quinta-feira, 11 de julho de 2024

O ADALBERTO NÃO GOSTA DE FRENTISMOS

 

(Bem sei que indivíduos ex-Ministros têm direito ao regresso ao espaço público comunicacional, algo que lhes assiste não propriamente por retribuição do seu contributo para o serviço público, pois existem outras formas de serem retribuídos e há os que as aproveitam com arte e eficácia, mas porque o direito à opinião e ao contributo para a circulação e disseminação de novas ideias no espaço público é para todos, independentemente da qualidade do que têm para nos dizer. Mas obviamente que a contextualização das suas opiniões ou contributos para o debate público é influenciada pela leitura que fizemos no tempo da sua passagem pela governação. Haverá aqui que separar as situações em que os regressados ao espaço do debate público insistem em falar sobre o domínio em que exerceram a sua atividade ministerial e as que em que o pronunciamento é realizado sobre a ação política em geral. No caso vertente que inspira o meu post de hoje, Adalberto Campos Fernandes, ex-Ministro da Saúde tem tido um regresso relativamente equilibrado ao comentário político. Percebeu-se que o seu estilo não é propriamente o que Marta Temido alardeou enquanto Ministra da Saúde no período conturbado da pandemia, mas nunca ultrapassou as linhas da decência, mantendo um registo compatível com a ambiência democrática do confronto de ideias. A matéria que suscita este post prende-se com uma entrevista publicada no Público de hoje, na qual a par de outros assuntos, o tema do frentismo político é analisado. É essa matéria política que me interessa dissecar, sobretudo porque numa linha bastante pacóvia de importação acéfala e não contextualizada de registos políticos exteriores tem estado em discussão a conveniência ou inconveniência de alinhamentos à esquerda na linha da Nova Frente Popular, que surpreendentemente ganhou as legislativas francesas do passado domingo. Assim, têm surgido pronunciamentos seja de convidar o PS a seguir a mesma orientação decidida pelo PS francês de apoiar a formação da NFP, seja de recomendar, caso de Adalberto Campos Fernandes, de não seguir por esse caminho e aceitar passageiros de conveniência. Em meu entender, quer uma, quer outra recomendação não são acertadas e tentarei explicar porquê.)

Não vou perder muito tempo com os riscos e inadequação de extrapolar a experiência da NFP em França para todos os campos de intervenção das esquerdas por essa Europa fora. O contexto francês é muito particular. Os riscos da França poder ter entregado a alma democrática ao diabo de Le Pen e Barbella eram elevadíssimos e o sistema da segunda volta nas legislativas criou condições para uma negociação rápida e globalmente eficaz de escolha dos melhores candidatos para barrar o caminho ao Rassemblement National. As muitas tentativas que foram feitas em França e mesmo por cá para que a França Insubmissa de Mélenchon fosse deixada de fora do universo da esquerda republicana da NFP (e não está em causa se Mélenchon é ou não um personagem não recomendável) mostra bem como a união tática das esquerdas é tarefa que tem de vencer imensos tabus e incompreensões para chegar a bom porto. Penso que foi a perceção da gravidade do que poderia passar-se com a chegada ao poder do RN que permitiu concluir o acordo da NFP em tempo recorde de permitir gerir a segunda volta.

Por cá, por mais que muito boa gente tenha torcido o nariz à geringonça liderada por António Costa, ela acabou por constituir uma fórmula política eficaz de responder ao pós-Troika e à mitigação dos aspetos danosos que ela deixou na sociedade portuguesa. Além disso, quebrou um tabu histórico, que a esquerda não era colaborativa. E isso não é coisa pouca para as gentes de esquerda. Mas isso não significa que as condições concretas dos períodos políticos justifiquem necessariamente um frentismo de esquerda. Devo reconhecer que nestas questões sou decisivamente marxista. São as condições concretas de cada situação que justificam a constituição ou não de frentes colaborativas.

A entrevista que ACF concede ao Público está obviamente muito para lá da questão de uma frente de esquerda liderada pelo PS. O ex-Ministro da Saúde foi convidado pelo atual Governo para liderar uma equipa que realizará a avaliação “da aplicação do modelo das unidades locais de saúde que integram hospitais e cuidados primários, sob a mesma gestão, aos hospitais universitários”. ACF tem competência e conhecimento para tal e estou certo que o fará com o maior dos rigores. Mas o que me despertou vontade de réplica nessa entrevista foi a sua opinião de que o frentismo político deve ser afastado como solução de proposta ao eleitorado seja no plano nacional, seja no da preparação de uma candidatura ganhadora à Câmara Municipal de Lisboa (e do Porto, porque não?).

Regresso ao meu argumento central. Decidir sobre estas matérias sem ter em conta as condições concretas do momento ou do período a que respeitará um possível acordo desse teor equivale a perfilhar uma posição meramente ideológica. Posso concordar que a recuperação desse ideia de frente de esquerda seja mais complicada de concretizar no plano nacional do que no plano local de uma candidatura autárquica. O saudoso Jorge Sampaio compreendeu isso melhor do que ninguém. Um projeto de Cidade para suster as derivas que a governação de Carlos Moedas está a instalar na Cidade de Lisboa pode ser perfeitamente compatível com uma frente colaborativa de esquerda e espero sinceramente que seja possível concretizá-la e até acho que Duarte Cordeiro poderia ser um excelente candidato para organizar tal projeto.

No plano nacional, além de não termos no horizonte imediato um perigo real de RN à portuguesa, o PSD de Montenegro não é para nosso bem uma força tão inorgânica e irresponsável como as tropas de Macron, a esquerda à esquerda do PS não é nem de longe um arremedo da França Insubmissa e o PS português não desceu tão baixo como o francês. E, convenhamos, não estamos em tempo de recuperação de uma Troika.

 

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