Tenho algum fascínio pelo discurso da psicanálise
sobretudo quando ele é aplicado para tentar compreender as características mais
profundas da sociedade portuguesa e dos portugueses. Compreendo que a utilização
destas categorias suscita sempre alguma reação crítica, sobretudo das bandas da
análise sociológica ou política. A utilização de categorias que pretensamente
se aplicam transversalmente a todos os grupos sociais pode de facto oferecer
reservas. Mas tenho de reconhecer que, embora compreenda as razões de tal reação
crítica, o fascínio mantem-se. O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço, ou a
Psicanálise Mítica do Destino Português, como também por vezes é conhecido, é um
livro de cabeceira e provavelmente uma das mais inquietantes reflexões sobre o
que somos.
Tudo isto a propósito da entrevista do psicanalista António
Coimbra de Matos (ACM) a Anabela Mota Ribeiro na Pública do passado domingo,
que considero oferecer, para além de uma leitura muito estimulante e fluida,
reflexões muito oportunas para pensar o momento atual da sociedade portuguesa.
Distinguindo entre processos de identificação por
construção coletiva e construção individual, ACM analisa a dificuldade
portuguesa de inovar a não ser em situações de stress, crise ou de emigração
para ambientes mais hostis, para a qual encontra razões associadas a uma
cultura fortemente ligada aos sistemas do poder e dominada por influência
materna, mais conservadora. O avanço da sociedade portuguesa face ao primado da
socialização materna é real e será de esperar consequências desse facto, mesmo
que a identificação com as estruturas de poder tenda ainda a ser muito forte.
A socialização em ambientes externos nos quais o
discordar do outro não suscita a ideia de agressividade e de ofensa faz parte
de um longo processo de rotura face a uma cultura dominante mais de proteção do
que de promoção da autonomia individual: “Não são os animais ómega, as
crianças, que são menos audazes; são os pais (animais alfa) que não lhes
facilitam essa audácia” (ACM). Em vez de assumir a sentença do “se quiseste
sair de casa, agora aguenta-te”, “há que deixar partir e (saber) ficar como
reserva de retaguarda”.
A distinção operada por ACM entre revolução e revolta,
num quadro em que o progresso se faz por ideias fraturantes, é preciosa para
compreender a sua incursão pelos caminhos da depressão coletiva. ACM distingue
entre a depressão normal (causada pela sensação de perda e derrota) que atinge
generalizadamente todos os que a experimentam (como hoje acontece) e a depressão
patológica que se reproduz pelos caminhos da resignação ou da autoculpabilização.
E caminhamos para o ponto crucial da entrevista do ponto de vista da sua
aplicação à interpretação do momento presente. Os portugueses cultivarão pouco
a afirmação pessoal (assertividade em sentido psicológico), tendendo a oscilar
entre a resignação e autoculpabilização e a agressividade ou transgredimos na sombra. Os
portugueses estão hoje face a um discurso político que ora faz tudo para
difundir a ideia regeneradora da autoculpabilização (o viver acima das
possibilidades), ora procura despertar um assomo de reatividade e de confiança
nas suas próprias forças.
E o psicanalista fala no fim, admitindo que o país se
deitaria no divã: (O país) “tinha de ter tempo e espaço para poder crescer por
si próprio sem se apoiar noutros. (…) Sou a favor da emigração, de que as
pessoas se movam, se cruzem. E sou a favor da depressão normal, com revolta e
revolução! Devemos zangar-nos com os tipos que nos fazem mal”.
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