O Papa Francisco já descansa no túmulo discreto por si escolhido, em Santa Maria Maggiore (Roma). As cerimónias associadas ao funeral tiveram o ruído mediático que era inevitável que tivessem, embora alguns líderes internacionais (Trump, desde logo) mais coerentes teriam sido se não marcassem presença (como Putin e Netanyahu). No nosso caso, o provincianismo parolo imperou, com nada menos de quatro representantes (Marcelo, Aguar-Branco, Montenegro e Rangel, fazendo com que Leitão Amaro ascendesse por breves instantes ao sempre tão ansiado lugar de primeiro-ministro em exercício) a não quererem perder a oportunidade de posar ou passar perto de muitos dignatários mundiais. Dentro em pouco tempo, iniciar-se-á o conclave eletivo do novo Papa e as apostas são de toda a espécie – recomendo que aproveitem para ver o filme de Edward Berger com o mesmo nome em que Ralph Fiennes surge como o cardeal decano que organiza a eleição num clima que o realizador afirmou acreditar corresponder à “claustrofobia e paranoia” que se verifica na realidade (ainda que os argumentistas, Peter Straughan e Robert Harris, vencedores do Óscar de melhor argumento adaptado, pretendessem, a meu ver, pôr em evidência outras damas determinantes, como a da presença da Igreja em locais de conflitualidade aberta no mundo, no caso o Congo e o Afeganistão, ou a do papel sempre intoleravelmente secundário que é permitido às mulheres no seio da mesma ou do seu raio de ação) –, sendo especialmente crucial que o desfecho venha a traduzir uma clara continuidade/aprofundamento (e não um retrocesso/fechamento, como se percebe ser o sentido preferido de alguns grupos, entre radicais declarados e outros que preferem agir nos bastidores e num quadro de silêncio público) em relação ao que foram os assinaláveis doze anos de Francisco, independentemente de haver quem considere – provavelmente sob a influência de um irrealismo essencial face à natureza da Instituição e às relações de forças que nela se exprimem – que estes até poderiam ter sido mais ousados. Num mundo que se nos apresenta no estado crítico que vamos conhecendo, e onde certos valores fundadores vão sendo questionados e contrariados de modo crescente, será da maior importância que a personalidade daquele que virá a surgir à varanda central da Basílica de São Pedro após haver fumo branco no Vaticano esteja à altura dos imensos desafios com que se irá deparar – assim ele honre o legado e o bom nome do seu antecessor...
sábado, 26 de abril de 2025
FRANCISCUS
sexta-feira, 25 de abril de 2025
UMA PARTILHA VINDA DA AUTORIZADA VOZ DO CEPII
Reencontro em Espinho com um velho amigo parisiense (Joaquim Oliveira-Martins) e ocasião para atualizações várias de conversa. Uma delas centrou-se no nosso velho CEPII – ao que consta agora em vias de abandonar o seu estatuto público e de se fundir com o também reputado OFCE – e nos debates que por lá se têm desenrolado sobre a louca conjuntura mundial que atravessamos. Pretexto para uma incursão nos mais recentes trabalhos por ali publicados e, assim, para chamar a vossa atenção para os dois gráficos que reproduzo. Acima, uma forma muito curiosa e assaz original de evidenciar quanto o dito maior player nos mercados internacionais (a União Europeia), não só já o deixou de ser há alguns anos, em proveito da China, como e principalmente partilha com os EUA uma outra debilidade comparada em relação à crescente dominação chinesa na produção e no comércio internacional, no caso apresentando um número correspondente a pouco mais de metade das posições dominantes por produto detidas por aquela potência asiática (num total avaliado de cerca de 5000). Um registo que é ainda assim, e apesar de tudo quanto se vai dizendo, altamente surpreendente pela expressão da diferença que surge manifestada e se regista também face aos EUA.
Abaixo, uma evidência algo mais batida pelas más razões associadas ao enorme mediatismo que emergiu na sequência da demente investida de Trump no domínio das tarifas a impor pelo seu país aos restantes países do mundo, mesmo sabendo-se que logo a seguir ao “dia da libertação” (2 de abril) iria ser decretada uma quarentena suspensiva da decisão anunciada. De qualquer modo, e com um ou outro grau de detalhe complementar ou substitutivo, o certo é que o gráfico é visivelmente falante quanto à amplitude do que aí parece estar em processo não reversível: um protecionismo estúpido (é a palavra!), de brutal espectro e preocupantemente indiciador de consequências imprevisíveis, mas sempre gravosas, sobre a estabilidade de um sistema internacional que perdura há oito décadas e sobre o comportamento da economia mundial.
FRAGILIDADES DA RESISTÊNCIA UCRANIANA
Euronews
(A sexta-feira é o meu dia auto-consentido de pausa no trabalho, o qual coincidindo com o feriado de 25 de abril constitui uma partida do calendário, desperdiçando um dia de folga. Ainda assim, exploro o refúgio de Seixas para recuperar forças não propriamente de trabalho forçado, mas antes de uma pressão estranha que os acontecimentos internacionais centrados no bullying de Trump à situação ucraniana me provocam, incómodos sobretudo porque destapam a fragilidade europeia para responder a esta situação de apadrinhamento americano das ambições imperiais de Putin. A personalidade de poder absoluto que Putin encarna seduz o pequeno tirano Trump, também ele aspirando a eliminar quaisquer constrangimentos ao exercício da sua errática vontade. É difícil à distância a que estamos compreender se a Ucrânia de Zelensky caminha para a derrota total e para a inevitável cedência de território, esteja ela centrada na Crimeia transferida por Nikita Khrushchov para a então República soviética Ucrânia em 1954, seja nos territórios hoje ocupados pela Federação Russa na sequência da invasão de 2022 e dos avanços conseguidos em plenos combates subsequentes. Sempre atenta a estes pormenores, Clara Ferreira Alves fez ontem referência no Eixo do Mal a uma peça do Economist que dá conta de outros desenvolvimentos que não apenas os do combate sem tréguas que estão a acontecer em diferentes pontos da ocupação russa. Estamos a falar de desenvolvimentos políticos através dos quais se percebe que a situação política interna a que Zelensky está exposto está longe de coincidir com a apreciação amplamente positiva que o Presidente ucraniano suscita sobretudo na Europa.)
Quando um país sofre uma invasão e ocupação subsequente como aquela a que a Ucrânia está a ser submetida e é nesse sentido conduzida a um esforço de guerra de grandes proporções, imaginar que se abriria um caminho sem constrangimentos de qualquer espécie à consolidação da democracia transporta-nos para uma situação de insuportável ingenuidade. Em primeiro lugar, quando se dá a invasão, a Ucrânia atravessa uma transição política de grande intensidade após os acontecimentos de 2014 que marcaram a rotura com a influência russa no país. A sociedade ucraniana estava então longe de poder ser considerada uma democracia consolidada ou sequer em fase adiantada de consolidação. O artigo do Economist sublinha com acerto que “a democracia ucraniana nunca se baseou no respeito pela lei (Estado de Direito). O seu pluralismo interno era gerado pela diversidade das suas regiões, os interesses conflituais dos seus grupos de poder e por uma sociedade civil bastante ativa que se baseava no apoio das embaixadas ocidentais e nos media. Todas esses contrapesos estão enfraquecidos ou a desaparecer”.
A concentração de poder que está a acontecer em torno de um grupo restrito de gente de confiança de Zelensky é típica de situações comuns aquela que a nação ucraniana está a atravessar. Não se trata, de facto, de suspender uma democracia consolidada devido à guerra da ocupação e da resistência. Trata-se antes de interromper o tal pluralismo interno de que fala o artigo do Economist, de modo a evitar toda a fissura possível nos processos de tomada de decisão, eles próprios concentrados num único objetivo – o de resistir à invasão e gerar uma situação que ofereça alguma margem de manobra às negociações de paz que vierem a acontecer, por mais desiguais e injustas elas possam ser. A monopolização do poder em torno do círculo restrito de Zelensky é assim uma espécie de crónica anunciada numa sociedade cuja progressão para a democracia está mais ao nível das aspirações do que propriamente ao nível das diferentes expressões do Estado de Direito.
O artigo documenta vários afastamentos e interdições de personalidades que em tempos de estabilidade e não de ocupação seriam adversários políticos de Zelensky. São estes processos de concentração do poder que Trump tem tipificado como exemplos de comportamentos ditatoriais (olha quem fala!).
Não me espantaria de todo que, na sequência dessa monopolização de poder que tanto pode ser gerada por circunstâncias ligadas à situação de guerra como pela vontade de afastar adversários incómodos, os EUA acenassem com a saída de cena de Zelensky como uma das condições para o estabelecimento de tréguas por mais precárias que elas possam ser. Essa exigência entendo-a não como algo de natural, mas antes como algo de premeditado para forçar a Ucrânia à cedência de território. Entre os adversários de Zelensky haverá sempre alguém com flexibilidade de rins para aderir a negociações que não considerem a cedência de partes do território ocupado como constrangimento dos acordos possíveis.
Curiosamente, o artigo do Economist sublinha a relevância de uma das manifestações do pluralismo interno ucraniano a que anteriormente me referi. Trata-se do êxito da indústria de guerra ucraniana que tem conseguido avançar na produção autónoma de drones e outros artefactos de guerra, cuja aplicação non teatro de operações tem sido responsável por uma grande percentagem dos danos infligidos às forças russas.
Talvez esteja a sucumbir a um pessimismo determinado pela impotência europeia em fazer-se representar nas negociações de paz. Mas podemos ter um cenário em que a grande força de união e liderança que Zelensky representou, apesar da monopolização de poder que protagonizou, seja afastada do processo. Seria uma injustiça cruel com que a história presentearia o líder ucraniano. E pergunto-me que raio de posição vão os Europeus assumir no eventual desenvolvimento desse processo.
quinta-feira, 24 de abril de 2025
RESPEITABILIDADE PERDIDA!
Tenho plena consciência de que “cada um é como cada qual” e de que o mal é como o bacalhau: “é feio, cheira mal mas não é todo igual”. Ora, e assim sendo, no meu caso pessoal há duas coisas interligadas que me irritam particularmente: uma é que façam de mim parvo, pior ainda se disso o cidadão em causa dá o devido sinal trocista ou marotão, e outra é que me atirem areia para os olhos ao confundirem alhos com bugalhos, pior ainda se tal se fizer acompanhar de manifestações tendentes ao apelo à comoção, à compaixão ou à comiseração. Pois, nem de propósito, o nosso Luís Montenegro (LM) – que já vinha de há muito a aproximar-se da primeira daquelas pechas com as suas declarações sempre desviantes em relação a matérias associadas à empresa “Spinumviva” – acertou em cheio nas duas durante a sua longa entrevista a Júlia Pinheiro, animadora na SIC das tardes dirigidas a donas de casa e reformados.
Uma vez que não sigo obviamente o dito programa, foi através de um alerta amigo que se me revelou o facto que abaixo refiro e que considero de uma gravidade insana para não dizer de uma tão obscena exploração de sentimentos que roça a desonestidade pessoal. A saber: LM decidiu-se a ali utilizar os seus dois filhos, os mesmos que envolveu no processo ao torná-los herdeiros de uma carteira de contactos pessoais, para se vitimizar quanto ao efeito que neles observa na decorrência do caso “Spinumviva” – ou seja: o mais velho (24 anos e licenciado em Gestão) tem “projetos com amigos dele e colegas de faculdade” mas “tem tido uma dificuldade enorme, neste momento, em levar os seus projetos pela frente” na medida em que “há muitas pessoas que lhe estão a fechar as portas”; o mais novo (ainda a frequentar a universidade) foi chamado à colação por via do seguinte relato na primeira pessoa: “Ele não me vai levar a mal que eu diga aqui, que num dos dias em que nós estávamos sob maior impacto mediático, estava tão cabisbaixo que lhe perguntei o que é que tinha, e ele lá respondeu à maneira dele, e depois eu disse-lhe: ‘Mas estás com medo?’ E ele respondeu tão simplesmente isto: ‘Já percebi que vou ter de sair de cá’, como quem diz, ‘eu por este andar vou ter de ir trabalhar para o estrangeiro por causa do pai’”. Uma exploração absolutamente miserável dos mais básicos instintos do ser humano, à qual não se coibiu de acrescentar um apelo ao reconhecimento privado e íntimo das injustiças em presença – ademais sublinhando que devem existir limites ao preço a pagar por se estar na vida pública – e, no tocante ao filho maior, a algum possível favorecimento por parte de quem se sinta solidário com “este impacto” num jovem “que já está na vida profissional” – portanto, uma espécie vergonhosamente disfarçada de nepotismo. Imperdoável!
INDIFERENÇA E CONTRADIÇÕES
(Diário de Notícias)
(Estou em crer que acabarei a minha vida profissional na área do planeamento e continuarei a ler notícias sobre a crise dos excedentes de vinho na região demarcada do Douro. Já muito atrás no tempo, o tema dos vinhos do Douro e do Porto encheu-me de entusiasmo por poder contribuir com um diagnóstico arejado da situação estrutural vivida por aquela região vitícola e já aqui referi diversas vezes que acabou por ser das experiências mais ricas que tive de trabalho no terreno e de envolvimento com stakeholders de grande sensibilidade e sabedoria, que passei a considerar de Grandes Senhores do Vinho. A minha sensibilidade para o tema começou bem antes dos estudos estratégicos setoriais que tive oportunidade de coordenar, primeiro para o IVDP e depois para a Associação das Empresas do Vinho do Porto. Ela começou com a minha participação nos estudos preliminares da preparação da candidatura a património UNESCO da região demarcada, estudos esses que deram origem posteriormente aos estudos da candidatura propriamente dita liderados pelo Professor Bianchi de Aguiar da UTAD. Tal como acontece, regra geral, com situações estruturais que vão perdurando sem qualquer ensaio de solução, paulatinamente vai sendo gerada uma situação de indiferença perante o problema, pois a permanência dos diagnósticos ao longo do tempo vai criando em alguns a ideia de que as coisas não estarão assim tão mal, pois, caso contrário, já teriam rebentado de vez. A referida indiferença vai-se alimentando da inércia, mas no seio dessa inércia desenvolvem-se estratégias diversificadas de sobrevivência, cavalgando ilegalidades ou informalidades que estão paredes meias com essa possível ilegalidade. Tudo isso acontece porque sobretudo o mundo do vinho do Porto é altamente regulado e os recursos humanos disponíveis para a fiscalização de procedimentos no terreno a cargo do IVDP vão escasseando cada vez mais. Por outro lado, ainda não consegui entender o que é que o ressurgimento da velha e malfadada Casa do Douro trouxe à resolução do problema. Podem perguntar-me: porquê então regressar ao tema com mais um post? Faço-o porque, além da indiferença e inércia instaladas, existe agora a evidência de que não só não se perfilam soluções para o problema estrutural, como a política pública está a suscitar novas contradições. E isso merece um novo comentário.)
Recordemos para já o problema central. Existe um excedente de produção de vinho na Região, seja porque a procura de Vinho do Porto está desde há muito tempo a abrandar implicando aumento de valor por garrafa e nunca aumento de produção física, seja porque os chamados vinhos do Douro tão sedutores na sua qualidade de topo também não conseguem absorver todas as uvas cultivadas.
Já no tempo dos estudos que coordenei era evidente que o benefício atribuído no âmbito do Vinho do Porto, originalmente concebido em função de uma classificação multicritério de uvas segundo o padrão de localização das vinhas para garantir a melhor qualidade ao Vinho do Porto, se transformara numa boia de salvação para os pequenos produtores com produção coberta pelas classes de melhor qualidade. Entender como é que uma parte significativa das uvas subsidiadas acaba por ser aplicada na produção de vinhos do Douro implicaria um longo curso de aprendizagem das práticas de sobrevivência que se desenvolvem na Região, tamanha é a complexidade dos processos que lhe estão subjacentes. Devo confessar que depois de ouvir sucessivas histórias concretas em trabalho de terreno rapidamente cheguei à conclusão de que nunca entenderia plenamente a diversidade dessas práticas. A sobrevivência exercita a imaginação.
O excedente permanente de vinho na Região coloca os pequenos produtores numa situação de risco permanente, levando a que alguns destes produtores que não consigam obter benefício decidam não colher as uvas, pois evitam pelo menos o prejuízo da vindima.
E o problema é que os vinhos do Douro tão sedutores no seu charme comunicacional acabam também eles por viver uma situação insustentável, pagam a uva que transformam a preços incompatíveis com a justa remuneração aos produtores, estimulando estratégia de competitividade-preço em detrimento da competitividade-valor.
O montante de benefício anual é ajustado em função do que é conhecido em matéria de excedentes e de comportamento da procura, acabando por ser um instrumento de controlo da produção. Com redução do benefício, a experiência mostra que se entra no “salve-se quem puder”. Outras vias têm sido ensaiadas como a de autorizar a transformação de uvas em aguardente, fazendo com que o Vinho do Porto recorra a aguardente da Região e não a aguardente importada. Mas tudo isto não consegue resolver estruturalmente o problema do excedente real e sistematicamente reavivado a cada ano em que se prepara a aplicação do salvífico benefício.
O problema persiste, mas só um grande especialista e muito atento consegue acompanhar a profusão de marcas Douro que vão aparecendo no mercado. A indiferença e a inércia coexistem paradoxalmente com um mercado cada vez mais diversificado.
Mas há gente lúcida no Douro a pensar diferente e a tentar abanar a inércia. Pedro Garcias é um jornalista e pequeno produtor no Douro que leio bastante, pois houvesse muitos Pedros no Douro com esta lucidez e a Região estaria melhor.
É a ele que recorro, pois no seio de toda esta indiferença é uma das raras vozes que denunciou a estranha contradição de num universo de excedentes a política pública estar a autorizar a plantação de novas vinhas. Atentemos no realismo do seu raciocínio:
“Um país a nadar em vinho e um ministro a sonhar à João Félix (…)
“Irracional é a decisão do Ministério da Agricultura de, nesta conjuntura, conceder direitos de plantação para mais 2415 hectares de novas vinhas durante este ano. Este regime de autorizações anuais graciosas enquadra-se nos objetivos da União Europeia de não perder quota de vinha e está previsto que vigore pelo menos até 2045. Mas até a Comissão Europeia já percebeu que é um contrassenso plantar mais vinha quando o mundo regurgita de vinho. José Manuel Fernandes, que tutela o Instituto da Vinha e do Vinho, acha que não. Acha que é necessário aumentar a oferta, quando o país está a abarrotar de vinho e há uma nova vindima à porta, que, se for generosa (e a abundância de chuva aponta para isso), pode agravar ainda mais o problema”.
Compreendem agora que não existe apenas indiferença e inércia. Temos o disparate instalado.
quarta-feira, 23 de abril de 2025
DIA MUNDIAL DO LIVRO
Ausente durante uns dias deste espaço por razões profissionais ou equivalentes, venho hoje apenas aqui fazer prova de vida e prometer um regresso para amanhã. O pretexto é o livro, o objeto que, passados todos estes já muitos anos, ainda continua a ser aquele que mais me enche as medidas em quase todas as ocasiões. E juro que não se trata de um mero sinal de “B.I.A.” ou seja, de que sou titular de um “bilhete de identidade antigo”...
TRICKLE DOWN ECONOMICS? NÃO, OBRIGADO!
(Pro-market ou Pro-business eis a questão. A direita económica está numa profunda deriva por todo o mundo que eu costumo explicar por abusar de uma confusão. Compreende-se que a direita económica seja “pro-market” nas suas convicções. Está no seu direito legítimo de fazer essa opção e não custa reconhecer que existem muitos domínios da economia em que essa orientação é a mais correta, pois equivale a otimizar o modo como os agentes económicos, sejam eles empresários, trabalhadores ou simplesmente consumidores reagem a incentivos, gerando respostas mais eficientes e eficazes. Mas nos últimos tempos, o “pro-market” tem-se transformado perigosamente no “pro-business”. Esta última opção consiste em utilizar a primeira para deliberadamente favorecer determinados agentes económicos em detrimento de outros. Os estudos disponíveis, designadamente os de Thomas Piketty, sobre a distribuição de rendimento na economia americana depois de aplicados os impostos permitem concluir que, durante os últimos 50 anos, cerca de 80 milhões de milhões de dólares (trillions) foram transferidos dos 90% dos americanos com menores rendimentos para o 1% mais rico. Tudo isto com uma aparência “pro-market”, mas efetivamente é a lógica do “pro-business” que comanda a deriva a que anteriormente me referia. Não há deriva económica que não tenha a enquadrá-la uma teoria económica favorita entre as favoritas. É por estas e por outras que a ciência económica tem dificuldade em justificar a validade e justeza da primeira parte da expressão. Neste caso, a deriva da direita económica que grassa pelo mundo, e o programa da AD não resistiu a essa tentação, até encontrou uma terminologia sonante e apelativa, a chamada “trickle-down economics”. É sobre ela que se justifica alguma reflexão, pois na prática é esse o fundamento para a confusão deliberada entre o “pro-market” e o “pro-business” que está por aí a ser praticada.)
Está muito generalizada a ideia de que a “trickle-down economics” é uma abordagem que considera que os cortes de impostos e a desregulação em favor dos mais ricos e das sociedades empresariais estimularão a economia, beneficiando em última instância toda a gente, incluindo as classes mais baixas. Subjacente ao argumento está a ideia de que o tal arrastamento ou escorrimento de riqueza (trickle-down) se concretiza através do investimento tornado possível, da criação de emprego associada e do incremento da procura, conduzindo ao generalizado crescimento económico.
O cartoon que abre este post ridiculariza obviamente a música celestial do argumento do “trickle-down”.
Há duas maneiras possíveis de realizar uma análise crítica desta abordagem.
Por um lado, embora o discurso esteja na moda e dê origem a algumas entradas de leão na política económica de alguns governos de direita que chegam ao poder com essa promessa (algumas destas entradas dão origem a saídas de sendeiro, das quais a mais relevante foi o desastre da conservadora Liz Truss na sua passagem relâmpago pelo número 10 de Downing Street), a verdade é que existe muito pouca evidência empírica (senão nenhuma) de que o efeito arrastamento funcione. Existem várias razões para que isso possa acontecer. Em primeiro lugar, porque a referida descida de impostos tende frequentemente a ser regressiva, sendo mais elevada para os mais ricos. Segundo, porque os beneficiários podem manter o nível de investimento e assim internalizar sob a forma de benefícios-lucros o ganho fiscal. Terceiro, porque a relação entre investimento, crescimento e emprego não é linear, já que a tecnologia pode ser “poupadora de trabalho” (Labour saving).
Poderíamos ficar pela falta de evidência empírica credível, sobretudo proporcional ao caráter generalizado de difusão do discurso do “trickle-down”. Mas é possível elaborar um pouco mais e mostrar que a abordagem do “trickle-down” para ser efetiva exigiria não apenas aplicação seletiva e o mais equitativa possível dos cortes de impostos e de regulamentação, mas principalmente um contrato ou pacto social e político e de confiança entre quem beneficia em primeira linha e quem poderá beneficiar em última instância, depois de todos os efeitos de arrastamento serem concretizados.
A questão do contrato de confiança é decisiva para evitar a adulteração de comportamento dos que vão beneficiar em primeira linha.
O problema é que nas condições de desigualdade prevalecente quando os adeptos do “trickle-down” chegam ao poder e a querem exercitar, a polarização substitui-se a essa confiança e para muitos ele é considerado, com razão, uma treta e um embuste.
Retomo aqui a sugestão de leitura do Amigo Guilherme Costa, que já foi objeto de post anterior, segundo a qual as estratégias de colaboração podem constituir uma alternativa válida para as sociedades ocidentais saírem do impasse em que estão mergulhadas. Não há pacto de colaboração possível sem uma relação de confiança entre os primeiros e os derradeiros beneficiários potenciais do “trickle-down”.
O texto de Eric D. Beinhocker (“Fair Social Contracts and Large-Scale Collaboration”[i]) fornece algumas pistas para pensar esta questão, principalmente quando desenvolve as nove dimensões que tornam possível a colaboração bem-sucedida. Essas nove dimensões consagram três tipos de justiça – relacional, procedimental e distributiva. Destacaria uma dimensão em cada tipo de justiça: na justiça relacional, a inclusão que acontece quanto os intervenientes têm uma oportunidade para entrar no jogo; na justiça procedimental, a questão das regras, através das quais os intervenientes conhecem as regras do jogo e estas são aplicadas por igual; na justiça distributiva, a reciprocidade através da qual o respeito pelas regras e o contributo para o objeto colaborativo são extensivos a todos.
Em meu entender, o possível êxito de uma bem-sucedida abordagem “trickle down” depende do pacto colaborativo e de confiança que o deve acompanhar. A direita económica que usa este instrumento não tem condições para assegurar essa dimensão de confiança que assiste ao pacto colaborativo. Sem surpresa, é por isso que os exemplos conhecidos de aplicação política desta abordagem se traduziram todos pelo aumento da desigualdade e impulsos ao crescimento nem vê-los. Em ambiente de polarização, a confiança degrada-se e as condições em que o “trickle down” foi aplicado acentuam essa degradação.