sábado, 29 de dezembro de 2018

TRAÇOS DE 2018 (1)

(http://www.ambientelegal.com.br/populismo-catarse-e-tragedia/)


(Breves notas sobre alguns traços marcantes de 2018, selecionados do ponto de vista de temas que, independentemente de terem ocorrido no ano que termina, foram em 2018 melhor compreendidos e configuram tendências estruturais que estão para ficar. Oportunidade para insistir ou apontar novos elementos a matérias já tratadas em posts anteriores. O tema de hoje é o populismo.)

O ano de 2018 marca a afirmação, em alguns casos parlamentar e até de governo, nos sistemas democráticos de forças e movimentos políticos que exploram as regras que regem esses sistemas para as subverter e negar os princípios da tolerância e da liberdade. O termo que mais defensores suscitou para descrever a raiz comum dessas forças e movimentos é o de populismo. Há também quem os identifique com a designação de democracia iliberal, pois uma das suas características é a utilização frequentemente manipulada de eleições, embora em muitos exemplos com ataques hoje já não dissimulados a alguns pilares das sociedades democráticas como o são, por exemplo, a comunicação social e a liberdade política e de opinião.

Das dimensões disciplinarmente multifacetadas que o populismo abrange, com múltiplas ligações para a ciência política e ciências sociais em geral, obviamente a que mais me interessa é a económica. Como aqui salientei em devido tempo, a obra mais profunda e motivadora que 2018 nos trouxe foi a de Barry Eichengreen, The Populist Temptation (Oxford University Press), com a vantagem de se tratar de um economista (Universidade de Berkeley, colega de corredor de ouro economista profusamente citado neste espaço, Bradford DeLong), conhecido dos portugueses através das suas crónicas traduzidas regularmente no Expresso Economia. Através de Eichengreen, compreendemos que nos seus matizes diversificados, à direita e à esquerda, o populismo encerra sempre uma combinação variável de revolta ou marginalização contra as elites, de autoritarismo e de tendências nacionalistas, assumindo estas, isolada ou conjuntamente, as variantes do nacionalismo económico, da rejeição do outro, mesclada de supremacismo e infelizmente nos últimos tempos de rejeição, intolerância e até perseguição de imigrantes e outras minorias.

O interesse que dedico à dimensão económica do populismo tal como Eichengreen o define prende-se com o facto das forças e movimentos políticos que se reivindicam de uma representação mais efetiva do povo do que a praticada pelas indesejáveis elites necessitarem de populações com queixas efetivas seja porque as elites as marginalizaram, seja porque algum facto económico as prejudicou em termos de rendimento, emprego, condições de acesso a serviços públicos ou em termos de condições de vida em geral. Ou seja, o populismo precisa de combustível para atiçar fogos sociais. Esse combustível tanto pode ser de origem económica como resultante da exploração do medo. Entre os combustíveis de dimensão económica, a globalização e no caso dos Europeus a própria União Europeia e/ou zona Euro constituem os de maior utilização pelo discurso populista, manifeste-se ele nos EUA, no Reino Unido, em Itália ou nos países do leste europeu. Neste último caso, a União Europeia é o papão cuja aproximação é explorada, mas esses países não têm pelo menos a coragem de um abandono. Quanto à exploração do medo, ela tem-se processado por um discurso de total falsidade quanto à ameaça da imigração e dos refugiados. Com a exceção da Alemanha, em que a dimensão dos fluxos de entrada de refugiados impõe algum respeito de compreensão, nos restantes países em que a exploração do medo pela invasão externa é explorada a tónica comum é a total falsidade do argumento, como o ilustram os números dos fluxos de entrada observados nesses países.

O ano de 2018 mostrou à evidência como o facto de se terem ignorado os apelos da crítica reformista da globalização e da própria União Europeia e projeto do Euro, com particular recriminação para os socialistas e sociais-democratas europeus que perderam uma oportunidade histórica para liderar esse processo, abriu uma passadeira vermelha, em grande estilo, aos populistas de expressões diversas para cavalgarem essa onda. E, por isso, o ano de 2018 parece que cavou em mim próprio uma contradição aparentemente insanável. Vi-me a defender que a inversão histórica do processo de globalização, cavalgada pelas teses populistas, é bem mais perigosa do que os riscos de uma reforma incremental desse mesmo processo, eivado de dificuldades como todas as teses reformistas hoje enfrentam. Aliás, em linha também com a minha convicção de hoje que a destruição do projeto europeu é bem mais nefasta do que o limbo em que a sua reforma se encontra. Por mais estranho que isso possa parecer face às minhas posições anteriores, a destruição do processo de globalização e da construção europeia são bem mais ameaçadores do que todas as dificuldades para a sua reforma, sobretudo ao serviço de uma melhor distribuição dos seus benefícios e de uma adequada compensação social dos seus custos. A batalha contra a afirmação dos populismos também passa por aqui e é imperioso que a social-democracia europeia o compreenda, sob pena de perder também a batalha com os radicalismos económicos de esquerda, que pelo menos nos EUA irão marcar as futuras eleições americanas e seguramente as primárias entre os democratas.

Quanto à marginalização das elites, o ano de 2018 mostrou que também aqui uma certa ciência económica colocou a sua passadeira vermelha para que isso acontecesse. Simplesmente, aqui a reação é forte, ainda que o establishment académico tenha muita força e abundantes mecanismos de reprodução lhe garantam bastiões de derrube muito difícil.

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