quarta-feira, 4 de novembro de 2020

O CASO DA BÉLGICA

 

                                                (Com a devida vénia ao Financial Times)

(Muitos de nós já compreendemos que o olhar sobre alguns temas e coisas não será mais o mesmo por efeito da pandemia. Vários exemplos dessas novas perspetivas têm passado por estas reflexões, possivelmente de forma mais desordenada do que o desejável. Um dos temas que merece uma revisita é o da organização territorial dos Estados e, como caso extremo, a Bélgica merece a nossa atenção, se não fora por outro motivo, pelo respeito que é devido ao elevado número de pessoas que morreram neste período pandémico.)

A descentralização e a regionalização são dimensões do aprofundamento da democracia e os três DDD (descentralização – democracia - desenvolvimento) sempre estiveram no centro do meu interesse pelas questões do território. Tenho a mais profunda convicção de que a descentralização é uma dimensão intrínseca do desenvolvimento, ao contrário de muitos que pensam que o desenvolvimento é uma condição necessária que tem de ser alcançada primeiro para que se abra caminho à descentralização. Uma reflexão pouco madura sobre o tema poderá sugerir que a correlação entre nível de desenvolvimento e descentralização é muito forte. Mas não ignoro o problema da causalidade e sei bem que a sua existência, sem demais operações, não nos assegura por si só uma relação causal. A questão subsiste e uma outra pode ser colocada: essa correlação supõe que o desenvolvimento é consequência da descentralização e de muitos outros fatores ou, pelo contrário, é condição da própria descentralização?

As minhas razões para defender que a descentralização é condição de desenvolvimento e não o seu contrário prendem-se com o estudo temporal e diacrónico de vários processos de desenvolvimento e com a evidência que ela permite a ocorrência de fatores constitutivos do próprio desenvolvimento: a mobilização de uma massa mais alargada de recursos do país, a pluralidade de representações do desenvolvimento que é essencial à dimensão democrática dos processos e dos valores, o enriquecimento da matriz identitária dos países, uma melhor regulação dos desequilíbrios espaciais de desenvolvimento, apenas para citar os que me parecem mais representativos.

Mas a lógica da descentralização é indissociável de uma organização territorial equilibrada e aí surge normalmente a criação de unidades espaciais intermédias, as regiões ou as Cidades-região em alguns casos, que funcionam como fatores de reequilíbrio entre a dispersão que a descentralização potencia e a centralização que se situa nos seus antípodas. Que as autonomias regionais podem ser alicerçadas em graus muito diferenciados dessa autonomia e de competências a assumir todos o sabemos e até temos o caso da Espanha como modelo em que que coexistem diferentes graus dessa autonomia, com a distinção básica entre autonomias históricas (o País Basco, a Catalunha e a Galiza). E também não é vantagens da descentralização e os inconvenientes os custos de transação e coordenação que aumentam com a multiplicação das unidades de base e intermédias.

Esse é, resumidamente, o pensamento de manual dos que estão convictos das virtualidades da descentralização em democracia e dos que pensam também que um simples diálogo entre as unidades descentralizadas e o governo central é perigoso e conduz frequentemente ao esgotamento desses modelos. Aliás, como o demonstrei em alguns artigos a propósito do modelo português do continente baseado na seguinte triangulação: poder central historicamente forte, poder municipal com peso e influência superiores à despesa pública que realizam diretamente, regiões de planeamento institucionalmente débeis. Acresce lateralmente que a decisão promovida pelo PS de escolher pelo menos parcialmente a Presidência das CCDR por um colégio eleitoral de autarcas locais em meu entender não resolve o esgotamento desse modelo.

Pode perguntar-se por que vias a gestão da pandemia mostrou que é necessário um novo olhar sobre esta questão da organização territorial do Estado e das competências a ela associadas?

O caso da Bélgica é uma situação de estudo, embora possa corresponder a um caso extremo. Há razões históricas profundas que o tempo tem agravado e não resolvido ou atenuado que sugerem que o contexto belga possa ser extrapolado. As diferenças entre uma Flandres (flamenga) rica e uma Valónia (francófona) pobre, com a clivagem linguística a cavar uma brecha inviabilizadora de uma super-identidade belga, ainda que a capital belga acolha as principais instituições comunitárias, são profundas e refletem-se obviamente na debilidade histórica dos governos centrais. Os números da pandemia colocam a Bélgica, na primeira onda e nesta última, no centro do furacão, com letalidades altíssimas e sinais de fragmentação suicidária, como o sugere a notícia já aqui divulgada de que o grande hospital de Charleroi (Valónia) se terá recusado a receber de hospitais de Bruxelas.

É um caso extremo? Sim, concordo, sobretudo por razões históricas. Mas se pensarmos nesta linha e olharmos para o caso da Espanha as mesmas ideias reemergem e a Espanha está também no centro do furacão.

A Clara Ferreira Alves costuma sublinhar que a questão pandémica é essencialmente uma questão logística e tendo a dar-lhe razão. Ora, com uma organização territorial confusa, mal-assumida, com fatores geradores de conflitualidade não há máquina e gestão logísticas que resistam. Os acontecimentos pandémicos na Bélgica e na Espanha sugerem estarmos perante esse tipo de fator penalizador, que se compreende pelo contraponto de um Estado Federal como é a Alemanha, onde a qualidade logística não é beliscada por rabos de palha na organização territorial do Estado, que não existem aliás no modelo alemão.

O tema é já visível e o Financial Times dedica-lhe até um artigo (link aqui).

Mas há uma outra questão que se encavalita com esta e que funciona como fator de explosão acelerada. Estamos em tempos de polarização e fragmentação políticas e a política está repleta de figurões, eles próprios fatores de explosão acelerada. O modelo Trump veio para ficar e sinto que as nossas cabeças estão sob uma guilhotina eminente com uma sua possível vitória nas eleições americanas. Ora, os modelos de organização territorial não são abstratos, enchem-se e ganham vida com lideranças e projetos políticos. Se a gestão pandémica é uma questão logística então a fragmentação política alimentada pelo populismo mais boçal tem aqui um campo de proliferação. Estou certo que as autonomias mais robustas podem gerir esses fenómenos de modo positivo. Os Açores serão também neste domínio um laboratório. Mas o que é fundamental compreender é que existem outros domínios para além da gestão pandémica em que a gestão logística é crucial, não se compadecendo com a proliferação de centros de decisão.

Um esclarecimento final:

A minha convicção nas virtualidades dos três DDD resiste a este ponto. Mas que estou seguro que não mais olharei da mesma maneira a questão da organização territorial disso não tenho dúvidas. Sempre pensei que são os governos mais robustos e estáveis que podem abalançar-se a processos de descentralização e regionalização. O problema é que estamos em tempos de fragmentação política, o que não é sinónimo de governos fortes. E para bom entendedor …

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