(Tenho pela frente o desafio de verter para português esta expressão. Talvez arrisque “presotopia” e ela faz parte do título de um ensaio por convite que o New York Times publicou no dia 6 de julho passado, “Welcome to stucktopia”, de autoria de uma crítica literária, Hillary Kelly de sua graça. Este blogue está particularmente atento a todo o pensamento que nos ajude a compreender a nossa contemporaneidade e ela é de facto muito complexa, exigindo o contributo de muita gente. Interrogando-se se o presente que vivemos é ele prenúncio ou manifestação antecipada de utopia ou distopia, Hillary Kelly opta por uma diferente abordagem que ela designa de “presotopia”, como se todos estivéssemos presos e perdidos num devir social que já devia a estar a germinar um paradigma novo. Mas antes, pelo contrário, a sociedade parece presa e dependente de algo que não avança: “Escapar não é imaginável, a repetição sem fim esmaga a rotina e as pessoas estão presas num mundo que é marcado pela inércia e pela falta de esperança”. Acrescentaria eu que essa sensação de estarmos presos numa persistente rotina parece absurdamente contraditório com o momento tecnológico que vivemos, como se matérias como a automatização, a robotização ou a inteligência artificial tivessem uma aplicação tão limitada que a sua influência na esmagadora maioria das pessoas é nula ou negligenciável.)
Nos anos 30 e 40, as visões de George Orwell e Aldous Huxley incidiam sobre as nuvens e céus carregados do totalitarismo e muito boa gente tem vindo a recuperá-los para reafirmar que o perigo do totalitarismo não está totalmente fora de questão e pode regressar substituindo-se às democracias. Tenho para mim que as sociedades contemporâneas, sobretudo as mais abertas, estão perante uma nova encruzilhada: ou aprendem a gerir a convivência multicultural (era isso que eu queria dizer quando, refletindo sobre a minha passagem recente por Istambul, me espantou o modo como naquela Cidade as mulheres de burka mais rigorosa convivem com as mulheres mais ciosas do seu corpo e da afirmação do seu poder) ou o totalitarismo autoritário encarregar-se-á de assegurar a manutenção das sociedades enquanto entidades puras e incomunicáveis e sobretudo não miscigenadas.
Hillary Kelly faz parte daqueles que reabilitam Kafka e Beckett para nos ajudar a compreender a natureza labiríntica da vida moderna, apequenados perante a consistência das estruturas que nos comprimem, seja a dos algoritmos que interpretam e organizam o nosso consumo, seja a comunicação social absorvente e controladora, sejam ainda as estruturas do próprio poder pouco recetivas ao diálogo social e à participação cívica.
Seria interessante discutir se a “presotopia” de que nos fala a crítica literária americana se estende ou não aos nossos modos de vida dominantes. É um facto que, embora providos de manifestações tecnológicas muito avançadas, não conseguimos adaptar o nosso modelo de vida e de consumo a um padrão energético mais sustentável e capaz de sustentar a deriva climática em que estamos alegremente envolvidos, sempre mais dispostos a sobrevalorizar uma inexatidão científica do que a mudar efetivamente de vida. Não será esse absurdo mais uma manifestação “stucktópica”?
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