sábado, 31 de março de 2012

RIO INDIGNAÇÃO


Posso estar enganado mas através do que li e ouvi até ao momento, parece-me ter sido Rui Rio o primeiro, ou pelo menos o que o fez com maior solenidade, a reagir à notícia de que seria a Caixa Geral de Depósitos a financiar, em cerca de 2/3, a operação de aquisição de ações da Brisa de modo a controlar integralmente o capital da BRISA.
E fê-lo com algum aparato na Conferência de encerramento dos "Grandes Debates do Regime" promovidos pela Câmara Municipal do Porto que acolhia a intervenção de Jorge Sampaio. E não tenho qualquer relutância em o afirmar que o fez com toda a razão e pertinência.
Numa situação em que o crédito à economia real e sobretudo ao setor dos transacionáveis (exportação) está longe de estar fluido, mas bloqueado, e que a mudança na afetação de recursos deve penalizar claramente os não transacionáveis, interrompendo o ciclo da penalização do Estado abundantemente recriado com a parcerias público-privadas, a estratégia de atribuição de crédito da Caixa Geral de Depósitos é incompreensível. Sabendo que a estratégia de controlo da empresa é estritamente um problema do Grupo Melo não será seguramente uma vaga ideia de manter a Brisa sob controlo nacional que pode justificar a operação, acaso ela venha a verificar-se. Caso se verifique, isso demonstrará que o “El Dorado” dos não transacionáveis infraestruturais, de que as autoestradas são o representante mais inequívoco, mantém a sua força apesar de todo o discurso retórico das reformas estruturais. Se é para isto que existe um banco público vou ali e venho. É talvez um pormenor mas se a informação for informada a indignação vai muito para além da pose de Estado que Rui Rio quis transmitir. É mesmo um sinal de que, para além da utilização consciente do memorando da Troika para fazer passar um modelo não politicamente escrutinado de Estado mínimo, não há uma ideia estratégica de futuro para a economia portuguesa. Para além da captura do Estado temos a captura do crédito e escasso como ele está trata-se de facto de uma excelente caçada.

EUROPA ILUSTRADA 2012 (III)

Com a devida vénia aos autores e aos jornais de publicação [respetivamente, o franco-britânico Nicolas Vadot em “L’Écho”, Bruxelas (http://www.lecho.be), o belga Jacques Sondron em “Ethnos”, Atenas (http://www.ethnos.gr), Chris Riddell em “The Guardian”, Londres (http://www.guardian.co.uk), Martin Rowson em “The Guardian”, Londres (http://www.guardian.co.uk), Rachel Gold em “The Vienna Review” (http://www.viennareview.net), Timothy Goodman em “Bloomberg” (http://www.bloomberg.com), Arcadio Esquivel em “La Prensa”, Panamá (http://www.caglecartoons.com) e Jos Collignon em “De Volkskrant”, Amesterdão (http://www.volkskrant.nl)], aqui fica uma síntese ilustrada de um Março europeu largamente dominado pelo perdão da dívida grega e pelo relativo interlúdio por ele gerado nos mercados, mas que também ficou marcado pela assinatura do pacto orçamental, pela presença impositiva de Mario Draghi e do BCE, pela infrutífera espera de políticas orientadas para o crescimento, pelo recrudescimento de inquietações em relação à situação espanhola e pela atribuição do Grande Prémio “Press Cartoon Europe” de 2012 a “Crisis”.

USUFRUIR O TEMPO



Com uma chuva providencial (não sei se em resposta às preces insistentes da Ministra Cristas) a vivificar os arrozais bordejantes do Sado, a rede de aglomerados urbanos do Alentejo Litoral (Alcácer, Santiago do Cacém, Santo André, Grândola, Sines e Odemira) debateu ontem na Pousada D. Afonso II o lema “Regenerar para atrair”, com o meu contributo (esquematizado no último post), Professora Ana Maria Freitas (Universidade de Évora) com o tema do turismo cultural e criativo e Dra. Maria João Vasconcelos com o tema da comunicação. A moderação coube ao jornalista Pedro Brinca, docente na ESSE do IP de Setúbal e diretor do “Setúbal na Rede”.
O meu conceito de competitividade baseado no tema inimitabilidade e das combinatórias de recursos que a podem assegurar vai fazendo a sua progressão, carecendo agora de uma métrica para o tornar operativo do ponto de vista da progressão.
A outra mensagem da focagem nos recursos inimitáveis que podem alterar significativamente a perceção global sobre o território convergiu bastante com as mensagens dos restantes intervenientes e, para meu espanto, observou-se alguma unanimidade entre as várias presenças institucionais no debate. O projeto da Herdade da Comporta esteve representado, bem como o grupo Pestana anfitrião da Pousada D. Afonso II. CCDR Alentejo, Entidade Regional de Turismo e pólo de desenvolvimento turístico do Alentejo Litoral também animaram a discussão e em todas estas entidades o tema do combate à atomização das mensagens de comunicação e a focagem num posicionamento que transmita a diferenciação (inimitável) e por isso competitiva do Alentejo esteve alinhado em posições muito convergentes.
E no seio desta convergência registei com agrado que a entidade regional do turismo não abandonou a ideia do tempo alentejano como grande mensagem comunicacional capaz de fazer a diferença e de consolidar o perfil de visitante que tem demandado com insistência este território. É também em torno desta ideia de tempo que temos concebido a estratégia de atração de residentes para este território – a ideia do SLOW LIFE INTELIGENTE.
Não me recordo da expressão portuguesa que marca a referida mensagem comunicacional em torno do tempo alentejano, mas as expressões em língua inglesa e francesa são de uma grande profundidade e penso que marcam bem a força diferenciadora do território:
TIME IS EVERYTHING
LE TEMPS EST TROUVÉ
A expressão francesa é particularmente tocante. Outra coisa bem diferente será encontrar financiamento nacional para construir um plano comunicacional que dê corpo e expressão à valia destes dois temas. E aqui continuamos a brincar aos esforços de comunicação a uma escala tão pequena que dificilmente os impactos estarão garantidos.
Outra ideia que despertou amplo interesse entre os autarcas presentes foi a minha pequena provocação aos grupos empresariais representados no debate. A base patrimonial e vivencial urbana do Alentejo, a ruralidade de excelência e próxima dessa convivialidade urbana e a paisagem que corporiza o lema do LE TEMPS EST TROUVÉ são indiscutivelmente bens públicos sobre os quais a combinatória para a inimitabilidade deve ser construída. Mas neste caso, dada a relevância desses bens públicos para os produtos e públicos focados por projetos como o da Herdade da Comporta ou os Alqueva Resortes de Roquette e companhia (mais Roquette do que companhia nas condições atuais de mercado), seria importante que o financiamento privado internalizasse no seu cálculo económico algum contributo possível para a sua preservação. Os representantes privados presentes não tugiram nem mugiram. Mas principalmente o autarca de Alcácer registou e apreciou bastante a ideia.
Uma última nota para louvar o trabalho de recuperação da memória da presença muçulmana em Alcácer através do seu projeto da Cripta Arqueológica que honra a arqueologia portuguesa. A multiculturalidade dos nossos assentamentos antecipou no tempo uma capacidade única de interlocução com diferentes civilizações e será em torno desta capacidade que poderemos conquistar um lugar no mundo à nossa escala e dimensão.

ESTA É A MINHA CIDADE…

Acabo de regressar tardiamente a casa, vindo de uma noite improvável e quase “mágica”. Falo de uma criação do “Teatro do Vestido” que, após quatro edições referentes à Lisboa de que são originários os principais membros do grupo, esteve em apresentação esta semana no Porto. E devo a um encontro casual em Serralves com a Presidente do Conselho de Administração do Teatro Nacional S. João (TNSJ), Francisca Carneiro Fernandes, o facto de ter acedido ao conhecimento desta tão interessante produção.

Executado sob a direção de Joana Craveiro, “Esta é a Minha Cidade e Eu Quero Viver Nela” é por ela definido como um “projeto de intervenção e colaboração”. O que explica do seguinte modo: “intervenção, porque o projeto parte da cidade, é sobre a cidade, é para a cidade e é algures na cidade”; colaboração, porque funciona com base num convite a alguém exterior à companhia “para desenvolver um projeto performativo durante duas semanas”.

No caso em apreço, a experiência teve a novidade de ocorrer numa cidade estranha ao grupo, descoberta com a colaboração de Victor Hugo Pontes e Sofia Dinger e beneficiando de uma coprodução assumida pelo TNSJ. O projeto centrou-se no Mosteiro de São Bento da Vitória e no seu entorno paisagístico, histórico e vivencial. Duas horas e meia de caminhada pelos meandros da freguesia (entre ruas como a das Taipas, de Belmonte, de São Miguel, do Calvário ou das Virtudes e locais como a Capela de São José, a casa de Almeida Garrett, o Jardim da Cordoaria ou o miradouro do largo da Bataria da Vitória) na companhia de sete talentosos intérpretes e conduzido pelos olhares, memórias e interrogações que os mesmos nos iam desvendando. Magnífico
!

sexta-feira, 30 de março de 2012

UM RUMO E UM ATIVO!

Foi o “Cunhal dos pequeninos”, dissidiu, passou a “cardeal” de Guterres, notabilizou-se publicamente como “Aspirina Moura” (no satírico “Contra-Informação” da RTP), deputou com Sócrates e abandonou o Parlamento para ser gestor a tempo inteiro (da Media Capital/TVI à Iberdrola).

Promessa cumprida em 2007 (“eu reformar-me-ei” da política, dissera em 2000), não resistiu depois, entre várias pérolas periódicas, a enaltecer o “mais focado” programa governativo de Ferreira Leite nem a desempenhar um papel de ator televisivo secundário no “Contas à Vida” (protagonizado pelo inefável Braga de Macedo).

Declarou hoje: “Pela primeira vez nos últimos dez anos, este Governo mostrou que tem um rumo para enfrentar as dificuldades e para virar a situação estrutural da economia portuguesa. Esse rumo é, digamos, o principal ativo que até agora a política de austeridade tem deixado.”

Subsídios para definir um percurso/pensamento…

“VAMOS DIZER QUE NÃO”

Lê-se num fôlego, tem escrita simples e agradável, inclui detalhes deliciosos e cheios de humor, sobrepõe harmoniosamente enredos sob a vaga de fundo do Chile atemorizado que se prepara para rechaçar Pinochet em referendo (1988). Refiro-me a “Os Dias do Arco-Íris”, o livro que venceu o IV Prémio Ibero-americano Planeta-Casa de América de 2011.

O autor é Antonio Skármeta, chileno de origens croatas, intelectual de esquerda (membro do MAPU que integrou a Unidade Popular de Allende), ex-exilado durante a ditadura (Argentina e Alemanha), ex-embaixador e sobretudo reconhecido pela obra “O Carteiro de Pablo Neruda” que o cinema consagrou em 1995.

Esta novela agora editada em português pela nova chancela da Afrontamento (Teodolito) é definida pelo próprio como de “dichas y quebrantos” – os mesmos dois materiais que formam o canto de Mercedes Sosa em “Gracias a la vida” – na seguinte base: “quebranto porque é uma novela que narra momentos muito duros da repressão, que doem quando se recordam, e fortuna porque o Chile encontrou, para sair dessa angústia e desse tormento, um caminho de paz que lhe deu estabilidade e progresso”.

Começa assim:
“Na quarta-feira levaram o professor Santos preso.
Nada de estranhar, nestes tempos que correm. Só que o professor Santos é o meu pai.
Às quartas de manhã temos filosofia, depois ginástica e a seguir duas aulas de álgebra.
Vamos quase sempre os dois juntos para o colégio. Ele faz o café e eu estrelo os ovos e ponho o pão na torradeira. O papá gosta do café forte e sem açúcar. Eu bebo-o traçado com leite, e embora também não lhe deite açúcar, mexo a colher na chávena como se tivesse posto.
Este mês, o tempo tem estado mau. Faz frio, cai uma morrinha e as pessoas agasalham o nariz com os cachecóis. O papá tem uma gabardina clara, de cor bege, como as dos detectives nos filmes.
Eu visto um casaco de couro preto por cima do uniforme. As gotas escorregam na pele e não conseguem molhar-me. Até ao colégio, são cinco quarteirões. Quando saímos do elevador, o papá acende o seu primeiro cigarro e vai-o fumando lentamente mesmo até à porta do liceu.
O tabaco dura precisamente até esse ponto, e então atira-o ao chão e faz-me um gesto teatral para que eu esmague a beata com o sapato. Depois entra na sala de professores para ir buscar o livro de ponto e quando entra na nossa aula pergunta onde é que tínhamos ficado, a última vez.”

E termina, quase premonitoriamente, assim:
“- Vamos voltar ao poder, Bettini – sussurrou-lhe ao ouvido. – Desta vez passo a passo, passinho a passinho, votinho a votinho.
- São as veleidades da democracia. O que a nós nos custou sangue, suor e lágrimas a conseguir, os senhores vão poder gozá-lo sem mexerem a ponta de um cabelo. Um dia, os exageros das estatísticas falarão a vosso favor. São as regras do jogo. Aplausos, senhor ministro. O que importa é que não andem a matar pessoas.”

O miolo, esse, tem muito mais com que nos preencher/surpreender…

quinta-feira, 29 de março de 2012

ANDARILHO


Tal qual andarilho das ideias em torno dos modelos de desenvolvimento territorial, estarei amanhã em Alcácer do Sal para debater o tema “Regenerar para atrair”, numa iniciativa de animação da rede de aglomerados do Alentejo Litoral, acolhida pela Câmara Municipal de Alcácer do Sal na Pousada do Castelo.
A minha participação no tema resulta do meu interesse recente pelas estratégias de atração de residentes em regiões carenciadas de dinâmica de rejuvenescimento demográfico e de capacidade de empreendimento, que tenho vindo a desenvolver em territórios do Alentejo.
A intervenção de amanhã discute essencialmente a possibilidade de emergência de conflitos entre a atração de residentes e a valorização do turismo nos territórios do Alentejo Litoral, que justifica o tema escolhido para esta fase de animação da rede: Regenerar para Atrair.
O modelo de abordagem ao tema da convergência/conflito entre estas duas dimensões do modelo de desenvolvimento territorial parte de uma evidência frequentemente ignorada neste tipo de experiências de desenvolvimento local: a necessidade de focagem clara quer dos modelos/produtos turísticos a explorar, quer dos públicos-alvo em torno dos quais deve ser promovida a estratégia de atração de residentes.
O argumento base é o seguinte:
  •  Ser hoje competitivo é o resultado de combinatórias de recursos que asseguram por algum tempo alguma inimitabilidade aos territórios;
  •  Mas essa inimitabilidade tem de ser reconhecida pelo mercado, qualquer que ele seja;
  •  Por isso, para além dos recursos e da visão sobre eles que tendemos a construir, o importante está na perceção dos outros, a perceção formada a partir do exterior;
  •  O que suscita a necessidade de ter em conta a perceção global do território e perceções de públicos específicos;
  • É neste contexto que a focagem é crucial, sem focagem não é possível influenciar processos de perceção global sobre os territórios.
Uma viragem se impõe: Organizar a oferta? Sim, é óbvio e onde há muito para fazer (questão organizacional, cooperação entre recursos). Mas sobretudo pensar do ponto de vista da procura, pensar a partir de visões exteriores sobre o território.
Com base nestes princípios, discuto as duas dimensões que condicionam a decisão (tradicionalmente pesada em Portugal) de deslocalizar residência:
  •  A que é influenciada por uma oportunidade de emprego que a pode exigir;
  • A que acompanha um projeto de mudança de trajetória de vida com ou sem o desenvolvimento de uma atividade empresarial.

O lema “Regenerar para atrair” joga bem com três ativos específicos que diferenciam o Alentejo:
  • Base patrimonial e vivencial urbana;
  • Ruralidade e mais valias ambientais próximas;
  • Vinho – gastronomia – cultura.
A valorização do estilo de vida residencial que o Alentejo pode oferecer é compatível com o posicionamento de vários Alentejos:
  • Um Alentejo mais tecnológico e empreendedor;
  • Um Alentejo mais cosmopolita e internacionalizado;
  • Um Alentejo que valorize mais a incorporação de conhecimento.
  • Um Alentejo que combine melhor a qualificação e a valorização dos seus fatores culturais mais representativos
  • Um Alentejo de “short-breaks” turísticos e outros produtos atraídos pela vivência desse estilo de vida.

JOSÉ VALENTE

José Alberto Carvalhais de Sousa Valente. Nascido no Porto a 29 de Março de 1952. Há 60 anos, pois. Parabéns, Zé Valente!

Reproduzo abaixo a sua última crónica “Carta a um ex-aluno”, extraída das páginas do “Público” (17 Novembro 1994), onde escrevia no quadro da coluna “Da Outra Margem” (que reunia, rotativa e semanalmente, seis docentes da Faculdade de Economia do Porto: José Valente, Augusto Santos Silva, Daniel Bessa, Elisa Ferreira, Oliveira Marques e eu próprio).

“Fica desde já decretado que usarás gravata. É natural: são cada vez mais as situações em que somos obrigados a exibi-la. Felizmente, não são as mais agradáveis. Claro que terás licença de porte de jeans ao fim de semana, mas a gravata é o ritual iniciático com que marcarás a entrada na idade adulta.
Pensarás agora em fazer carreira. E carreira é uma coisa que se faz subindo. Alguns sobem por ser do partido; outros, apesar de não o serem. Distingue-os o facto de os primeiros serem muito mais numerosos e de a sua ascensão ser substancialmente mais fácil. Poderás manter as tuas convicções, mas deverás optar por um prudente lusco-fusco: a afirmação da diferença exigirá que sejas profissionalmente muito melhor para que te tolerem. Mais vale não arriscares: entre a fidelidade e a competência, o poder que temos opta sempre pela primeira.
Deverás, portanto, ser cauteloso. Antigamente, em cada organização havia um pide e toda a gente sabia quem era. Agora, tudo é muito mais leve, mais solto, mais terra-a-terra: o tipo que nos trama sorri-nos da secretária ao lado. Ou então foi a outra, aquela que, ainda na faculdade, passou, de repente, a cumprimentar só com um beijinho, como, de imediato, passaram a fazer a cabeleira dela, a manicura dela e a costureira dela. De qualquer modo, a denúncia foi feita na reunião do partido e já ninguém vai preso por subversão. Apenas nos comunicam que não fomos promovidos ou que o nosso contrato não foi renovado. Por razões estritamente técnicas.
Entre um slogan e um argumento, escolherás sempre o primeiro: a argumentação, como se sabe, é um sinal da mais confrangedora tibieza. Se te couberem em sorte alguns subordinados, assumirás o protagonismo nos bons momentos e deixar-lhes ás o ónus dos momentos maus. Os subordinados foram feitos exatamente para isso. E se, mesmo assim, te vires em dificuldades, escolherás alguns deles, elogiá-los-ás publicamente de modo excessivo e demiti-los-ás logo que possas. Se os teus erros exigirem a exposição pública de um culpado, que, pelo menos, não sejas tu. Terás, é claro, que pôr de lado esse apego à solidariedade: vives sob um poder que tem o autoritarismo como gramática, o pragmatismo como prontuário, a hipocrisia como respiração.
Claro que a indignação nos prega partidas. Se um dia a náusea começar a estrebuchar, talvez seja prudente resistires. A coerência é um luxo que, muitas vezes, se paga caro. Umas boas férias poderão ajudar.
Retemperado, poderás derramar sobre essa revolta a condescendência de um sorriso.
Mas se, mesmo assim, não te resignares à surdina do ressentimento, invocarás como justificação um excesso de juventude. Deverá ostentar nessa invocação o mais genuíno arrependimento. O poder adora arrependidos e concede-lhes sempre um perdão compadecido e o correspondente subsídio de instalação.
Mas se nada disso bastar, se o cansaço te encalhar num monte de urtigas e a repulsa meter uma bala na câmara, talvez possas improvisar conselhos a um qualquer ex-aluno. Deverás destinar a essa carta a mais secreta das tuas gavetas. Ou então, resta-te assumir que és um caso perdido. Com a vertiginosa alegria de saberes que, apesar de tudo, a adolescência continua a cascatear-te baixinho por dentro.”

Mas esta evocação não ficaria completa se não incluísse também uma referência ao político que o Zé mais admirava. Com toda a justiça, sublinhe-se. A dificuldade esteve na escolha de entre imensas passagens possíveis. Fica a seguinte, premonitoriamente escrita – o Zé tinha coisas! – há mais de dezoito anos (25 Novembro 1993):
“Cavaco Silva que, segundo sou forçado a admitir, foi, em tempos, criança, vai reincidindo nestas práticas por vocação de berço. Adivinho que, ao tapar os olhos no jogo das escondidas, punha os dedos em V – hábito que ainda hoje cultiva nos acenos à multidão. Ao jogar a bisca lambida, aparecia-lhe na mão, quando baralhava, uma invejável sequência de trunfos. No bom-barqueiro, não escolhia entre ananás e morango em função da excitação das papilas, mas porque alguém lhe soprara qual o grupo mais forte. Quando desfolhava malmequeres, não por paixão, mas por mero exercício estatístico, contava antecipadamente as pétalas para não correr riscos.
Dizem que não tem cultura democrática. Erro grosseiro – até porque a cultura se adquire. Não. Este e outros embustes não são um problema de cultura, mas de estrutura. E quem, em época de abundância, demonstrou tão pouco apego à democracia, no tempo em que as vacas se tornam esbeltas fará toda a batota que puder.”

Salve, amigo!