domingo, 1 de novembro de 2020

O DECLÍNIO AMERICANO

 

                                                                    (Financial Times)

(As eleições da próxima terça feira colocam o mundo perante uma encruzilhada e, tal como o meu colega de blogue já o assinalou, todos fazemos figas para que a vitória de Joe Biden nos dê alguma esperança de que a decência e a democracia podem confortavelmente conviver. Mas ainda que o foco esteja nos resultados conhecidos talvez muitos dias depois de encerrarem as urnas, estas eleições apanham a sociedade americana num declínio prolongado para cuja superação a vitória de Biden é apenas uma condição necessária, não suficiente …)

Martin Wolf reflete no Financial Times (link aqui) sobre esta questão e acho que o seu comentário é bem fundamentado. A análise de Wolf confronta o que os EUA podem oferecer ao mundo com os princípios e valores dos tempos de Franklin Delano Roosevelt, em plena Grande Depressão, tempos em que ainda segundo a expressão de Roosevelt, “EUA o arsenal da democracia”, fazia o seu caminho, não apenas do ponto de vista literal (a ajuda americana na Segunda Guerra Mundial), mas também na perspetiva das armas dos princípios e dos valores. Wolf tem razão quando refere que uma vitória de Trump equivalerá à destruição dessa herança, com tudo que isso implicará em termos de uma ordem internacional mais conflituosa e perigosa. Mas tem também razão quando alerta para que os princípios que Roosevelt colocava no cerne da afirmação americana estão já há muito tempo em declínio e, direi eu, a emergência de Trump é a melhor evidência de que tal declínio está em marcha.

 

Bem podem os apaniguados de Trump pendurar-se no “We will make America great again”, mas essa bandeira começou a perder o impacto que já teve. Em primeiro lugar, pela deriva concentracionária e plutocrática do capitalismo americano, em que a ganância (greed) encontrou o Presidente que ambicionava. O comportamento da produtividade e do salário real dos Americanos não para de assentar numa divergência crescente, às faixas superiores da riqueza e da distribuição do rendimento foi-lhes concedida uma ampla “amnistia fiscal” e a procura de trabalho concentra-se cada vez mais em grupos empresariais que definem o comportamento da norma salarial são evidências que se combinam, reproduzindo e agravando os mecanismos de criação de oportunidades. Entretanto, do outro lado da moeda, os Americanos vivem cada vez pior como a sua esperança de vida à nascença claramente o evidencia, as morbilidades associadas à degradação das condições de vida e à desigualdade são galopantes, a perceção externa do nível de corrupção nos EUA nunca foi tão elevada, as condições de proteção na saúde não se equiparam ao que o senso comum entende por desenvolvimento e a satisfação com a democracia piora com as gerações e na população mais jovem. Os efeitos da pandemia na sociedade americana claro que se devem à inépcia arrogante de Trump e da sua Administração, mas não deixam de refletir o estado das coisas atrás indicado. O racismo estrutural de que a sociedade americana continua a padecer pode ser lido também à luz desse estado das coisas.

Para já não falar da matéria política externa, na qual, se não contarmos com o show-off pró- Israel e Netanyahu e alguma aproximação com alguns países árabes, os EUA estão numa de retirada e de abandono do seu papel tradicional de resolução de questões e conflitos internacionais. Obviamente, que ninguém é ingénuo ao ponto de ignorar as inúmeras derivas e intrusões que a política externa realizou em inúmeros países (América Latina, por exemplo), o erro trágico da intervenção no Iraque, a humilhação no Vietname e muito recentemente, já em tempos de Trump, a vergonhosa e cruel política relativamente às migrações.

A perda de protagonismo em domínios como as alterações climáticas, com a denúncia do acordo de Paris sobre as emissões de gazes com efeito de estufa, não é só a consequência dos interesses plutocráticos e largamente identificados com os combustíveis fósseis que capturaram a administração americana, mas pode também ser entendida como um reflexo da retirada que os EUA sob a batuta de Trump se impuseram dos grandes problemas e conflitos mundiais. O que é de certa maneira algo de coerente com a perda de referenciais e de valores que há para mostrar como bandeiras e inspiração.

Quando me emocionava ontem com aquele espírito que ressalta do LETTER FOR YOU, em que as raízes de Bruce Springsteen se combinam com aquelas paisagens que estão para além do alcance do nosso olhar, com árvores magníficas e imponentes esmagadas pelo branco da neve, senti que ali estavam ainda presentes alguns dos princípios e valores que faziam parte da afirmação americana nos tempos de Roosevelt. Mas uma dúvida, terrível, direi eu, assaltou-me: o que a minha sensibilidade captou naqueles ambientes e imagens é algo que a sociedade americana, com as opções certas e um maior respeito pelos desfavorecidos, pode recuperar ou pelo contrário não é senão uma manifestação que tenderá a perecer, na voragem implacável dos tempos do declínio americano?

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