Consegui finalmente ler “O homem que gostava de cães”, do romancista e ex-jornalista cubanoLeonardo Padura. No centro deste longo thriller histórico (614 páginas) está um dos mais célebres crimes do século XX: o assassinato de Trotski por ordem de Estaline – que, sequência da grande disputa pelo poder que se seguiu à morte de Lenine, exilou Trotski e comandou à distância a sua ostracização durante sucessivos anos e em sucessivas paragens até à sua posterior condenação capital. Os outros protagonistas do livro são o assassino Ramón Mercader – um jovem catalão, militante comunista e combatente republicano na Guerra Civil de Espanha que foi recrutado por um agente do NKVD para ser treinado em Moscovo com o objetivo de liquidar Trotski quando Estaline entendesse ser a hora adequada (que chegou numa tarde de 1940 na Cidade do México, após uma peregrinação pessoalmente muito exigente e em que foi adotando várias identidades e nacionalidades, abordadas no livro com alguma dose de elementos ficcionais)– e o inventado narrador Iván – um pacato cidadão e frustrado escritor cubano que, no final dos anos 70, vive num país moldado pela utopia soviética e tropeça ocasionalmente no caso ao vaguear numa praia de Havana.
Quero aqui realçar sobremaneira o notável e complexo trabalho de investigação de Padura, bem como o seu enorme talento e rigor narrativo, elementos bem patentes na diversidade dos lugares e dos tempos – “ora estamos no início do século XX, num flashback em que Trotski conspira com Lenine, ora nos anos 30 a resistir às tropas de Franco ou em pleno terror estalinista, ora no final do século XX, numa praia de onde os balseros fogem de Cuba” – e na “capacidade com que consegue pegar em tantas peças, em tantas geografias – ‘saltamos das serras de Barcelona para os cafés de Paris, das estepes russas para uma ilha turca, do bulício de Nova Iorque para a miséria de Havana, do cinzento de Moscovo para o azul saturado da casa de Frida Kahlo e Diego Rivera’ –, e em personagens com tanta bagagem, e fazer com que tudo encaixe e se articule num fresco épico, sem gorduras e, quando se trata de factos, sem dever nada ao rigor histórico”.
Mas há também a dimensão feminina na obra. Do lado de Trotski, a sua sofrida e resiliente mulher (Natália) e Frida Kahlo, com quem tem um caso vivido com algum remorso. Do lado de Mercader, a sua asfixiante mãe (Caridad del Río) – “presente mesmo quando não está” – e senhora de uma vivência fascinante e contraditória (da fuga para França com os 4 filhos ao anarquismo e depois a quadro ao serviço da União Soviética e amante do responsável dos serviços secretos em Espanha), mas sobretudo um elemento de enorme constrangimento emocional para o filho (que se comporta com ela “como se fosse um menino frágil que a teme”). Do lado de Iván, a relação com Ana enquanto descoberta tardia de uma felicidade possível num quadro envolvente de pobreza e miséria.
Em suma: um contributo brilhante na perspetiva de um melhor conhecimento concreto da história e das tragédias do século XX que põe a nu a perversão estalinista do ideal socialista e evidencia também a experiência de Cuba quando adotou o modelo soviético. Mas também um romance fino e bem escrito sobre as contingências que sempre marcam a vida individual de cada um. Por tudo isto, “um romance que não se consegue parar de ler apesar de começar sabendo-se exatamente como termina”.
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