Num fim de semana marcado pessoalmente pela busca um
pouco inglória por massas relevantes de amendoeiras em flor e por um mergulho
de circunstância pela interioridade do Douro Superior (espantoso nível de
ocupação de solo e maximização de fundos europeus agrícolas), detenho-me um
pouco na catadupa de notícias, testemunhos, crónicas, entrevistas, trabalhos de
análise jornalística produzidos neste período.
O tema central é ainda a demissão do Secretário de Estado
da Energia Henrique Gomes e a sua associação ao tema central das rendas
elétricas, mas uma grande parte do material publicado podia ser facilmente
prolongado para outras formas de relacionamento pouco claro e transparente
entre Estado e grupos empresariais, com extensões para o próprio mundo da
governação, das diferentes entidades de regulação e para o tema ainda mais
controverso das parcerias público-privadas.
O mais pertinente denominador comum de todo este aparente
consenso em torno destes temas parece-me ser o da captura do Estado por grupos
de interesses privados, ou na fórmula inversa o Estado refém das pouco
transparentes formas de contratualização entretanto ensaiadas.
No tema das rendas elétricas, a algazarra dos comentários
é bem audível, embora o número de contributos para uma divulgação mais objetiva
dos números e das condições em discussão seja bem menor. O Expresso foi uma
exceção a esse ambiente geral de pouca profundidade na matéria concreta em
discussão com uma tentativa de decomposição legível para o consumidor da fatura
elétrica, pela qual se compreende a complexidade do sistema de apoios que se
cruza com a determinação do preço.
Nesta algazarra há dois silêncios ensurdecedores: a
ausência por parte da governação de uma ideia clara de futuro estratégico para
a política energética que ajudaria a compreender apoios de hoje em função de
resultados esperados; alguma incomodidade, senão mesmo em algumas situações
silêncio comprometedor, por parte do PS nesta matéria. Ambos são preocupantes.
Mas para este blogue o que esta situação documenta é uma
espécie de terreno minado para a relação público-privado e para o debate político
necessário sobre os posicionamentos a assumir neste mesmo relacionamento. O
debate está viciado senão mesmo invertido. Os arautos do mercado, depois de
aprovisionar a quota pretendida de rendas públicas, aparecem solícitos e
respeitadores da lei a invocar a intocabilidade dos contratos. A posição de António
Lobo Xavier no último Quadratura do Círculo é esclarecedora, invocando
argumentação jurídica provavelmente muito acertada para distinguir entre a
intocabilidade desses contratos e a de outras situações como cortes de salários
ou quebras de outras regalias sociais. Por sua vez, os defensores de uma
intervenção pública mais consistente ficam presos nas consequências de uma má e
viciada engenharia de apoios públicos. E o paradoxo dos paradoxos é chegarmos à
conclusão que a defesa de um programa futuro de novas escolhas públicas pode
passar por apoiar processos de desmantelamento da intervenção pública para por ordem
na casa e começar a partir do zero, o que suscita, por si só, interessantes
implicações no plano político a curto prazo.
Como tenho vindo a sublinhar, a situação kafkiana a que
podemos chegar é termos nos ditames da Troika um aliado inesperado na criação
de condições para um novo modelo de intervenção pública, liberto dos predadores
do Estado. Não sei sinceramente se o universo dos que se reivindicam padrões e
modelos de intervenção pública contrários ao modelo de Estado mínimo que
ocultamente está a ser vendido aos Portugueses estarão em condições de
compreender esse paradoxo e nele procurar as margens pretendidas de transformação
possível.
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