domingo, 30 de dezembro de 2018

TRAÇOS DE 2018 (2)



(Alternando traços marcantes de natureza externa e interna, é hoje a vez de me referir ao 2018 interno, subordinado ao tema “ E afinal o quarto orçamento foi possível” para descrever a confirmação do que tudo indica ser a conclusão de uma legislatura de geringonça. O tema em si oculta outras questões, essas sim bem mais importantes e que, em 2018, se tornaram irremediavelmente mais claras e isso é sempre bom para a democracia.)

O país anda agitado, com uma multiplicidade de reivindicações grevistas a brotar quase todos os dias, procurando à sua maneira disputar o quinhão ambicionado primeiro nas atenções da comunicação social e depois no bolo dos recursos públicos. Curiosamente, os nossos comentadores/palradores de serviço saltaram de um período em que repetidamente que se referiam à calma domesticada que a geringonça estava a comprar na esfera social e política para um outro em que apontam o dedo ao PS pelas cedências que proporcionou nesse mesmo campo do apoio parlamentar à esquerda.

Já aqui expressei preto no branco que o governo de António Costa foi precipitado na invocação do slogan “vamos virar a página da austeridade”. O que o governo deveria ter denunciado com clareza é o erro desastroso de, em contexto de recessão internacional, se ter imposto a austeridade como política de gestão macroeconómica da crise. A expressão acabou por ficar mas rapidamente o governo percebeu que a mensagem fundamental a transmitir era outra, ou seja, que era possível com a melhoria das condições internacionais (apesar da incerteza global que as domina) repor condições de rendimentos e de direitos e manter as contas públicas em progressivo equilíbrio. Podemos discutir se a combinação entre a reposição de rendimentos e de direitos e a melhoria do investimento público poderia ou não ter assumindo outros cambiantes. Não me custa admitir que isso teria sido possível, embora tivesse de tirar o chapéu a quem o conseguisse atingir na negociação social.

O que toda a agitação reivindicativa no plano público está a mostrar, numa espécie de Caixa de Pandora que está longe de ter sido plenamente levantada, é que a Administração Pública, num quadro de reforma do Estado permanentemente adiada e simplesmente maquilhada ao sabor das diferentes maiorias parlamentares, se transformou em material explosivo. A questão da contagem do tempo de serviço dos professores, que o veto do Presidente Marcelo veio reavivar em toda a linha, é toda ela um universo de pormenores e condições que o vulgar dos mortais desconhece e que está muito para além de contar ou não integralmente o tempo de serviço interrompido e de pagar as remunerações correspondentes. As condições estabelecidas de remuneração e progressão das carreiras de muitas das profissões da Administração Pública (quais? É uma boa questão!) transformaram-se num emaranhado de regalias ocultas cujo não conhecimento público lesa a democracia, sobretudo porque induz desconfiança, permanentemente. Para além disso, trata-se de uma máquina pública, contraditória, plena de poderzinhos acantonados em algumas administrações setoriais, cujos órgãos de racionalidade técnica foram morrendo à medida que as máquinas políticas se instalaram. Os incêndios e as pedreiras de Borba mostraram-no à evidência, mas em outros domínios a situação é similar. José Pacheco Pereira costuma dizer frequentemente no Quadratura do Círculo que Portugal não é a Suiça. Pois é óbvio que não é. Por mais importante e democraticamente genuína que seja a barganha social, ela não pode alhear-se do nível de desenvolvimento económico do país e das escolhas públicas que esse nível suscita em termos da dimensão e natureza do Estado, designadamente do Estado Social.

A ideia que está muito generalizada de que “tudo está a rebentar pelas costuras” marcou indiscutivelmente o ano de 2018, ainda que tenhamos de distinguir entre o “rebentar pelas costuras” impressivo e descrito pelas incidências da comunicação social e o “rebentar pelas costuras” real e resultante de escolhas que se foram adiando e de maquilhagens introduzidas a dedo e em função dos que falam mais alto.

A transformação que a economia empresarial privada está a experimentar, essencialmente através do binómio internacionalização-inovação, que se potenciam mútua e virtuosamente não ignoremos isso, é lenta, com uma longa maturação de efeitos, largamente tornada possível por uma linha persistente de política com cofinanciamento dos Fundos Estruturais. É essa transformação que vencerá a prazo a debilidade de capacidade empresarial que historicamente a democracia herdou em Portugal e permitirá ir clarificando o papel do Estado, limitando-o a funções em que ele é mais necessário, como o são a educação, a saúde e as políticas sociais. O ano de 2018 tornou isto mais claro, mas a sua tradução em posicionamentos políticos mais objetivos tarda a manifestar-se.

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