terça-feira, 17 de novembro de 2020

UMA PRECIOSIDADE DE BAÚ

 


(A economia e os economistas académicos têm sido frequentemente acusados de gerarem uma “ciência lúgubre e sombria”, diletante no rigor matemático-formal, mas alienante do ponto de vista do seu contributo para a compreensão dos tempos instáveis e perturbadores que se abateram sobre o mundo. Estou seguro da validade e da pertinência dessa crítica, mas o paradoxal é que sábios e avisados contributos de Grandes Senhores da ciência económica alertaram em devido tempo para a importância de rever profundamente as condições da graduação económica.)

O problema acima assinalado existe e qualquer professor de Economia de espírito aberto como sempre o quis ser dá-se facilmente conta de que algo vai mal no ensino da Economia. Ensina-se em grande medida como se estivéssemos a formar exclusivamente novos licenciados para a investigação em Economia, numa espécie de reprodução infernal de um círculo restrito, um clube de acesso limitado, onde a realidade impura e impiedosa nos seus desafios de irregularidade não entra a não ser em situações de grande excecionalidade. Como numa outra grande variedade de domínios em que a inovação tem pela frente uma forte inércia e de resistência à mudança, regra geral não será a oferta de conhecimento que vai protagonizar a fonte principal de mudança. Em meu entender, será a procura de conhecimento que poderá determinar a grande agitação e nessa procura o espírito crítico dos estudantes de 1º e 2 º ciclo será determinante. Por razões de cultura geracional, os tempos foram-se orientando para uma cultura acomodatícia dos estudantes e, salvo alguma reação mais ou menos ideológica e pontual, o ensino da economia não tem sido fortemente importunado na sua soneca de preservação do status quo.

 


É claro que o campo das possibilidades não é branco-preto. Há muitos professores e equipas docentes que se movimentam criticamente no mundo dos cinzentos e proporcionam aos seus estudantes largos e decisivos momentos de mergulho nas evidências da realidade, não abdicando por vezes do formalismo ou do rigor matemático mas transportando para as variáveis e parâmetros que povoam os modelos uma carga de realismo e desafiando a conformidade dos modelos com essa mesma realidade. As vantagens do rigor matemático-formal não devem fazer ignorar que é possível ser-se rigoroso nos domínios da teoria apreciativa (a que não recorre necessariamente a modelos matemáticos).

Em meu entender, o problema essencial consiste no facto do não apego à realidade e da recusa em a deixar entrar no clube de acesso reservado em que o mainstream se transformou tender a favorecer abordagens e teorias menos capazes de integrar no seu corpo de pensamento as imperfeições e irregularidades da realidade. A tradicional oposição entre concorrência perfeita e concorrência imperfeita, monopolista ou oligopolista permite-nos compreender esse favorecimento tendencial que, sorrateiramente, se instala na reprodução do conhecimento.

O sempre perspicaz e incisivo Lars P. Syll, economista escandinavo, mantém há longo tempo uma verdadeira cruzada de sentido crítico contra a perpetuação endógena do ensino da economia que se furta ao contacto desafiador com a realidade. A ele devo ter recuperado do meu baú digital de preciosidades um texto de setembro de 1991, publicado numa das revistas de referência, o Journal of Economic Literature (link aqui). O texto é assinado por um conjunto de Grandes Senhoras e Senhoras e só o seu enunciado transforma aquele documento numa peça histórica. Não é daqueles testemunhos ou abaixo assinados dos quais nunca ficamos a saber que grau de empenho e de convicção aquelas assinaturas veiculam. É antes o produto de um grupo de trabalho, constituído no âmbito da American Economic Association, que tinha por objetivo refletir sobre os termos da graduação em Economia e responder a várias interrogações sobre a mesma que a segunda metade dos anos 80 despertara. Vejam os nomes: Anne Krueger, Kenneth Arrow, Olivier Blanchard, Alan Blinder, Cláudia Goldin, Edward Leamer, Robert Lucas, John Panzar, Rudolph Penner, T.Paul Scultz, Joseph Stiglitz, Lawrence Summers. Se retirar os nomes de John Panzar e de Rodollph Penner, dos quais nunca li nada e nem sei o que têm produzido, os restantes colocam em expectante silêncio qualquer auditório. E não são propriamente críticos antissistema e alguns deles, relevo para Robert Lucas, fazem parte intrínseca do universo do já referido formalismo. E entre este grupo estão também nomes que anunciam novos temas na economia, com relevo particular para a Professora Cláudia Goldin (Harvard), um dos nomes hoje mais brilhantes dos temas da economia de género.

A posição coletiva deste grupo, que não terá sido de fácil alcance, dadas as divergências conceptuais nele existentes, confirma a “perceção de que a desvalorização dos laços existentes entre ferramentas, teóricas e econométricas e os “problemas do mundo real” constituem a principal debilidade das licenciaturas em Economia. A debilidade não consiste no uso excessivo da matemática. Se há um tema central nas nossas preocupações é que consideramos existir um largo potencial de melhoria em conseguir que o conhecimento dos estudantes dos problemas económicos e das instituições os capacite para utilizar as suas ferramentas e técnicas em problemas importantes”. Menos técnica matemática e mais substância económica, mais criatividade e resolução de problemas e menos formalização parecem, assim, ser uma via de melhoria, sobretudo quando a evidência aponta para que o ensino da Economia não se destina apenas a candidatos à investigação e à academia. E estamos a falar da economia americana. Por maioria de razão, em Portugal, essa necessidade é ainda mais imperiosa.

Afinal, algo de muito simples que já em 1991 era claro aos olhos de tão valioso grupo de economistas. A realidade não pode ficar à porta, tem direito de entrada e não pode deixar de influenciar o que se ensina e como se ensina. Quase trinta anos depois, esta preciosidade não perdeu valor, antes pelo contrário.

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