domingo, 18 de março de 2012

DE PREDADORES E VAMPIROS

O último post do António Figueiredo, aliás já na esteira de anteriores, coloca uma das questões essenciais do atual momento político português quando refere: “a situação kafkiana a que podemos chegar é termos nos ditames da Troika um aliado inesperado na criação de condições para um novo modelo de intervenção pública, liberto dos predadores do Estado”.

A inquietação com que termina, dirigida ao “universo dos que se reivindicam padrões e modelos de intervenção pública contrários ao modelo de Estado mínimo que ocultamente está a ser vendido aos Portugueses”, parece-me todavia uma iteração à frente em relação à prévia questão “vital” – porque mais do foro do ser do que do foro do estar – que leio implicitamente suscitada no brilhante artigo de José Pacheco Pereira do “Público” de sábado (“Senhor, encolhi o país!”). Cinco excertos escolhidos – o autor que me perdoe os cortes… - servirão para elucidar “what I mean”.

1. “Ser membro do PSD nestas alturas tem que ser um momento particular de perplexidade. Claro que me refiro àqueles membros do PSD que foram atraídos pela muito ‘sui generis’ e portuguesa fusão de tradições políticas, que ia do liberalismo político à noção de que a política não esgota o campo do humano, até à consciência de que é obrigação do Estado garantir
um ‘quantum’ de justiça social, tudo isso fundido num partido com uma história que era o seu ‘programa não-escrito.”

2. “Em 2012, o PSD no Governo está a gerir apenas uma crise herdada, está a cumprir o seu programa, ou a permitir que se faça outra coisa de natureza muito distinta pouco coerente com o seu programa e a sua tradição? Temos que seja este último caso, e temo que se deixem isolados num vazio incómodo muitos dos militantes que ainda permanecem fiéis ao seu património fundador, que, esse sim, não é adaptável, sob pena de perda da identidade do partido. Os mais veementes aplausos à ação governativa vêm de poderosos interesses na sociedade portuguesa, que pouco têm a ver com o eleitorado ‘genético’ do PSD ou com os portugueses que é suposto representar peço seu programa e ação.”

3. “O que está aa mudar Portugal é que se está a dar uma enorme deslocação de recursos entre classes e grupos sociais, uns ganhando, outros perdendo. Não é um processo unívoco, mas a sua dimensão deveria preocupar um Governo do PSD. Mas não só não o preocupa como está ativamente a contribuir para que isso aconteça.”

4. “Em complemento deste processo, e com ele associada, há uma enorme redistribuição de poder, resultado de uma brutal e rápida concentração de poder de decisão e de recursos nas mãos de um grupo cada vez mais pequeno de pessoas, que circulam numa elite que sempre foi muito fechada, mas que agora ainda o é mais. As redes interiores do poder, que circulam entre os grupos económicos, o poder político, a grande advocacia de negócios, alguns ‘think tanks’, empresas de consultadoria, conselhos de administração das fundações mais poderosas, reguladores e, de um modo geral, todos os lugares de nomeação estatal, em ‘grupos de trabalho’, ‘comissões de acompanhamento’, etc. estão cada vez mais entregues ‘sempre aos mesmos’. A razão é que as relações de confiança nestes momentos de crise são mais importantes do que tudo o resto, seja a competência e mérito, seja a renovação, sejam mesmo os valores propagados da competição e da liberdade económica. E os ‘mesmos’ já deram provas de lealdade e serviço.”

5. “O mundo divide-se, pois, entre os que têm ‘acesso’ e os que não têm, e a concentração do poder económico, o reforço do Estado fiscal, as ondas de eco de procedimentos autoritários e expeditos em nome da crise por todo o sistema bancário, o esbulho puro e simples ou a aceitação de propostas chantagistas para o acesso ao crédito estão a permitir centralizar o poder de decisão. O medo faz o resto.”

Volto então à minha, sabendo que posso soar pessimista. Mas o facto é que me interrogo genuinamente sobre se vai haver espaço e tempo para que, com razoabilidade, o nosso horizonte inultrapassável possa incorporar algo que se aproxime daquela ideia de “um novo modelo de intervenção pública”. Embora haja também a hipótese, mais positiva, de ao assim me inclinar para que a pauperização em que caímos tenha vindo para ficar poder estar sobretudo a exprimir-me debaixo de uma excessiva influência de uma leitura de cabeceira da noite passada (“Últimas Notícias do Sul”) e da perturbadora visão que Luis Sepúlveda nela transmite sobre a sociedade argentina em crise.

Como quando escreve: “Já não somos pessoas ou cidadãos, somos clientes de um prostíbulo transparente e vigiado com câmaras, lá dentro não há mulheres mas bonecas de silicone que não fumam, que não bebem, que não cantam, e os chulos não exibem orgulhosas cicatrizes mas diplomas da escola de Chicago.” Ainda que num contexto diverso, Zeca Afonso cantou-o como ninguém:

Se alguém se engana Com seu ar sisudo
E lhes franqueia As portas à chegada
Eles comem tudo Eles comem tudo
Eles comem tudo E não deixam nada...

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