segunda-feira, 1 de julho de 2024

A FRANÇA À DERIVA

 



(Tal como o assinalei no meu último post, esta primeira semana de julho, com uma luz magnífica que me é oferecida a partir da minha varanda de Seixas, vai ser marcada pela azáfama eleitoral da segunda volta em França e por tentar perceber qual vai ser a reação do Partido Democrata, diria melhor do próprio Biden e mulher, ao fracasso e fragilidade da sua presença no debate de há dias com o narcisista inveterado Trump. É natural que assistamos a um verdadeiro turbilhão de ideias geradas por esta aceleração do tempo político. Ambos os acontecimentos significam riscos que convergem num só resultado visível – a fragilidade da Europa e da União Europeia em particular está hoje mais visível do que nunca e, como o referia sabiamente José Pacheco Pereira no Princípio da Incerteza de ontem à noite, tudo isto implica a aceleração da resposta da Europa a essa fragilidade, incluindo uma mais intensa articulação política com o Reino Unido que surgirá também renovado esta semana, malgré le BREXIT. Estou obviamente atento ao pensamento dos mais consistentes. Queria hoje destacar o sociólogo Pierre Rosanvallon, que continua lúcido e a relembrar que os Rocardianos foram o que de melhor a esquerda francesa produziu nos tempos da sua dissolução progressiva, uma influência que o nosso saudoso Presidente Jorge Sampaio nunca rejeitou, e o diretor da New Yorker, o jornalista David Remnick. A eles dedico o post de hoje. O primeiro através de uma entrevista ao Libération e o segundo por via de um artigo publicado na sua revista de sempre a New Yorker.)

As palavras de Rosanvallon na sua entrevista ao Libération são pausadas e refletidas e incidem sobretudo em três aspetos relacionados, mas cuja complexidade de relacionamento justifica frequentemente que tais argumentos e reflexões sejam esquecidos. Os três aspetos invocados na entrevista são: a progressiva caminhada de Macron para uma espécie de “ou eu ou o dilúvio”, claramente suicidário (o Libé chama-lhe dissolução-precipitação) e que tem vindo rapidamente a destruir todo o elã da sua vitória de 2017; as causas da ascensão da frente radical de direita de Le Pen, na sua transição da Frente Nacional para o de Rassemblement National (também nós tivemos uma União Nacional de má memória) e a perda pela esquerda do comboio da proximidade em política.

A sensibilidade analítica de Rosanvallon vem ao de cima para explicar a ascensão Lepeniana: “Em 40 anos, o eleitorado do RN evoluiu consideravelmente desde os seus primeiros bastiões no sudeste da França. Pouco a pouco, o suporte sociológico alargou-se mecanicamente, enquanto os meios populares se transformaram. Na segunda metade do século XX, havia uma realidade social de classe, o indivíduo definia-se em relação ao grupo ao qual pertencia. A classe operária reduziu-se progressivamente em termos quantitativos e transformou-se qualitativamente. O que são os operários para o INSEE (Instituto Nacional de Estatística)? Os motoristas-estafetas, os trabalhadores dos centros de logística, os empregados na manutenção. Todo este mundo do trabalho não se revê no conceito de classe e não faz sociedade solidária. O movimento dos «coletes amarelos» revelou estas formas de deafiliação. A visão da sociedade de classes foi substituída por outras formas estruturantes como as dos coletivos que formam comunidades de experimentação e que exprimem um mesmo sentimento de posição: o campo daqueles que se sentem ignorados, desprezados e não representados. Ser representado querendo desde logo dizer que o que se vive hoje está presente na cena pública e que isso importa”. O partido de Le pen surfou esta onda, fazendo o papel de representante destes homens e destas mulheres sem nome, roubando assim à esquerda o capital da proximidade. Mas como sabemos essa representação é de fachada, como a sua empatia de proximidade é também falsa. Mas a perceção do voto eleitoral é muito influenciada por esta construção de empatia. Em matéria de programa ele é vago, pour cause, e não é substancialmente diferente do que se conhece que está a ser praticado em Itália e na Hungria e já o foi na Polónia

Quanto à esquerda socialista, as palavras de Rosanvallon são duras: “Antigamente, uma secção socialista era um lugar de vida e de formação. Hoje, são antigos colaboradores parlamentares, aspirantes a um posto eleitoral, quadros de partidos. Já não se trata de um partido-sociedade».

Os dados estão pois lançados: “rien ne vas plus”. Espera-se que os afiliados de Macron e da Nova Frente Popular possam escolher com sabedoria quem estará em melhor posição para barrar o caminho aos representantes do RN. Evitar uma maioria na Assembleia será o fundamental, esperando que Macron tenha aprendido a lição. Da Nova Frente Popular espera-se sobretudo sensatez não só na decisão de desistir ou não em favor de alguém melhor posicionado, mas também na escolha da personalidade que possa assumir uma governação se os votos assim o recomendarem-

A crónica de Remnick é uma oportuna reflexão sobre a inevitabilidade da biologia e dos males da trajetória de envelhecimento. A trágica ilusão de que é possível retardar essa inexorável evolução é sabiamente caracterizada pelo Diretor da New Yorker: “De algum modo, os apoiantes de Biden tinham a esperança de que ele desafiaria as realidades do tempo, o melhor possível para contrariar as vaidades e a maledicência do seu criminoso oponente. E por isso se desenvolveu uma tamanha crueldade, o espetáculo de ver um homem de 81 anos, lutando terrivelmente com a memória, com a sintaxe os nervos e a fragilidade, com o seu fácies revelando a sensação emergente de que a sua mente estava a atraiçoá-lo e que como resultado disso ele estava a desiludir o país”. Cruel, sem dúvida, numa situação queestá muito além de que naquela idade há melhores e piores dias. E tanto mais que podemos pensar que a insanidade retórica e narcísica de Trump é bem pior, para já não falar das inúmeras acusações que pendem sobre a sua cabeça, o conjunto de políticas perigosas que pode protagonizar e a sua personalidade inequivocamente autoritária e ameaçadora pode ser bem pior.

Ninguém imaginaria que as eleições americanas se transformassem numa luta contra a ilusão de que a biologia pode ser contrariada. Mas estamos de facto dependentes se vamos cair todos com essa ilusão de que a biologia pode ser contrariada. E espanta como tendo havido tanto tempo para refletir sobre isso, os Democratas sejam apanhados de calças na mão, esperando por um milagre ou elixir da vida longa.

Estranhos tempos estes.

 

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