sábado, 20 de julho de 2024

QUESTÕES DE VINHO OU A ILUSÃO DA QUANTIDADE

 


(Há cronistas que vale a pena seguir, outros menos e outros ainda a atitude mais saudável é evitá-los, para nos poupar à irritação desnecessária e à perda de energia com o que não vale definitivamente a pena. As crónicas que o Pedro Garcias publica regularmente sobre o vinho em geral e sobre o Douro em particular estão no primeiro grupo. Foi já há muitos anos que profissionalmente coordenei um trabalho que considero ainda exemplar sobre os vinhos da região Demarcada do Douro para o Instituto do Vinho do Porto e um outro mais recente de atualização do diagnóstico do primeiro encomendado pela Associação das Empresas do Vinho do Porto. Não tenho dúvida em considerar que, sobretudo o primeiro, foi das experiências mais enriquecedoras no plano pessoal que alguma vez o trabalho profissional me proporcionou e sou dos sortudos que se podem orgulhar de que o trabalho profissional não aborrece, antes pelo contrário. Desde então, outros estudos sucederam ao por mim coordenado, sem modéstia nada de especial entretanto aconteceu, os problemas estruturais permanecem os mesmos e, para minha surpresa, os vinhos do Douro e do Porto continuam a seduzir muita gente, lançando muita gente em projetos empresariais para os quais não têm manifestamente unhas e sapiciência que cheguem. É neste contexto que aprecio bastante as crónicas de Pedro Garcias, são desempoeiradas, algumas vezes desencantadas e com razão, impiedosas para os interesses que encolhem os ombros e adiam a resolução dos problemas, escritas com graça e ironia, refletindo a perspetiva de quem vive diariamente os problemas da região do Douro, mas com mundo e perspetivas algo mais vastas do que as formadas no universo da Região Demarcada. Algumas das suas crónicas sugerem-me que muito dificilmente alguma vez me meterei noutra em propor soluções para a Região Demarcada, porque não vivo suficientemente a Região a partir de dentro. Isto não significa que entenda que só o Douro pode pronunciar-se sobre si próprio. Mas a complexidade desses problemas está tão enraizada e tem vindo a intensificar-se com tanta magnitude que não me atrevo a regressar ao local do crime como consultor. A reflexão de hoje não está nesse âmbito.)

Pedro Garcias assinou recentemente duas crónicas fundamentais sobre os problemas dos vinhos do Douro e do Porto: “A Grande Mentira do Vinho em Portugal” a 13 de julho e “Portugal um país vitícola sem grande tino” a 19 dejulho. Ambas colocam ênfase em questões estruturais que se pretende empurrar para um dia alguém pensar nelas. Estamos em tempo de esplanada ou varanda com um branco fresquinho no copo seja de Alvarinho de sub-região de origem, seja de manufatura no seu exterior, como o são por exemplo os excelentes Alvarinhos de Terras de Basto, seja um Loureiro recuperado na sua qualidade intrínseca ou então um Bucelas convidativo (a última produção da Sogrape nessa sub-região vale a pena) e, por isso, o tempo não convidaria a reflexões muito profundas. Mas as crónicas de Garcias tornam a reflexão incontornável.

A produção nacional tem um excedente visível face ao mercado que conseguimos explorar nacionalmente ou no exterior. O problema do Douro pode ser considerado uma particularização desse problema mais geral. Até aqui o problema tem sido mais ou menos ocultado e atirado para debaixo do tapete. O Vinho do Porto tem claramente uma procura inelástica e tudo indica que a única saída possível está no aumento progressivo e sustentado de categorias de preços mais elevados, já que ver Porto a menos de cinco euros nas prateleiras de grandes distribuidoras mundiais faz doer o coração mesmo a quem seja saudável. Quanto ao Douro DOC ele tem sobrevivido graças a um esmagamento quase doentio dos preços na produção e às mais que discutíveis relações encobertas entre as uvas com benefício para vinho do Porto e as que são reorientadas para os Douros DOC. O problema de mercado solvente também existe e tudo indica que a saída seja a mesma - ganhar progressão nas faixas de preços investir em mercados mais exigentes  e retirar da produção uvas de pior qualidade e assegurar pela via social uma almofada condigna aos pequenos produtores sem hipótese nessas faixas de qualidade.

Até aqui o problema está suficientemente identificado – não será pela via da quantidade que iremos lá – mas as principais autoridades continuam a fazer como o macaco que não sabe nadar. Optam por um afogamento lento e pretensamente indolor. É sabido que fartas importações de vinho barato com proveniência em Espanha continuam a acontecer no Douro, constituindo uma séria ameaça à denominação de origem. E, como Pedro Garcias bem o assinala, continua a fugir-se à necessária proibição de aguardentes provenientes do exterior ou de outras regiões do país, necessárias à fabricação do próprio Vinho do Porto, preferindo criar situações excecionais de destilação de vinho para aguardente que, por mais generosas que se apresentem, nunca poderão resolver o problema dos excedentes existentes, tão acumulados e recorrentes se tornaram. Estranhamente, ninguém ainda pensou que manter a fileira de produção de vinho do Porto com inputs exteriores à Região Demarcada constitui uma séria ameaça à sustentação da denominação de origem. Ficámos muito escandalizados quando alguém, algures nesse mundo diverso, ousa produzir Porto, mas recusamo-nos a compreender que insistir em aguardentes exteriores penaliza a proteção da própria denominação de origem.

Garcias é particularmente incisivo: “(…) Insistir na ideia de que os excessos de produção se resolvem procurando novos mercados, se resolvem aumentando as vendas, é um logro. É um logro porque todos os países anseiam o mesmo e porque o consumo está em queda. Acresce que, quando há excesso de oferta, o preço tende sempre a baixar. Se Portugal já é um país de baixo preço, não faz sentido querer alargar a base de consumo dos nossos vinhos através do preço baixo. Sobretudo em regiões como o Douro, por exemplo, onde, apesar da sua reduzida produção por hectare, a maioria das uvas é paga abaixo do custo de produção”.

A ilusão pela quantidade é de facto um apanágio nosso. Todas as medidas que possam contrariar o crescimento do setor por via dessa quantidade serão cruciais. E como sublinhava nesses estudos anteriores a que me referi, é necessário começar a preparar a transição para que a quantidade desapareça como fator de progressão. Atenção particular aos pequenos produtores fará parte dessa almofada de mudança. A alternativa é a barbárie da desregulação. Por muito que custe aos nossos bolsos, o prazer de beber (com moderação como diz a publicidade) um copo de vinho de qualidade numa esplanada ou varanda ou como companhia de um belo repasto tem de ser acompanhado com o dever de pagar o preço adequado e assim não continuar a fazer depender o nosso prazer das agruras de vida de quem produz as uvas miraculosas que lhe dão origem, com a óbvia ajuda do conhecimento cada vez mais especializado.

 

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