quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O MISTÉRIO DE ASUNTA

 


(Embora as suas incursões pelo tema sejam muito raras, este blogue, pela parte que me toca, não enjeita a possibilidade de produzir leitura própria sobre aspetos mais incomuns do quotidiano, designadamente a dimensão passional e criminal. O interesse desses desvios de cobertura e por estas crónicas do quotidiano passional relaciona-se com algumas derivas da cultura e vivência urbanas, com foco particular nas incompreensões frequentes dos casos de infelicidade humana e de profunda depressão. É esse o caso do tema de hoje, por mais lúgubre e deprimente que ele se apresente.)

Já perceberam que sou um leitor frequente e curioso da imprensa galega. O que tem várias explicações. Uma explicação intelectual porque me interessam os temas da autonomia regional e do seu desenvolvimento e afirmação nos contextos conturbados em que a democracia se encontra. Ainda, porque o tema da organização territorial acompanha inevitavelmente este último e neste caso porque a Espanha porque é um laboratório precioso para seguir essas matérias, sobretudo quando a situação é vista de fora e não tem que se suportar todos os desvarios possíveis que se têm consumado mais recentemente. Depois, por motivos afetivos, já que entre os colegas mais estimulantes em termos de trabalho conjunto estão seguramente intelectuais e professores galegos, alguns dos quais muito marcantes na minha maneira de ver e praticar o planeamento e a própria análise política. E, finalmente, porque passo uma parte significativa do ano com a Galiza à frente da minha varanda, onde trabalho e escrevo, com a Minho a unir e não a separar.

Há cerca de 7 anos, mais propriamente em setembro de 2013, estive entre os muitos que ficaram chocados com um crime ocorrido em Santiago de Compostela, materializado no assassínio da jovem sobredotada Asunta Basterra Porto de 13 anos, adotada pelo casal Rosario Porto e Alfonso Basterra. A descoberta do corpo da jovem Asunta em terrenos do interior rural de Santiago de Compostela, relativamente próximo da casa de campo do casal, na povoação de Teo, conduziu a uma investigação judicial que determinou a prisão e condenação do casal Rosario e Alfonso. Na altura, o que me impressionou no caso foi a filiação de Rosario, advogada considerada brilhante na barra de Santiago e ex-cônsul da Galiza em França, filha de um ilustre advogado galego e de uma professora catedrática da Universidade de Santiago de Compostela. A família Porto residia numa rua de Santiago de Compostela em que passei inúmeras vezes, bem no centro da Cidade, o que adensava a minha curiosidade. Não são ambientes familiares a que seja usual associar casos deste tipo, embora a personalidade e traços de Rosario Porto apontassem para um momento de vida difícil, com uma depressão profunda, um daqueles rostos que só um cineasta ímpar como Pedro Almodovar poderia tratar no cinema. O casal Rosario e Alfonso nunca assumiu em confissão a autoria do assassínio, mas o facto da jovem Asunta ter sido drogada com um excesso de medicamentação tomada pela mãe adotiva, pormenores de visualização da frequência por Rosario da vivenda de Teo e o pormenor de uma corda e de um cigarro encontrados junto do corpo da jovem determinaram a condenação do casal.

Até ao dia de ontem, os jornais galegos foram dando alguma informação sobre o estado depressivo de Rosario Porto, que passou por vários estabelecimentos prisionais na Galiza, enquanto que aparentemente o rasto de Alfonso Basterra pelas prisões galegas se perdeu totalmente. Há tempos, a notícia da degradação da vivenda em ambiente rural de Teo fez regressar o tema aos jornais galegos, mas nesse caso foi um incêndio provavelmente provocado por um conjunto de “OKUPAS” que determinou a notícia, mas que prenunciava algo, talvez a ideia de desaparecimento. Soube-se entretanto que Rosario Porto beneficiava de um estatuto legal de proteção anti-suicídio, dada a sua profunda depressão, mas também se sabia que esse estatuto não é temporalmente ilimitado.

Ontem, os jornais galegos e até os de Madrid davam conta do suicídio por enforcamento de Rosario na prisão de Brieva, no âmbito de um período em que a advogada não gozava já do estatuto de proteção contra a sua propensão para o suicídio.

Uma crónica anunciada que deixará completamente por terra as hipóteses já remotas de uma melhor compreensão do assassinato da jovem Asunta, já que a posição do pai Alfonso Basterra nunca forneceu elementos para uma melhor compreensão da tragédia.

Não sei se alguma vez os ditames da vida profissional ou do lazer me levarão de novo à Xeneral Pardiñas de Santiago. O isolamento e a depressão nas Cidades continuarão por certo a gerar muitas Rosarios, de rosto profundamente cavado e inexpugnáveis à nossa compreensão. É de mau gosto e sinal dos tempos que a Voz de Galicia, dois dias depois do enforcamento, tenha encontrado assunto no tema do destino misterioso do vasto património possuído pela família Porto (link aqui).

Talvez Almodovar se interesse por este rosto e por esta história trágico-macabra.

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