O que está a acontecer na Argentina em torno da “reversão” unilateral de quatro concessões de exploração petrolífera à YPF, empresa atualmente controlada maioritariamente pela gigante espanhola Repsol, pode ser objeto de análise sob dois ângulos muito distintos, quase antagónicos.
Por um lado, está em causa uma dimensão que se reporta ao grau de estabilidade associado aos compromissos assumidos por um Estado de direito e às inerentes consequências em termos de credibilidade e envolvimento junto da comunidade internacional (recorde-se, nomeadamente, que a Argentina participa das reuniões do G20). A esta luz, a decisão do governo de Cristina Kirchner (acima caricaturada por Sciammarella em http://www.elpais.com) – não parecendo ter por fundamento quaisquer aspetos técnicos, regulatórios ou financeiros nem quaisquer incumprimentos contratuais, de investimento ou de boa gestão empresarial – revela-se perigosa por arbitrária e discricionária.
A situação é tanto mais grave quanto ocorre num contexto em que a economia da Argentina dá sinais de estremecimento (veja-se o meu post de 11 de Janeiro), em que a “Presidenta” é especificamente acusada de um significativo falhanço na condução da sua política energética e em que se lhe tende a tornar conveniente uma repercussão política do odioso proveniente dos inevitáveis aumentos de importações, de preços e de controlos cambiais.
E não é um detalhe que para tal aproveite em seu favor o delírio nacionalista/populista que grassa nas províncias argentinas sob direção política peronista – como é o caso das duas em causa naquela “reversão”, Chubut e Santa Cruz, cujos governadores foram ao ponto de organizar uma festa para celebrar a “recuperação da soberania” e de declarar o seu “cansaço” em relação a “políticas que são dirigidas de Espanha para virem sacar o petróleo desta Patagónia querida”.
Como não o é também que a entidade visada, a Repsol, tenha sido aquela que é o maior contribuinte fiscal do país (um terço das receitas totais), o seu maior empregador (4 mil empregos diretos e 16 mil indiretos) e uma das poucas com presença física nas 24 províncias argentinas. Nem que essa multinacional tenha base em Espanha e seja um investidor estrangeiro que adquiriu o controlo da YPF a investidores americanos que tinham tido vencimento num processo de privatizações acontecido sete anos antes (1992).
Tudo sinais de uma deriva que vai bem ao encontro daqueles que não têm vindo a augurar evoluções políticas, económicas e sociais muito auspiciosas para a Argentina nos tempos mais próximos.
Por outro lado, uma segunda dimensão de análise não deve ser escamoteada: a da “carga histórica, sentimental e simbólica” que a YPF arrasta consigo. Como escrevia há dias o correspondente do “El País” em Buenos Aires: “Depois das Ilhas Malvinas, poucas palavras levantam tanto fervor ‘soberanista’ na Argentina como as de YPF. Quando o Governo ameaça com intervir ou nacionalizar a filial da petrolífera espanhola Repsol sabe que conta com o respaldo da maior parte da população.”
A questão tem tudo a ver com as origens. Com efeito, a “Yacimientos Petrolíferos Fiscales” é uma empresa centenária, criada pelo Estado em 1922 a partir de iniciativas lançadas aquando da descoberta de petróleo (1907). Citando o diretor do Centro de Estudos de Energia, Política e Sociedade: “Lá onde a YPF descobria jazidas, lá chegava o braço do Estado. A empresa construía as estradas, os caminhos, as escolas, os hospitais. Era como um padre, levava a civilização aos lugares patagónicos mais isolados.”
Assim, e independentemente do facto de a YPF nunca ter logrado produzir todo o petróleo de que o país necessitava ou de a mesma ser frequentemente referida como um exemplo de má gestão por parte do Estado, o certo é que ela se tornou ao longo das décadas num “emblema de independência ou de busca de independência energética”.
Mas o ponto não é tanto o do registo de quanto um tal ícone – mesmo que hoje talvez já só meramente redutível ao romantismo de um desejado mas impossível regresso a um passado de melhor vida – pode ajudar a explicar a recetividade da maioria dos cidadãos a uma eventual estatização da YPF por que Kirchner possa vir a optar. O ponto é, isso sim, o da valoração atribuível, na definição concreta de processos de privatização, a questões que relevem de um forte “imaginário coletivo”, do caráter estratégico dos recursos envolvidos ou dos impactos regionais e locais em presença. Só que esta é sobretudo, afinal, uma questão de sociedade…
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