segunda-feira, 23 de novembro de 2020

CARTA A ROSARIO

 


(Na sequência do meu post O Mistério de Asunta, jornais galegos e madrilenos têm vindo a escrever sobre a densidade da personagem de Rosario Porto, mãe adotiva da jovem Asunta, condenada pelo seu assassínio e que recentemente se enforcou numa prisão da região de Ávila, bem longe dos ambientes de Santiago de Compostela, urbano e rural. Hoje, não resisto a trazer-vos um excerto de uma das peças mais profundas publicadas por estes dias, sob a forma de uma Carta póstuma a Rosario, na Voz de Galicia ...)

Assina o documento um Professor Catedrático de Psicologia da Universidade de Santiago de Compostela (link aqui). Jorge Sobral de seu nome. Não faço a ideia se a peça resulta de conhecimento próximo da densa e amargurada personalidade de Rosario Porto ou se é apenas o testemunho de um profissional e psicólogo que analisa do exterior este trágico acontecimento. Mas a peça vale por si e como eu gostava de psicologia e filosofia nos meus anos de estudante do velhinho D.Manuel II, hoje não menos vetusto Rodrigues de Freitas, onde um conjunto notável de Professores e Professoras me marcaram para sempre:

“ (…) Aí está todo o teu historial psiquiátrico, cheio de depressões e internamentos, bem antes dos trágicos acontecimentos. De tal maneira que nunca saberemos se a tua morte teve que ver com a digestão do teu crime ou se o teu crime se deveu ao teu caos afetivo anterior. É tentador descrever-te com a preguiça intelectual das etiquetas simples. Não o mereces. Não é o teu caso. Sempre acreditei que eras um exemplo claro de qualquer outra coisa menos simples: a “psicopatia secundária”; o mundo onde a frieza necessário para o plano malvado convive com os fogos da angústia, da depressão e da exasperação, na tua caldeira neurótica. Os que sofrem podem ser maus. E os maus, muitas vezes, também sofrem.

Sofreste muito, sem dúvida. Uma psiquiatra descreveu-te como “ambivalente”: capaz de grandes ódios e de grandes amores. E por aí anda a bipolaridade que uma sábia colega te atribuiu. Montanha russa na qual te precipitaste. Essa consciência que nunca te abandonou de todo, mordeu e remordeu. Tenho para mim que nada te doía tanto como teres-te enredado no delírio de outros, chamaste-lhes “joguitos”, loucura a dois em que entraste e dos quais, pressuponho, nunca soubeste sair. O teu caos pedia ordem aos gritos, perentoriamente. Outro “suicídio lúcido”? Restabelecer um mínimo de equilíbrio. Ajustar contas, com o mal, com o que saiu mal, isto é, contigo mesma. E conseguiste-o. E deixaste a tua cela em ordem arranjo perfeitos. Como uma grande metáfora das tuas necessidades. Em paz. Descansa nela. Que a compaixão não te falte. Ao fim e ao cabo, aprendemos com a grande Concepción Arenal[1] a “odiar o delito enquanto que nos compadecemos com o delinquente”.



[1] Segundo a Wikipédia, Concepción Arenal (1820-1893) foi uma proeminente escritora e advogada galega, que trabalhou como agente penitenciária licenciada em Direito, jornalista e escritora, pioneira do feminismo espanhol e integrante do movimento do realismo literário,

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