É uma querela que estava anunciada, implícita no modelo
de coordenação desenhado inicialmente para a governação do QREN e
substancialmente ampliada pelas condições concretas de governação que foram
sendo praticadas.
Concretizemos.
Inicialmente concebido com alguma ambição estratégica, o
QREN começou a sua deriva em direção a uma querela anunciada a partir do
momento em que a decisão de concentrar a programação num número muito mais
reduzido de programas operacionais do que nos QCA anteriores foi subvertida por
um quadro regulamentar digno do pior que a máquina administrativa portuguesa
alguma vez concebeu. O que se passou então? Os setores da Administração Central
recuperaram algum poder a partir do momento em que conseguiram conceber e fazer
passar uma miríade de regulamentos definidores das condições técnicas e financeiras
de elegibilidade de projetos. Quando falamos em setores estamos obviamente a
falar em termos práticos de Ministérios e, obviamente, dos respetivos Ministros.
Por isso, essa lógica de coordenação /governação que se
pretendia mais concentrada recebeu um presente envenenado e desse pecado, não
original mas de meio percurso, nunca mais recuperou.
A interpretação do que se terá passado a seguir pode ser
alinhada do seguinte modo.
Quando o atual Governo chega ao momento de utilizar o potencial
de intervenção do QREN (depois de um período de mergulho na sua lógica de
governação, mais longo do que seria de esperar e explicado pela impreparação
geral que revelou), sabe-se que o Ministério das Finanças constituiu uma “task-force”
em seu redor, com forte ligação presente e passada à Comissão Europeia. Essa “task-force”
tinha por missão principal direcionar o que poderíamos chamar o “último fôlego
do QREN” para mobilizar investimento gerador de crescimento económico que o
discurso “austeritarista” precisa como um náufrago precisa de bóia de salvação.
O Governo sabe que, face ao peso da austeridade orçamental que está a ser
seguida, muito dificilmente as exportações poderão evitar, por si só, evitar a
depressão económica. Mais tarde ou mais cedo, terá de ser o investimento público
e privado a assumir essa função. Daí o “target” do QREN. Ora tudo indica que,
quando devidamente avaliado o montante disponível de investimento (que não se
confunde com o que está executado), se terá chegado à conclusão que o
compromisso já assumido deixava uma folga bem menor do que o esperado.
Como é compreensível, em período de rarefação de fundos públicos
e de crédito bancário, o desvio entre o que está já comprometido e aprovado e o
que vai sendo executado é muito mais elevado, da parte das empresas e do setor
público, incluindo a administração local. Terá soado um alerta: seria necessária
uma forte seletividade de orientação para a aplicação do “último fôlego do QREN”
com a agravante de exigir uma forte coordenação com a libertação de meios
orçamentais para assegurar as contrapartidas nacionais de investimento público
e de crédito bancário (BEI ou outras fontes). É, pois, neste contexto que surge
a posição de força do Ministério das Finanças, facilitada por um Ministério da
Economia muito segmentado na sua ação e mais preocupado com os custos de
contexto e reformas estruturais para o bom funcionamento do mercado do que com
orientações estratégicas para as últimas gotas do QREN. Mas não apenas com o
Ministério da Economia. Também com o Ministério da Solidariedade Social, já que
a tutela sobre o Fundo Social Europeu, fortemente representado em termos de
financiamento comunitário no QREN, é partilhada entre o Ministério da Economia (Secretaria
de Estado do Emprego) e o da Solidariedade. Ou seja, mais uma óbvia fonte de
conflito de poder.
Querela anunciada, pois. Mas mais ampliada porque a lógica
da coordenação desse esforço de investimento com a libertação de meios
orçamentais e de crédito bancário não encontra a suportá-la ideias fortes em
termos de afetação estratégica dessas verbas disponíveis.
Neste contexto, também não entendo a posição imediatista
do PS (António José Seguro) em reivindicar que, numa situação de governação
similar, seria o Ministério da Economia a assumir a última palavra na afetação e
coordenação da intervenção do QREN. Quereria talvez dizer que teria optado por
um Ministério da Economia menos segmentado e com mais autoridade. Mas no
contexto atual a posição do Ministério das Finanças dificilmente poderia ser
contornada. E, na minha perspetiva, o PS ainda não compreendeu que, mais
importante do que esse imediatismo de resposta à boleia da tal querela para mim
anunciada, é tornar visível, mesmo muito bem visível, que terá um Ministro das
Finanças à altura para assumir o barco de uma alternativa de governação. Não
será fácil encontrar essa personalidade, tamanho foi o desgaste da governação
PS nessa matéria. E não será uma alternativa a longo prazo. Se o fosse poderia
preparar com tempo uma espécie de “Nélson Oliveira” (desculpem a metáfora
futebolística) que despontaria em toda a sua maturidade. No caso vertente, é
para ser credível no fim desta legislatura, o que não é claro neste momento
existir. Como é óbvio, uma possível perda de força da governação atual bastará
para fazer despertar vocações por agora bem recatadas, porque a situação não o
recomenda. A escolha pode abrir-se um pouco, mas não deixará de ser uma escolha
pesada, sobretudo do ponto de vista da credibilidade da alternativa de governação.
Mesmo que o pacto fiscal possa ser abrandado (esperemos que sim), não
imaginemos que a situação portuguesa ficará liberta nos próximos tempos de uma
consolidação fiscal, menos cega, mas necessariamente firme, para podermos ter
finalmente uma política fiscal (orçamental) contra-cíclica quando dela
precisarmos.
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