualidade é mais que proporcional ao nosso nível de desenvolvimento económico. Haverá profissionais que não entendem essa realização da democracia e que a pretendem abocanhar com a multiplicação dos seus pequenos interesses, como se fossem portadores de um direito de saque que alguém lhes outorgou. Sou dos que penso que uma cultura médica mais moderna pode ser compatível com gestões hospitalares mais eficientes sem pisar o risco da desproteção dos utentes do SNS. Mas os portugueses precisam que alguém lhes diga preto no branco de que é que poderão prescindir para poderem manter um SNS que proteja os mais desfavorecidos e os mais aflitos (pois nas grandes aflições não me consta que os mais poderosos não o procurem) qualitativamente acima do que seria de esperar a partir do nosso nível de desenvolvimento socioeconómico.

O PS tem razão em querer manter um clima de contenção de finanças públicas. Mas tem de o fazer com base em escolhas legíveis e escrutináveis pelos portugueses e não em situação de recuo, pouco organizado, face a assaltos reivindicativos em parte suscitados pela sobrevalorização do êxito macroeconómico da governação em tempo de geringonça e de fenómenos do tipo WEB Summit. A economia portuguesa ainda será por muitos anos o palco de confrontos entre o muito bom e excelente de algumas pontes mais cosmopolitas e o desgraçado estado de algum passado que teima em sobreviver, de pobreza, de desorganização, de impunidade. Uma sociedade portuguesa que continuará a produzir a excelência de Miguel Bastos Araújo Prémio Pessoa deste ano e a permitir a eternização de figuras grotescas como Jaime Mata Soares ou do pouco recomendável Senhor Montepio. As escolhas públicas determinantes equivalem sempre a questões simples, pois são questões de sociedade e de todos e não apenas de elites ou de academias. A defesa do SNS é das tais, simples e poderosas.

Espero que o programa do PS não contorne estas escolhas. E se essa escolha for bem entendida pelos portugueses, não haverá seguramente nada que a possa obscurecer.

Sem comentários:

Enviar um comentário