quarta-feira, 24 de julho de 2024

SOBRE O ESTADO, A PRETEXTO DA INAPA


O caso da Inapa tem merecido grande atenção dos jornais nacionais. Mas ele é só mais um dos muitíssimos que têm acontecido neste País ao longo de décadas no tocante a questões ligadas à intervenção do Estado na economia. Ou seja, um renovado exemplo de mau uso dos dinheiros públicos por via de incompetências e favorecimentos diversos (sempre voltado para as empresas com maior expressão ou capacidade de influência político-mediática), para dizer depressa e sem grandes preocupações de separar o mau do péssimo. A história em causa já vem de trás, dos tempos em que a empresa, privada e relativamente bem-sucedida na sua origem, acabou por ser alvo de vicissitudes várias que a levaram a ir parar ao perímetro da Parpública. Uma história que repete, nos seus contornos essenciais, o desastre da Efacec ou a quebra da Aerosoles, para apenas dar mais dois exemplos visíveis de decisões desproporcionadas e a destempo por parte dos poderes públicos (governamentais e institucionais) e para não falar do caso dos casos que tem sido a TAP. Sendo que a Inapa, aqui e agora, já não tinha por onde se lhe pegasse depois das tantas voltas que sofreu e, por isso, não é de todo (como alguns afirmaram) uma ilustração da rara coragem para dizer não elogiosamente atribuída aos atuais ministros da Economia e das Finanças. Adiante, pois.

(excerto de https://www.rjmatsoncartoons.com e José Manuel Puebla, http://www.abc.es)

Porque o meu ponto pretende ser outro, a saber, o de sustentar a ideia de que, contra o que afirma o mainstream económico liberal, existe um racional de legitimidade para a intervenção do Estado na economia que vai para além da mera ação corretiva do livre funcionamento da economia em situações classificadas de “falhas de mercado”. E, mais ainda, sustentar também a ideia de que essa intervenção integra o conjunto dos elementos constitutivos do bom funcionamento das economias modernas.

Como recentemente escreveu Ricardo Paes Mamede: “Haverá sempre uma minoria de fundamentalistas de mercado para defender que o papel do Estado é sair da frente e deixar os mercados funcionar – como se os ditos mercados não fossem um conjunto de agentes com poder assimétrico, que defendem os seus interesses, os quais podem estar mais ou menos alinhados com o bem-estar geral. Quem não pertence àquela seita não deve perder tempo a discutir se o Estado deve os não intervir – mais relevante é debater que objetivos devem ser prosseguidos e qual a melhor forma de o fazer.”

Aponto, nesta perspetiva, para um Estado ágil e não para um Estado mínimo. Mas sublinhando uma pré-condição sem a qual mais vale estar quieto (o que em Portugal, onde os agentes oscilam entre o “ódio” ao Estado e a subserviência de mão estendida em relação ao mesmo, é particularmente aplicável): a de que o Estado interventor, capaz de fazer “o que mais ninguém pode fazer”, só cumprirá a sua missão – que inclui as componentes clássicas mas cada vez mais também um foco na promoção da cooperação nas redes que correspondem à organização das atividades complexas que crescentemente devem caraterizar as economias desenvolvidas ou em processo de desenvolvimento – se for enxuto, eficiente e competente em todas as vertentes da sua ação, sendo para tal essencial reformá-lo e enfrentar sem quartel a progressiva erosão das competências dos agentes da administração pública. É disto que muitos autores diferenciados – e tantos são, com Mazzucato e Rodrik a serem os mais badalados! – falam quando se referem ao caráter decisivo de uma colaboração entre Estado e iniciativa privada (sociedade civil) para que sejam conduzidos a bom porto e em adequado clima de confiança social os desejáveis esforços desenvolvimentistas.

Até porque, no limite, não existiu nunca na História Económica um processo deste tipo, da Grã-Bretanha de tempos passados à liderança dos EUA desde o pós-guerra e às particularidades economicamente dirigistas da China de hoje ou da brutal reconfiguração da economia japonesa à espantosa afirmação industrial sul-coreana, sem que assim tenha sido. À atenção dos nossos liberais de pacotilha, sempre prontos a fazerem do Estado o mau de todas as fitas (que fácil é ter o grande culpado à mão de semear, sobretudo quando importa desviar as atenções das culpas próprias, e, às vezes também, que estranho é confrontarmo-nos com as duras imposições do mundo real!), e dos nossos responsáveis políticos e institucionais, sempre incapazes de perceberem a essência complexa do mundo que os rodeia e as condições e o enquadramento apropriado do seu tão assumido quanto inconsequente exercício do poder.

terça-feira, 23 de julho de 2024

COMEMORANDO OS 80 ANOS DE MARIA JOÃO PIRES

 


(Sim, lá estou em luta com as minhas contradições. Eu que não gosto de efemérides, estou aqui a comentar uma, que me é muito cara, os 80 anos de Maria João Pires. Lá muito atrás no tempo, afinal são tantos anos de carreira como os meus anos de idade, 75, graças ao meu saudoso companheiro de trabalho nas questões do urbanismo, Arquiteto Nuno Guedes de Oliveira, tomei contacto com a obra de Maria João Pires, ainda ela gravava para a ERATO, ou seja, muito antes do reconhecimento pela Deutsche Grammophon. e ter começado a tocar com os grandes maestros deste mundo, com relevo para Claudio Abbado. A minha iniciação na música clássica sem ter formação de base para a engrandecer deve-se muito a esse contacto com a pianista portuguesa, sobretudo para aquele misto de sensibilidade e fragilidade que sempre me cativou, com ênfase especial na música de Chopin e de Schubert. Já não me recordo quando a vi pela primeira vez ao vivo na Gulbenkian e na Casa da Música, já depois daquele período em que pareceu estar zangada com o país e das expectativas não cumpridas do projeto de Belgais. A zanga com o país perturbou-me um pouco, mas os discos estavam ali e tudo podia ser perdoado graças aquelas gravações no tempo. Mais recentemente o seu encontro com Martha Argerich numa prestação memorável em dezembro de 2021 em Genebra, que privilégio para a sala que as acolheu, colocou as coisas no seu rumo certo, numa espécie de combinação única entre os meus dois amores pianísticos, a conjunção perfeita dos astros. Aos 80 anos, Maria João Pires parece ter por fim conseguido tornar menos violenta a sucessão infernal de concertos por todo o mundo, tem esse direito, assim como Argherich deixou de tocar a solo. A Gulbenkian anuncia para abril de 2025 mais uma sequência de concertos da artista, mas de um ápice esgotaram-se e os modestos mortais do Porto e do Norte nunca conseguem competir com a azáfama da ida às bilheteiras digitais e às assinaturas. )

Por estas razões o post de hoje só tem introdução. O desenvolvimento está nos inúmeros discos que povoam as minhas estantes e do qual retirarei um com os Noturnos de Chopin para festejar os 80 anos da nossa frágil e sensível Maria João.

 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

PÁRA-ARRANCA E TOCA A MARCHAR...

Pessoa amiga, que é também uma personalidade reputada da nossa praça, confessava-me há dias a sua preocupação com a torrente de aumentos e outras despesas que vão sendo objeto de decisão por parte do Governo. Numa época em que tudo leva a que se devam continuar a privilegiar as cautelas e os caldos de galinha, ademais depois da relativa normalização e credibilização das nossas contas públicas conseguidas com Centeno e Medina (os rankings aí estão a confirmá-lo e os juros da dívida agradecem, diga-se o que se disser sobre tempos e modos...), as escolhas de Montenegro são conjunturalmente compreensíveis no estrito plano político-partidário e eleitoral mas largamente controversas na dimensão económico-financeira e sua desejável estabilização. Neste quadro, o chamado “pacotão” para a Economia (que pouco tem de aproveitável em termos úteis e/ou diferenciadores!) e as “aventuras” algo ideológicas ou axiomáticas em torno do IRS e IRC acrescentam ao problema de um modo agravado e justificadamente tendente a afligir ainda mais aquele meu preocupado amigo. Quando é que sairemos deste permanente e lamentável ciclo de inércia estagnante e politiquice movediça?

BIDEN FOI-SE, DEBILITADO, MAS HAVERÁ MELHOR?


 

(A pressão era muita, com várias origens e, em meu entender, era tanta que a própria saúde do ainda Presidente dos EUA terá corrido perigo, corroído na profunda indecisão de aceitar essas vozes ou tentar um último sacrifício e prova de vitalidade. Pesou mais a pressão onde se destacaram os Obama. A questão é agora regressar à estaca zero e preparar uma candidatura de raiz ou seguir o trilho de Kamala Harris, que constitui para mim uma das mais misteriosas Vice-Presidentes americanas, tão diversos e profundos foram os seus apagões de presença e notoriedade nos tempos que acompanhou Biden. A substituição de Biden é dramática, trágica e cruel, tomando sobretudo consciência do seu importante legado nacional e internacional, no qual, não esqueçamos, há uma vitória sobre Trump e isso não é coisa pouca. Vale a pena ler o artigo de Teresa de Sousa, hoje, no Público, para compreender que por detrás daquela fragilidade estiveram importantes realizações, tornadas necessárias pelos desmandos de Trump na Presidência ganha com menos votos a uma incrédula Hillary Clinton que acho ainda hoje não ter percebido as razões da sua derrota. Se as eleições de novembro próximo já eram dramáticas no contexto em que vão acontecer, o seu dramatismo cresceu exponencialmente. É verdade que a campanha de Trump vai ter de mudar de agulha para se ajustar a um novo adversário. Mas estou em crer que um novo alvo surgiu a partir de ontem para os apaniguados do MAGA, questionar a presença de Biden na Presidência até ao fim do mandato.)

Lendo o já referido artigo de Teresa de Sousa e sistematizando o alcance do legado de Biden, mais aumenta a minha perplexidade quanto à incapacidade Democrata para forjar até agora uma candidatura alternativa. Só compreendo essa incapacidade atendendo a contradições internas, a eterna luta entre as correntes mais progressistas do Partido e as hostes mais instaladas na política. Estas batiam-se bem com os velhos Republicanos, entretanto refugiados em parte incerta ou reconvertidos num batismo à força, iniciado com os valores do Tea Party e agora revolucionados com a agressividade dos MAGA e correntes quejandas, cada qual a pior em termos de culto do desaforo, da violência e das ameaças antidemocráticas. Hoje, o contexto é outro. Parte do progressismo anda envolvido nas obscuras avenidas do wokismo, incapazes de perceber que o adversário mudou, agora está plasmado num trafulha ungido de herói salvífico.

Confesso a minha mais completa ignorância sobre quem melhor poderá recolocar a luta eleitoral num plano de maior equilíbrio, se Kamala Harris reconvertida no seu potencial inicial quando emergiu na política americana, se outra personalidade qualquer, vinda da política ou da sociedade civil. E fico tanto mais perplexo quanto mais leio as minhas referências habituais, New York Times, Washington Post, New Yorker, The Atlantic e personalidades como Bradford DeLong, Noah Smith, Paul Krugman e outros. Que eu esteja às escuras, compreende-se, afinal há um oceano a separar-nos e o digital não resolve tudo. Mas que essas minhas fontes habituais estejam também elas atónitas e sem ideias seguras quanto ao rumo que a substituição de Biden deve tomar é um indicador de que algo me escapa. Mas o que é que de facto se passa entre os Democratas?

 

domingo, 21 de julho de 2024

A MODORRA ESTIVAL DO VAGAR DE CARLOS MARTINS

 


(A modorra estival começa a apertar e, apesar deste nosso Douro Litoral continuar a ser um monumento de amenidade, tenho ainda duas semanas de trabalho exigente e pressionante e muito sinceramente não há amenidade que me valha neste tempo até às férias. O Estio tal como se tem apresentado significa para mim essencialmente modorra e, em regra, é um tempo que parece uma eternidade para me habituar ao ritmo das férias. A experiência diz-me que não há nada a fazer, trata-se simplesmente de deixar que o biorritmo pessoal encontre o equilíbrio certo. Antecipando esse tempo, chegou-me às mãos o novo disco de Carlos Martins, um dos nossos músicos mais imaginativos e também colaborativos, apoiado no seu sax tenor. O VAGAR é um bom disco de preparação para a modorra estival, com a inspiração alentejana a atravessar praticamente todas as treze canções. E, desta vez, Carlos Martins traz com ele a voz de Manuel Linhares, a bateria de Alexandre Frazão. O contrabaixo de Carlos Barretto, o violoncelo de Joana Guerra, o clarinete de Paulo Bernardino, o grupo PROCANTE e dois convidados, o André Fernandes na guitarra e o João Barradas no acordeão.)

Sim, um disco de inspiração e preparação para a modorra estival que se anuncia, mas essencialmente a manifestação evidente de que a nova música portuguesa está viva e vibrante, agora que a geração que marcou a viragem do 25 de abril começa a fenecer. Aliás, com as dificuldades que são conhecidas às práticas culturais e artísticas em Portugal, o que se vai ouvindo na música, a literatura que vai emergindo, a pujança do novo cinema e o teatro que vai resistindo mostra-nos que a sociedade portuguesa vai mexendo, com gente nova a resistir e a poder expressar a força de uma geração que não renega, mas que vai mais além dos que fizeram a transição do 25 de abril.

Por tudo isso, o VAGAR é um disco que recomendo.

NOTA FINAL e complementar

Quem seguramente não vai ter tempo para doces modorras de imobilidade são os Democratas americanos. Com a desistência esperada de Biden, vejamos como é que os Democratas se saem da difícil escolha de um novo candidato. E esse é o primeiro round. Depois, há que impor no terreno o novo candidato e combater a fera que já se dá ao desplante de afirmar que foi alvejado para defender a democracia. Que os Deuses nos valham.