O post de Freire de Sousa sobre o aplauso a Mário Draghi
suscita um debate interessante, pois coloca o problema de saber o referencial a
partir do qual devemos aplaudir ou suscitar reticências.
Em primeiro lugar, serve e bem para marcar uma posição relativamente
a alguns comentadores que, como Rui Tavares no Público na semana passada, se
insurgia radicalmente contra a injeção de tamanho montante de liquidez na banca,
segundo um radicalismo algo primário e que sobretudo não entende o problema
bicudo que a crise das dívidas soberanas provocou no sistema bancário e
consequentemente na variável crucial do crédito.
Aplauso também do ponto de vista da sua maior autonomia
comparativamente a um monocórdico Trichet e sobretudo da sua sobriedade de
resistência à hipocrisia financeira alemã que, como dizia Münchau na sua última crónica no Financial Times, parece
que só agora compreendeu como é que funciona uma união monetária.
Mas a questão do aplauso depende muito a meu ver, do
ponto de vista de saber se avaliamos a sua atuação no quadro da base estatutária
do BCE que tem obviamente de respeitar. Ou, se pelo contrário, colocamos em
questão essa base estatutária. Não é indiferente. Na verdade, as duas operações
de financiamento a três anos que o BCE assumiu, e através das quais injetou
liquidez na banca e deu a esta margem de manobra para esta intervir, acabam por
ser uma via apenas indireta para tentar minimizar a questão central da dívida. Uma
parte considerável da liquidez injetada acaba por não chegar ao mercado da dívida
e por isso o impacto sobre as taxas não é tão decisivo como alguns comentadores
o admitiam. É óbvio que se pode dizer que sem consertar primeiro os desequilíbrios
da banca dificilmente o crédito poderá de novo fluir.
Por isso, o debate continua sobre a necessidade da zona
euro ter um banco central que se assuma como tal e deixe de esgotar energias
nas chamadas vias indiretas. Não é por isso indiferente o referencial para o
aplauso e para as reticências. Que ganhou tempo não há dúvida. Que a via
indireta tenha muita elasticidade já tenho as minhas dívidas. Que a sua posição
dá mais segurança em matéria de controlo da impetuosidade alemã, merece por si
só aplauso. Mas ainda hoje, no Financial Times, Paul de Grauwe, um dos economistas
mais convictos e consistentes sobre a necessidade dos “eurobonds” e
consequentemente sobre uma outra base estatutária de intervenção para o BCE,
assinalava os efeitos não desprezáveis das duas operações do BCE sobre o
adiamento possível por parte da banca da correção dos seus balanços. O outro
risco é a própria ação do BCE ser atraiçoada pela crise fiscal de outra natureza
que a via da austeridade pode provocar: a diminuição abrupta de receitas
fiscais.
Por isso, Draghi será provavelmente um daqueles líderes a
quem cabe a ingrata tarefa de conduzir com competência certas transições que,
mais tarde ou mais cedo, exigirão soluções mais estruturais. Aplauso inequívoco
para essa liderança. Reticências que ele próprio reconhecerá existirem e que,
na sua posição e sem um respaldo político suficientemente forte, não poderá por
si só superar.
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