domingo, 18 de março de 2012

AINDA A CAPTURA DO ESTADO


Num fim de semana marcado pessoalmente pela busca um pouco inglória por massas relevantes de amendoeiras em flor e por um mergulho de circunstância pela interioridade do Douro Superior (espantoso nível de ocupação de solo e maximização de fundos europeus agrícolas), detenho-me um pouco na catadupa de notícias, testemunhos, crónicas, entrevistas, trabalhos de análise jornalística produzidos neste período.
O tema central é ainda a demissão do Secretário de Estado da Energia Henrique Gomes e a sua associação ao tema central das rendas elétricas, mas uma grande parte do material publicado podia ser facilmente prolongado para outras formas de relacionamento pouco claro e transparente entre Estado e grupos empresariais, com extensões para o próprio mundo da governação, das diferentes entidades de regulação e para o tema ainda mais controverso das parcerias público-privadas.
O mais pertinente denominador comum de todo este aparente consenso em torno destes temas parece-me ser o da captura do Estado por grupos de interesses privados, ou na fórmula inversa o Estado refém das pouco transparentes formas de contratualização entretanto ensaiadas.
No tema das rendas elétricas, a algazarra dos comentários é bem audível, embora o número de contributos para uma divulgação mais objetiva dos números e das condições em discussão seja bem menor. O Expresso foi uma exceção a esse ambiente geral de pouca profundidade na matéria concreta em discussão com uma tentativa de decomposição legível para o consumidor da fatura elétrica, pela qual se compreende a complexidade do sistema de apoios que se cruza com a determinação do preço.
Nesta algazarra há dois silêncios ensurdecedores: a ausência por parte da governação de uma ideia clara de futuro estratégico para a política energética que ajudaria a compreender apoios de hoje em função de resultados esperados; alguma incomodidade, senão mesmo em algumas situações silêncio comprometedor, por parte do PS nesta matéria. Ambos são preocupantes.
Mas para este blogue o que esta situação documenta é uma espécie de terreno minado para a relação público-privado e para o debate político necessário sobre os posicionamentos a assumir neste mesmo relacionamento. O debate está viciado senão mesmo invertido. Os arautos do mercado, depois de aprovisionar a quota pretendida de rendas públicas, aparecem solícitos e respeitadores da lei a invocar a intocabilidade dos contratos. A posição de António Lobo Xavier no último Quadratura do Círculo é esclarecedora, invocando argumentação jurídica provavelmente muito acertada para distinguir entre a intocabilidade desses contratos e a de outras situações como cortes de salários ou quebras de outras regalias sociais. Por sua vez, os defensores de uma intervenção pública mais consistente ficam presos nas consequências de uma má e viciada engenharia de apoios públicos. E o paradoxo dos paradoxos é chegarmos à conclusão que a defesa de um programa futuro de novas escolhas públicas pode passar por apoiar processos de desmantelamento da intervenção pública para por ordem na casa e começar a partir do zero, o que suscita, por si só, interessantes implicações no plano político a curto prazo.
Como tenho vindo a sublinhar, a situação kafkiana a que podemos chegar é termos nos ditames da Troika um aliado inesperado na criação de condições para um novo modelo de intervenção pública, liberto dos predadores do Estado. Não sei sinceramente se o universo dos que se reivindicam padrões e modelos de intervenção pública contrários ao modelo de Estado mínimo que ocultamente está a ser vendido aos Portugueses estarão em condições de compreender esse paradoxo e nele procurar as margens pretendidas de transformação possível.

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