(A educação e a saúde, principalmente esta última, constituem
hoje uma espécie de último reduto para escolhas claras e passíveis de escrutínio
político democrático. Mas, longe de se limitarem a uma escolha de princípios fundamentais, as
controvérsias em torno do futuro do SNS não poderão ignorar o estado da arte do
que se pretende transformar e/ou reorientar e o importante está nesses
pormenores.)
Gostaria que a nova formulação da Lei de Bases da Saúde que será submetida à
Assembleia da República tivesse suscitado um debate mais amplo, sobretudo
porque não sei se a Assembleia da República estará à altura com a elevação
necessária. Interrogo-me se os próprios deputados estarão interessados em que o
debate transcenda os muros da Assembleia. Seria uma boa homenagem quer a António
Arnaut quer a João Semedo.
Por agora, para além do texto que será enviado à AR, sabe-se que houve um
grupo de trabalho criado para elaborar um primeiro modelo de Lei de Bases, que
a Ministra analisou e ponderou para optar por uma versão com diferenças em
relação ao trabalho do grupo constituído para o efeito. Tenho de manifestar
desde já o meu “conflito de interesses”. Tudo que passa pela mão da Dra. Maria de
Belém provoca-me dúvidas e interrogações e neste caso da saúde sabe-se que a Senhora
tem uma posição com alguma proximidade a operadores privados de saúde, o que
reforça as minhas dúvidas.
Tal como anteriormente referi, a educação e a saúde constituem domínios
relativamente aos quais existe ainda um campo aberto de escolhas sobre a
maneira como conduzir tais sistemas do ponto de vista das opções público-privado.
No que respeita à saúde, tenho para mim que a única possibilidade de garantir um
acesso minimamente equitativo aos cuidados de saúde, proporcionando aos mais
desfavorecidos condições de acesso a uma saúde decente, implica a defesa acérrima
e coerente do Serviço Nacional de Saúde. Essa opção pressupõe a gestão de unidades
de saúde públicas, o que não significa que tais unidades possam ser dispensadas
de uma gestão eficiente, que admito poder ser em determinadas condições
assumida por privados com rigorosa regulação e permanente trabalho de avaliação
do seu funcionamento e desempenho. Sem prejuízo desse princípio, admito que há
formas de medicina convencionada que possam ser protocoladas com oferta privada
de serviços de saúde, mas sou profundamente desconfiado quanto ao modo como esses
acordos são concebidos e aplicados. E também não posso ignorar que essa oferta
privada está em evolução para uma concentração significativa, o que nestas
coisas de oferta privada de serviços de saúde é coisa pouco recomendável.
No contexto atual de discussão de uma nova Lei de Bases, a discussão em
torno da mesma não pode limitar-se a um confronto de princípios e de vantagens
e inconvenientes da gestão pública e da gestão privada. O estado da arte da matéria
em discussão não equivale a uma situação imaculada de partida. É da gestão da situação
hoje existente que se trata e não do tipo da discussão registada em Portugal
quando sabiamente António Arnaut e seus pares desenharam as bases do SNS.
Do lado do público, não pode ser ignorado que o SNS tem continuamente
padecido de um crónico subfinanciamento, primeiro através de acumulação exorbitante
de dívidas a fornecedores, designadamente a multinacionais produtoras de medicamentos
e segundo, exacerbado com o programa de ajustamento financeiro, com carências óbvias
de investimento e de recrutamento de pessoal especializado, designadamente
enfermeiros. Mesmo que o SNS estivesse a operar num outro país com outra folga
orçamental e de dívida pública que não a existente em Portugal, uma gestão mais
eficiente seria sempre necessária. Essa gestão mais eficiente exige da totalidade
do sistema de atores que trabalha no SNS uma cultura de eficiência, da qual médicos
e enfermeiros não podem estar alheados com o pretexto de que tais preocupações violam
a autonomia dos atos médicos. Estamos longe ainda dessa cultura de recetividade,
aliás como o sabem alguns médicos que ou repartem a sua atividade no público com
o setor privado ou abandonaram mesmo o público para trabalhar, reformados ou não,
no setor privado. Esses médicos queixam-se frequentemente da dificuldade em se
adaptarem aos ditames da gestão privada, mas a verdade é que o fazem, ao passo
que se tal acontecesse no sistema público raios e coriscos e mil trovões ter-se-iam
multiplicado.
Do lado do privado, há que ter em conta que já lá vai há muito tempo aquela
ideia de que seria a via dos seguros privados de saúde a determinar o ritmo de
evolução dos hospitais privados em Portugal. Por ironia da história, foi um
sistema público, o dos trabalhadores da administração pública ADSE que
alimentou talvez desmesuradamente a oferta hospitalar privada. Não tenho dúvidas
de que se por algum motivo a ADSE entrar em queda e for abandonada assistiremos
a encerramentos sucessivos de inúmeras unidades hospitalares privadas. Salvo reduzidas
exceções mais recentes, o setor hospitalar privado beneficiou na sua acumulação
primitiva de um gigantesco processo de transferência de conhecimento gerado nas
unidades hospitalares públicas. Só muito recentemente alguns grupos privados
começam a desenvolver condições para geração de novo conhecimento nessas
unidades e até de alguma investigação aplicada. Mas durante um longo tempo e
perante a passividade dos reguladores públicos processou-se a referida acumulação
primitiva, dispensando os grupos empresariais responsáveis por tais unidades de
investimentos de primeiro estabelecimento.
Admito perfeitamente que parte dos serviços de saúde que os beneficiários e
cotizadores da ADSE possam perfeitamente ser convencionados com unidades
privadas de saúde, devendo o acesso a tais modalidades poder constar do registo
médico dos cidadãos acessível no SNS. A escolha desses domínios deve ser pública
e bem escrutinada. Mas o que tem que ficar claro é que o país necessita de um
SNS capaz de oferecer serviços de qualidade a toda a população, designadamente
aos mais desfavorecidos, aos que não são funcionários públicos com direito à
ADSE e aos que não auferem rendimentos capazes de suportar um seguro de saúde.
E essa é uma opção que os socialistas verdadeiramente interessados na defesa do
sistema público (não incluo nesta categoria a Dra. Maria de Belém e seus apaniguados)
devem colocar com clareza a escrutínio político democrático. Temos direito a
essa escolha e não a estas escolhas dos entretantos. Se essa opção for maioritariamente
do acordo dos portugueses deverá poder contar com o nível de investimento público
compatível com a qualidade que se pretende garantir. Tudo o que não seja focado
nestes aspetos centrais ou é pura discussão de princípios perdendo de vista o estado
da arte que se pretende transformar ou é conversa da treta para cavar a
progressiva sepultura do sistema público. E se há conquista democrática de
relevo é o SNS.
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