(O Brexit e o beco sem saída em que o independentismo catalão caiu têm sido
objeto de abundantes reflexões neste blogue. Porém, nunca tive a tentação de os
abordar relacionadamente. Nos tempos mais recentes, algumas almas têm sucumbido
a essa tentação, a começar pelo primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez. Não me parece, entretanto, que essa associação seja
virtuosa. Há que chamar as coisas pelos seus nomes.)
À sua maneira e por vias diferentes, o BREXIT e o problema catalão
constituem questões nacionais localizadas, mas que têm contribuído fortemente para
a instabilidade europeia.
Quanto ao BREXIT, por muito que me esforce por compreender a defesa das virtualidades
da democracia britânica com que o José Pacheco Pereira nos tem brindado regularmente
no Quadratura do Círculo, que ele elege como um bom exemplo de resposta aos
diretórios antidemocráticos de Bruxelas, tenho extrema dificuldade em ir por
esse caminho. Para mim, o BREXIT começa por ser o exercício de uns tresloucados
membros da elite política britânica, em busca de uma vã recuperação do estatuto
imperial britânico, como se o mundo não tivesse mudado e como se os britânicos
não tivessem sido ultrapassados primeiro pela hegemonia americana e hoje pela
emergência do epicentro asiático. Alguns desses agitadores de pacotilha, como Nick
Farage (UKIP), já abandonaram a boca de cena, perturbados pela complexidade do
enredo. Mexeram, agitaram, conseguiram mobilizar a reação endógena contra o
cosmopolitismo e a globalização, mas nunca souberam muito bem o que fazer da
agitação que criaram, simplesmente porque estavam apenas preparados para lograr
o êxito da agitação, não para a levar a bom porto. Assim, naquilo que Pacheco Pereira
vê a força de um parlamento nacional que não se vende (também eu tenho simpatia
por aquela maneira de funcionar), vejo essencialmente um logro eleitoral
gigantesco, uma monumental manipulação do processo eleitoral, escamoteando e
escondendo sempre os reais custos de uma decisão (e não foi por inexistência de
estudos consistentes que isso aconteceu), que os britânicos tinham todo o direito
de assumir, desde que estivessem devidamente informados dos custos e benefícios
da mesma. No fundo, a mesma manipulação, orquestrada pelos tabloides britânicos,
do pior que se pode imaginar em matéria de jornalismo viciado, que sempre ocultaram
os custos da estupidez austeritária que os conservadores resolveram querer
seguir, macroeconomicamente falando. Mas também a mesma manipulação que tem
ocultado os processos violentos de reengenharia social a que a sociedade britânica,
naturalmente a mais desfavorecida, tem sido submetida pelos conservadores e que
recentemente um relatório da ONU documentava com firmeza.
Hoje, por todo o mundo, com particular realce para os jornais espanhóis,
grassa uma referência putativamente pouco elogiosa à feminilidade de Theresa
May, invocando “tomates de aço” para descrever a capacidade resiliente da primeira-ministra
britânica para lidar com todo este monumento de irresponsabilidade. De facto,
alguém levantou ventos, não cuidando de prever antecipadamente a sua intensidade
e de preparar as condições internas para dominar as suas consequências. Sou dos
que penso que a Comissão Europeia não tem compreendido bem as vantagens de uma
negociação mais flexível com o o governo de May, sobretudo tendo em conta que não
existe evidência credível que o afastamento de May traga pensamento mais
consequente à negociação (Corbyn que me desculpe). Mas isso não implica que desculpabilize
os agitadores inconsequentes.
No caso da Catalunha, a metáfora dos ventos que se agitam e cujo domínio se
torna incontrolável pode também ser usada. Mas ainda assim, não me convenço que
se trate do mesmo tipo de agitadores de vistas curtas, apenas preparados para
um happening eleitoral. O
independentismo catalão, pelo menos a sua costela mais radical, sabia bem o que
estava a preparar, com todo o arsenal de “agit
pro” a comandar as hostes. Jogaram indefinidamente na ideia de que Rajoy não
quebraria a corda que eles esticaram para além dos limites do aceitável. É
verdade que Rajoy a quebrou da pior maneira colocando a chave do problema na
judicialização do mesmo. Deu-se mal com isso e provocou uma dependência de
percurso que vai continuar a inquinar o processo. Mas, hoje, à medida que vamos
tomando consciência da tentativa de Sánchez de concretizar uma outra abordagem
ao processo catalão, procurando devolver-lhe a dimensão política que Rajoy voluntariamente
anulou, vamos também compreendendo que os independentistas catalãos não revelam
qualquer propensão para facilitar esta via. O aprisionamento de algumas das lideranças
independentistas e a fuga para o exterior de outras representam os fatores de conservação
de fervor independentista que a dinâmica dos acontecimentos estava a perder,
para seu desespero. É que a mistificação da história, embora possível e os
catalães adestraram-se nessa capacidade, não se aguenta sempre, por ausência de
investigação renovada. O movimento precisava de vítimas para manter a energia. No
dia do referendo que não contou, ensaiaram-no com as vítimas da repressão
policial, bem menos intensa do que foi transmitido. A detenção de lideranças e o
processo judicial que se avizinha dão outra força que a mistificação histórica tem
dificuldades em manter viva.
É verdade que os dois processos, o Brexit e a encruzilhada catalã contribuem
para reforçar a instabilidade europeia. Mas a tentação de associar os dois
processos segundo uma lógica única de abordagem é precipitada. Conhecendo o autor
(Xosé Luís Barreiro Rivas, no Voz de Galicia, link aqui)) e estando convencido que vibrou
com a aplicação do 155º à Catalunha, descontando por isso o contexto, não me custa
a admitir que ele tem razão quando o escreve preto no branco e sem paninhos
quentes ou palavras cor-de-rosa: “O Brexit é um
erro enorme e desgraçado, perfeitamente legal e democrático. Já o procès é uma traição
suja, concretizada a partir da ilegalidade, contrária à democracia, e resulta
da insólita reinvenção de uma história tão grotesca como falsa. E essas duas
coisas, presidente (dirigindo-se
a Pedro Sánchez), não se podem comparar”.
O ambiente em Espanha está assim, de cortar à faca.
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