quinta-feira, 4 de julho de 2024

A PORTUGALIDADE DE FAUSTO

 


(Sou dos que defendo que a perceção exterior, dos outros, sobre as nossas coisas é, por vezes fundamental para aclarar perspetivas que temos vindo a formar de modo impressivo, emotivo, mas sem a verbalização necessária para lhes dar o tom certo. Por isso, a tendência em curso em certas sociedades para se fechar sobre si próprias, ignorando o contacto com o outro e com as suas perceções, é um modo suicidário a caminho da irrelevância, por mais superioridade que pensemos o nosso modo de vida possuir. A origem desta reflexão é a morte de Fausto, combinada com a leitura de um artigo-testemunho que me encheu a alma, publicado pela cantora galega Uxía no Público de ontem. A carta de amor e devoção a Fausto de Uxía vai-nos fundo na alma e ajuda-nos a tornar mais rigorosas as perceções que tínhamos sobre a obra riquíssima do autor das cantigas mais cristalinas que algum dia se publicaram em português. Ou seja, a escrita emotiva da cantora galega descobre-nos a Portugalidade de um canto, límpido, de dicção incomparável, entendível nos quatro cantos do mundo pelos quais algum Português tenha passado. É espantoso que seja uma galega a transmiti-lo com emoção, mas para mim não é surpresa. Entre os muitos Amigos galegos com quem me cruzei na vida profissional, de andarilho não só do planeamento, mas também da cooperação, tive a oportunidade de compreender como os galegos apreciavam vozes portuguesas, José Afonso, claro, José Mário Branco, Dulce Pontes e agora através do testemunho de Uxía a voz de Fausto. Acho que existe aqui um facto cultural indesmentível. O galeguismo anda indissociavelmente ligado às relações com a cultura portuguesa, não apenas nortenha.)

A estética musical de Fausto sempre me impressionou pela capacidade de combinar raízes musicais diversas, não só do território-Mãe, mas da presença portuguesa no mundo, com uma musicalidade contagiante. Lembro-me que essa musicalidade era nos concertos impressionante, nos tempos em que o cantor mantinha uma saúde física ainda apreciável. Talvez Uxía tenha razão e que essa musicalidade interiorizasse bem a tal Portugalidade e talvez não o tenhamos percebido. Fausto levava-nos ao cume da música popular, nunca ninguém como ele trabalhou tão profundamente as raízes e as modernizou. E aquela dicção!

Restam poucos.

Tamanho é o apego aos que retiraram a música popular portuguesa das trevas que talvez não estejamos atentos à transição que está a ser observada. E isso talvez seja uma injustiça para a qualidade que existe por aí.

E para alguém como eu que já é de Seixas, Moledo ou Caminha, nada melhor do que fechar com estas palavras com que Uxía conclui o seu testemunho:

“Não tenho hoje uma rosa para ti, mas sim a lembrança do vento nordeste a soprar forte numa praia de Moledo e uma mesa com frutos do mar, histórias divertidíssimas e uma cervejinha gelada.

Até sempre, camarada! Desde meu coração e desde a Galiza, já o sabes bem, a nossa devoção eterna”.

 

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