quarta-feira, 17 de julho de 2024

NOTAS EM TORNO DO ESTADO DA NAÇÃO

 


(Oportunidade para regressar aos meandros da política interna, depois de vários posts que dediquei ao tema quente das eleições americanas e aos trabalhos que os Democratas enfrentam por inépcia própria. Em ambiente de contas eleitorais marcado pela proximidade entre a AD e o PS, estagnação à esquerda do PS e perda de fôlego do Chega como se os ventos vindos do exterior tivessem amainado a onda, a discussão do Estado da Nação dá o mote para esse regresso à política interna. Começo por lamentar que, em Portugal, por iniciativa do Parlamento ou do próprio Governo, não haja a tradição do debate ser acompanhado por um documento de análise do estado do país, que o enquadrasse e ajudasse a nele destacar o que verdadeiramente importa discutir. É verdade que o Instituto para as Políticas Públicas e Sociais do ISCTE tenta há vários anos preencher esse vazio, mas como diria o outro, não é a mesma coisa. Além de que em vários anos o relatório é bastante levezinho, ficando em meu entender claramente aquém do conhecimento que se acolhe naquela casa. Só a força mediática da instituição ajuda a dar ao relatório uma notoriedade que ele manifestamente não merece. Alguns jornais, com o Público e o Expresso à cabeça, procuram por vezes aproveitar o ensejo para elaborar algumas sínteses, o que é benéfico para a contextualização do que é discutido no Parlamento. E no plano das Fundações, a provavelmente em vias de extinção Fundação José Neves associada à malograda FARFETCH publica o documento que me parece mais rico, registando aqui o conflito de interesses de na equipa técnica que elabora os estudos de suporte estar incluído o meu filho mais velho Hugo Figueiredo da Universidade de Aveiro. A reflexão que transporto para o post de hoje é uma avaliação de certo modo impressiva de como tenho pressentido a evolução da governação após a chegada ao poder da AD.)

Devo registar e penso que muito boa gente partilhará a minha avaliação que a governação de Montenegro e seus pares tem estado ligeiramente acima das baixas expectativas que associava à impreparação algo sôfrega com que a chegada ao poder foi concretizada. Em parte, porque o próprio Luís Montenegro terá estado uns furos acima do que esperava estar ao seu alcance. Aliás, é curioso reconhecer que o próprio Montenegro começou claramente a gostar de se ouvir, como se tivesse tido a revelação de que afinal governar, mesmo em situação eleitoral complexa, era mais fácil do que ele pensava. Esse maior à vontade começou a perceber-se no seu fácies menos contraído e, para isso, nada melhor do que umas reuniões internacionais para fazer subir o ego. Sem querer ser mauzinho, essa perceção pública foi facilitada pela avaliação inversa da prestação de Pedro Nuno Santos na liderança do PS, hoje mediaticamente abafada pela maior decisão e clareza política de Alexandra Leitão, que se arrisca a ser o rosto da oposição de maior notoriedade.

Esta avaliação não deixa de ser surpreendente já que, bem espremido e reduzido ao mais essencial, o programa de governo da AD limitava-se à concretização da palavra mágica da descida de impostos, do IRC e do IRS para jovens (abastados, direi eu), que ilustra bem que modelo redistributivo está implícito nas pretensões da AD.

Como também antecipava, as duas áreas de governação em que a prestação é mais débil são aquelas em que os constrangimentos estruturais do país são mais profundos, saúde e justiça. Se a passagem do direito imobiliário para as responsabilidades de governação anunciava que Rita Júdice dificilmente viria trazer grande fôlego à política de justiça deste governo (ressalve-se a voz algo mais grossa relativamente ao Ministério Público que abespinhou a inenarrável Lucília Gago), já na saúde esperava-se mais. Mas os avanços e recuos da nova Ministra da Saúde têm sido a marca da nova governação, pelo que não retiro da análise a hipótese de um sério agravamento de indicadores fundamentais. Poderia acrescentar a questão da habitação em que a armadilha ideológica a que a AD está presa condenará as medidas de Pinto Luz ao fracasso, mas esse é tema que fica para outros posts.

Mal ou bem não importa, creio que uma das razões essenciais para o relativo estado de graça da governação está no facto de, em grande medida, terem sido resolvidos os rabos de palha que tinham ficado do governo de António Costa – a questão da recuperação do tempo de serviço dos professores e a mais complexa questão dos subsídios especiais às forças de segurança. Claro que o impacto orçamental futuro de tais medidas está por desvendar, sobretudo a implicada pela generosidade para com as forças de segurança. Mas apetece expressar uma sensação de perplexidade pelo facto do governo de Costa não ter avançado mais nestas duas matérias.

Em matéria económica, a fábula da descida de impostos está finalmente declinada no programa Acelerar a Economia que tem a marca do Ministro da pasta Pedro Reis, ou seja, mais forma do que conteúdo disruptivo. Não há propriamente novidades nesse programa. Ele corresponde grosso modo ao conjunto de aspirações que ouvi repetidas vezes em reuniões de empresários e isso justifica em meu entender a sua aceitação generalizada nesses meios. É dos tais programas que importa avaliar daqui a uns tempos em termos de concretização de iniciativas e sobretudo do comportamento do investimento empresarial.

Estou em crer que as condições de equilíbrio político em que o debate do Estado da Nação vai ser travado impedirão que nele se discuta desassombradamente o estado do País. As evidências que vou recolhendo no meu radar de experiências profissionais e de reflexão sugerem-me que o País está a mudar, mas muito lentamente e sem a certeza inabalável de que algumas dessas mudanças sejam já irreversíveis. Refiro, por exemplo, a redução do abandono e insucesso escolar, a evolução do ensino profissional, a evolução positiva da produtividade aparente do trabalho e da produtividade total dos fatores. A lentidão e a magnitude das mudanças a vários níveis impedem consequências mais visíveis em matéria de redução dos constrangimentos estruturais. É a velha refrega entre fluxos e stocks que nos apoquenta já há pelo menos duas décadas.

Por isso, se quiséssemos concertar opções de governação em torno das grandes questões, elas resumem-se em meu entender a duas abordagens que têm de ser convergentes: primeiro, fazer com que as mudanças assinaladas se tornem irreversíveis e, segundo, discutir formas e processos de lhes proporcionar mais força, intensidade e incidência territorial mais alargada.

Não é seguramente um programa sexy, comunicacionalmente falando, de governação. Mas não tenho dúvida de que está aqui concentrado o essencial para um diálogo mais profícuo entre os tais fluxos e stocks.

 

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