A semana que se vai aproximando do seu fim e a anterior
trouxeram-nos uma sequência (por vezes sobreposição) extremamente fértil de
acontecimentos, decisões e momentos-chave para avaliar o ponto de situação da
zona euro. Basta elencar, mesmo sem grandes preocupações de exaustão, esse
material para compreender a fertilidade do contexto:
- A intervenção do BCE junto da banca europeia de financiamento a três anos e a reação que foi atribuída ao Bundesbank;
- O reiniciar do debate sobre os desequilíbrios observados no sistema de transferência e pagamentos na zona euro (belicamente designado de TARGET 2), induzido sobretudo pelos receios manifestados pelo Bundesbank sobre essa matéria;
- O foco que a situação espanhola voltou a ter entre os analistas, resultante da decisão aparentemente unilateral do governo de Rajoy em não assumir a meta de défice público acordada com a Comissão Europeia; esta refocagem da situação espanhola é muito relevante pois a economia vizinha é indiscutivelmente uma das que não tinha um problema de défice no momento em que eclodiu a grande recessão de 2008/09;
- Toda a complexidade do processo de reestruturação da dívida grega e da decisão associada de um segundo resgate financeiro à economia grega.
Hoje, concluídas que estão praticamente a primeira e a última
das quatro referências atrás apontadas, o que resulta de toda esta azáfama é a
perceção de que estamos perante um mecanismo que encontrou aparentemente a
curto prazo alguma estabilidade, mas que face à menor força exógena tenderá a
entrar de novo em tensão. Cada vez mais a construção do euro se assemelha a um
sistema mecânico que não foi preparado para situações de stress. Nessas condições, vão-se compondo algumas imperfeições,
ensaiando algumas (pequenas) intervenções de natureza mais estrutural, mas
ninguém se convence que a estabilidade está assegurada e que é garantida a
resistência a situações de forte stress.
E o pior é que cresce cada vez mais a ideia de que quem concebeu e assumiu a
entrada em funcionamento do mecanismo conhecia as suas debilidades estruturais.
Ignorou-as talvez por taticismo demasiado imediatista, a história tenderá no
futuro a esclarecer melhor essa construção abreviada. É também visível que
poucos terão antecipado que uma das situações de stress mal medido e mal avaliado resultaria da necessidade de se
compor o mecanismo numa situação tão declarada de prolongamento de recessão
para além do que a experiência recente de regulação macroeconómica tinha como
vivência.
Os quatro temas atrás mencionados mereceram já neste
espaço alguma reflexão, mas são fonte inesgotável de posts futuros. Não se trata de matéria apenas de interesse reflexivo.
Eles tocam profundamente no caso português e por essa via no nosso bem-estar. A
nossa escolha de futuro continuará a ser a de ensaiar a saída do euro e
recuperar autonomia monetária (valeria a pena discutir que autonomia?) ou a de
resistir no seio da perturbada zona euro. Mas, neste último caso, a capacidade de
resistir não depende apenas de nós, depende e muito da evolução da situação de
instabilidade global da zona euro e sobretudo da capacidade dos “senhores”
europeus entenderem que a superação dessa instabilidade está irremediavelmente
ligada ao problema da recessão europeia.
A intervenção do BCE na banca europeia, já aqui
analisada, suscitou junto de alguns cronistas nacionais, sobretudo à esquerda
do PS, uma ampla indignação (Rui Tavares no Público, passou-se a meu ver),
vociferando pelo escândalo de injetar uma tal magnitude de liquidez no sistema
bancário. Há uma certa dificuldade de compreensão do papel nuclear que o
financiamento (crédito) bancário assume no funcionamento normal de uma economia
de mercado e é disso que estamos a falar, com mais ou menos peso de uma carga
institucional. Embora num âmbito mais geral que é o da inovação, Schumpeter
designava o crédito como uma meta-inovação, tamanha era a importância transversal
que lhe atribuía. E, no quadro atual, não haverá recuperação sustentada
sobretudo do investimento se a fluidez do crédito não for retomada.
Já aqui referimos que a prática do BCE optar por este
tipo de operações, que provavelmente não repetirá proximamente, não assegura ao
mesmo BCE a certeza de que essa operação se traduza efetivamente por
financiamento à economia real. Várias interrupções desse circuito podem
acontecer:
- Os bancos podem utilizar as vantagens da operação para resolver o seu próprio endividamento;
- Podem jogar comercialmente com as diferenças de taxa entre o preço a que acedem aos recursos e o que podem obter em aplicações alternativas, mesmo que considerando que apresentarão como garantias títulos que sofrerão uma desvalorização assumida à partida pelo BCE;
- Podem ainda optar por aquisições de dívida soberana, abrindo caminho pela porta dos fundos a uma coisa que o BCE rejeita liminarmente que é o financiamento direto aos Estados.
Como se vê, as fugas possíveis não são de menor monta. Por
isso, muito boa gente com bom senso reitera que o alcance das operações do BCE é
sobretudo o de evitar o descalabro do sistema bancário, deixando para um
segundo plano o financiamento da economia real. Mas o prolongamento da recessão
não desaparece por isso. Persiste. E não podemos ignorar que a posição
dominante da ortodoxia hoje vigente é, na hipótese mais bondosa, a de um misto
de política: “disciplina fiscal apertada e injeção de liquidez por parte do BCE”.
Ora, é este “mix” que tem de estar sob fogo, pois pagamos para ver em que
medida ele pode resolver o encurtamento das ameaças recessivas. E só não vê
quem não quer ver.
No meio de tanta e sugestiva informação, passou algo
despercebido um gráfico concebido por Richard Koo (a meu ver um dos mais lúcidos
observadores da Grande Recessão) que mostra para os EUA, Reino Unido e Zona
Euro, o comportamento depois do eclodir da Grande Recessão de dois agregados
monetários que, em situação normal, tendem a não afastar-se muito uma da outra.
Estou a falar da base monetária e da oferta de moeda. Sem grande preocupação de
rigor, a base monetária é constituída por moeda em circulação e depósitos, ao
passo que a oferta de moeda tem a influenciá-la adicionalmente o crédito bancário.
O gráfico em causa é esclarecedor. É notório o afastamento
das duas curvas após o eclodir da crise. É de facto impressionante o montante
de liquidez injetado na economia, mas para quê? Simplesmente, para manter a
oferta de moeda a crescer a um ritmo apenas moderado e estável, ou seja, para não
incorrer num erro que seria esse sim trágico – reduzir a oferta de moeda em
ambiente recessivo. E também se observa que a injeção de liquidez realizada
pelo BCE está a milhas do que foi realizado no Reino Unido e nos EUA. Mais uma
vez se comprova que acenar neste contexto com os fantasmas da inflação não é sério.
Citado e bem por Izabella Kamiska (Financial Times),
Richard Koo refere:
“ Com os níveis de
liquidez antes do Lehman Brothers iguais a 100, o FED aumentou a base monetária
para 321 e o Banco de Inglaterra para 297, ao passo que o BCE o fez para 196
mesmo depois das duas operações de financiamento à banca. O Banco do Japão fê-lo
para 313, ainda que com um período mais longo”.
Só não vê de facto quem não quer ver. É o “policy mix” que deve estar sob fogo.
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