segunda-feira, 30 de novembro de 2020

BRITISH WOES


Vendo de longe e aferindo apenas pelas notícias que vão chegando, as coisas vão mal (ou péssimas?) no Reino Unido. O país parece ter sido atingido por uma espécie de lei de Murphy sobre ele abatida sem dó nem piedade nestes anos. BoJo continua a sua navegação à vista em termos governativos, defrontando-se sobretudo com uma crise epidemiológica que tem procurado combater esforçadamente mas com uma boa dose de inconsequência e falhanço, com um contador em forte aceleração no tocante à finalização do interminável processo do Brexit e com um agravamento da dívida inédito nas últimas muitas décadas a par de uma situação macroeconómica grave. Em cima disto tudo, o que já não era nada pouco, o homem ainda teve de se deparar internamente com golpadas e choques entre personalidades próximas (e também metendo laços familiares à mistura), os quais estão longe de estar objetivamente apurados (há mesmo sinais contraditórios, como decorre dos cartunes abaixo) mas já conduziram ao pedido de demissão do seu conselheiro principal Dominic Cummings (o ideólogo a quem chamaram de “pai do Brexit”), seja na sequência de um frio e calculista aproveitamento associado ao intrigante afastamento do diretor de comunicação Lee Cain, seja na sequência das conspirativas mãos de duas mulheres (a sua atual companheira Carrie Symonds e a estrela em ascensão Allegra Stratton).

(Chris Riddell, http://www.guardian.co.uk)


(Steve Brighty, https://www.thesun.co.uk)

(Morten Morland, http://www.thetimes.co.uk)

(Ingram Pinn, https://www.ft.com)

 

Regressando às essências, sublinhe-se que é cada vez mais projetada a ideia de que BoJo não irá desencadear uma saída desorganizada da União Europeia (o “El País” de ontem escrevia que “¡Boris no se atreverá!”) e acabará por optar, mais conscientemente, por um “acordo de mínimos” (veja-se, mais abaixo, uma estimativa de como um hard Brexit acrescentaria novas desgraças a um país já por demais fustigado). Com efeito, e já pactados aspetos essenciais – como os direitos dos cidadãos britânicos em território comunitário e vice-versa, a possibilidade de as entidades financeiras europeias operarem no Reino Unido, o valor que Londres pagará à União (em torno de 1,5% do PIB britânico) e o estatuto da Irlanda do Norte (salvaguardando o mercado único comunitário e garantindo a Belfast uma permanência em território aduaneiro britânico) –, restam questões igualmente relevantes mas mais suscetíveis de um entendimento negocial de última hora – como o mecanismo de resolução de conflitos e o papel do Tribunal de Justiça Europeu, o acesso de pesca às águas britânicas e a questão do grau de limitação das ajudas estatais. Talvez tenhamos notícias para breve nesta matéria, onde é de louvar o profissionalismo e a infinita paciência de Michel Barnier, deixando para então uma apreciação mais rigorosa e detalhada sobre o imenso amontoar de problemas com que o Chancellor of the Exchequer (Rishi Sunak) vai ter de se haver nos duros tempos que se aproximam.


KRUGMAN SOBRE YELLEN

 


(Regresso ao tema Janet Yellen, mas agora com o respaldo de outro Grande da macroeconomia, Paul Krugman, que tinha andado arredado deste blgue há já algum tempo. O artigo de PK no New York Times é importante porque mostra que a coerência na academia pode ser útil a quem decide na política económica e monetária. E isso é algo de muito esquecido cá pelo burgo ...)

O artigo de Paul Krugman que faz primeira página da edição internacional de fim de semana do New York (que grande jornal que não hesita em dar a sua primeira página a um macroeconomista[1]) tem por título “Celebrating Janet Yellen, economist”(link aqui). Vou na onda.

O artigo tem várias dimensões, essencialmente três. Duas dessas dimensões podem ser consideradas de grande consumo público.

Primeiro, Janet Yellen para além de ser a primeira mulher a ocupar o lugar de Secretária de Estado do Tesouro, é a primeira pessoa a ocupar os três lugares mais importantes nos EUA para um economista: Presidente do Comité de Conselheiros Económicos do Presidente, Governador do Banco da Reserva Federal depois de ser um dos seus membros e agora Secretária de Estado do Tesouro.

Segundo, há na sua nomeação algo de picante para o grande público. Donald Trump impediu que Yellen fizesse um novo mandato à frente do FED USA. Agora, quando Trump, derrotado, ainda trabalha na sombra para conseguir a nomeação para o corpo de governadores do FED da inenarrável e charlatã Judy Shelton (à qual Bradford DeLOng tem dedicado algumas páginas nada meigas, link aqui), a escolha de Biden repõe a verdade e a pureza das coisas.

Mas o que mais me agrada no artigo é a celebração da escolha como consequência lógica e justa de uma carreira notável de serviço público leal e de coerência das ideias da academia para o mundo da decisão concreta na política económica e monetária.

A coerência das ideias de Janet Yellen guiou a sua atuação nos anos que precedera, a sua indicação para Presidente do FED USA, após a sua entrada nos inícios da década de 2010. Na altura, em torno da recuperação da economia americana após a crise de 2007-2008, cavou-se uma forte divisão entre os chamados “falcões” e “pombas” em que se dividiam os governadores do FED. Os primeiros, com forte proximidade aos membros mais radicais do partido Republicano, estavam reféns da fobia inflacionária e reclamavam que a política monetária se tornasse mais restritiva para evitar as ditas e famigeradas pressões inflacionistas. Os segundos criticavam a leitura sobre a economia americana, duvidavam da real aproximação à capacidade máxima e sobretudo rejeitavam a hipótese dos estímulos monetários à economia conduzirem a uma pressão inflacionista. Yellen pertencia a este grupo. Os dados oficiais publicados sobre as previsões feitas pelo Board de Governadores mostraram que Janet Yellen era uma das que mais se aproximava dos dados oficiais nas suas previsões e pressão inflacionária nem vê-la (a tal Shelton falava de perigo de uma inflação ruinosa!).

E o que é mais importante e decisivo é que segundo Krugman a competência de Yellen na gestão da política monetária do FED era a consequência lógica da sua coerência na academia, quando integrou um vasto conjunto de economistas que se opuseram à transformação da macro e da ciência económica em geral num mundo de agentes perfeitamente racionais capazes de otimizar intertemporalmente as suas preferências como se fossem máquinas algorítmicas e guiadas estritamente pelo interesse individual: “(…) Mas ela nunca esqueceu que a economia trata de pessoas, que não são desprovidas de emoções, máquinas de cálculo hiper-racional que os economistas desejam por vezes que sejam” (Paul Krugman).

E como PK o assinala como é confortável e retribuir ter a perceção de que a política económica será conduzida por quem sabe o que está a fazer. É assim mesmo, simples e direto.

 



[1] Com a habitual nota do jornal que diz: “O NYT publica opinião de uma vasta faixa de perspetivas na esperança de construir um debate construtivo sobre questões consequentes”

domingo, 29 de novembro de 2020

O ESTADO DE DIREITO TEM UM PREÇO?


O “Público” de hoje trouxe a primeira página uma notícia de conteúdo aparentemente bombástico e proveniente de mais uma investigação de um consórcio jornalístico independente (“Investigate Europe”). Trata-se da posição portuguesa no Conselho da União Europeia sobre o chamado “mecanismo de defesa do Estado de direito”, assunto que está na ordem do dia europeia em virtude da posição de veto tomada pelos dois países visados (Hungria e Polónia) e do autêntico “cu de boi” que assim ficou criado em Bruxelas quanto ao prosseguimento concreto e atempado que poderá ser dado ao tão esperado Fundo de Recuperação e Resiliência. O assunto merece, e vai certamente obter, esclarecimentos cabais por parte das autoridades portuguesas e do próprio primeiro-ministro, designadamente porque a transparência de posições em matéria de questões ditas de princípio deve ser inequívoca. Quanto ao mais, aproxima-se o Conselho Europeu (10 e 11 de dezembro) em que uma decisão resolutiva seria altamente desejável, quer porque ainda contaria com uma intermediação da Presidência Alemã (mesmo que à custa de algum “benefício do infrator”), assim evitando mais uma “batata quente” a passar para as mãos de António Costa (a Presidência Portuguesa começa a 1 de janeiro de 2021), quer porque desbloquearia de facto a visível incomodidade do atual impasse (Ursula von der Leyen e Charles Michel têm sido, a esse nível, cristalinos). Em síntese: por um lado, e mesmo quando as suas instituições vão agindo no sentido certo, a Europa arranja sempre maneira de nunca nos dar verdadeiras razões para alguma estabilidade no nosso descanso emocional; por outro lado, será absolutamente imoral do ponto de vista democrático que polacos e húngaros prossigam sem consequências as suas diatribes contra um funcionamento assente em regras minimamente decentes das respetivas sociedades. Mais uma bota que irá ser descalçada após horas de barganha e a preços indecorosos!


(Pierre Kroll, http://www.lesoir.be)

E ASSIM SE VÊ …

 

(Hesito em completar a frase. Com a força do PC? Não me parece! Com a teimosia do PC? Parece-me redutor. Com a organização do PC? Não é novidade. Então o que é que o Congresso realizado em fim de semana de emergência pandémica efetivamente mostra? Não é fácil completar a frase, porque estão aqui em causa questões mais complexas para a esquerda em Portugal do que as falsas controvérsias em torno do Congresso de Loures anunciam ...)

Penso que fui claro em alguns posts sobre esta matéria. A geringonça pós-Troika não teria sido possível sem a presença do PCP no sistema político e parlamentar português. A melhor demonstração desse facto é a sua impossibilidade em Espanha. Mesmo que o PODEMOS seja mais volúvel do que o Bloco de Esquerda em Portugal, a ausência de um PCP em Espanha torna inviável algo do tipo da geringonça portuguesa. Não por acaso, o modelo de coligação à esquerda em Espanha é popularmente designado por governo de Frankenstein e não geringonça. O PSOE tem sido conduzido a cambalhotas algo incompreensíveis para uma larga faixa do eleitorado: alianças com Esquerra Republicana e Bildu.

A importância sistémica do PCP no xadrez político à esquerda não se deve apenas à sua “palavra”, à sua maneira de negociar e respeitar acordos a partir do momento em que são celebrados. Deve-se, em meu entender, às irreversivelmente difíceis relações do PS com o Bloco Esquerda. A posição de uma larga parte dos militantes e dirigentes do PS relativamente ao PCP é clara, porque tem uma dimensão histórica inequívoca. Muita gente passou pelo PCP e rompeu, em diferentes etapas, com derivas ou enquistamentos de posições políticas do partido. A transição democrática em Portugal só consumou o que tinha começado antes. Mas essa rotura não impede uma larga parte dos militantes do PS de respeitar a história do partido e o seu contributo para o derrube do regime. Não se coloca nem por sombras o problema de divisão possível de eleitorado.

As relações com o Bloco de Esquerda são distintas. A natureza do Bloco e das suas batalhas ideológicas é algo que mexe com a esquerda mais radical do PS. Isso produz uma situação altamente instável geradora de tensão permanente que só acalma com quedas/ganhos de eleitorado nessa franja entre as duas forças políticas.

Por isso, em meu entender, acordos parlamentares com reflexos na governação à esquerda ou integram os três partidos ou dificilmente se projetam com uma influência que se veja na estabilidade de uma legislatura. O orçamento é verdade que passou mas sem que isso transmita estabilidade promissora à governação futura, tanto mais que a gestão da pandemia corrói qualquer governo democrático.

Dito isto, ou seja reconhecendo a importância “sistémica” do PCP na viabilidade de uma solução do tipo “geringonça”, analisemos agora a insistência do PCP na realização do seu Congresso. Já se percebeu que, sem embargo da organização rigorosa e disciplinada com todos os pormenores para público ver o cumprimento de regras sanitárias, o PCP terá tido perdas que podem ser severas do ponto de vista da perceção pública sobre a inconveniência do Congresso. Falaram alguns em suicídio político. Em meu entender. É antes um risco calculado numa trajetória de algum declínio. Primeiro, porque era necessário transmitir aos militantes a “batalha” orçamental e os ganhos de negociação tão pícara. Segundo, porque o ritual ainda é tudo no PCP e, convenhamos, o virtual não transporta consigo essa força de ritual. Terceiro, porque era necessário marcar terreno para o seu candidato João Ferreira e sobretudo definir a posição crítica em relação a Marcelo, minimizando estragos de uma votação que pode ser perturbadoramente baixa apesar da energia e consistência do candidato. Só no ambiente de um congresso é que tem sentido e repercussão afirmar-se como “espinha na garganta do capitalismo” que nos faz recuar no tempo aos períodos mais conturbados do PREC.

Percebe-se que o PCP prepara o rejuvenescimento da sua liderança. Mas o seu problema central não é esse, mas antes o do rejuvenescimento do seu eleitorado. Os tempos serão difíceis e Presidenciais e autárquicas serão testes duros e que podem mitigar ou cavar a ideia de declínio. Por isso, não seria o virtual ou um adiamento que preparariam a militância para esses tempos difíceis. O partido mediu seguramente os custos da sua insistência. Mas estou seguro que os terá avaliado abaixo dos benefícios internos que essa insistência terá transmitido à militância.