sexta-feira, 31 de agosto de 2018

AGOSTO NO FIM...


A meia-hora do fim do mês que melhor simboliza o Verão em Portugal, aquele em que quase tudo para e a maioria desce a banhos no Algarve, já começo a sentir o gosto amargo do regresso ao pica-boi. Foram trinta e um dias que deixaram pouco que contar, apesar de alguns fogachos tristes ou lamentáveis e de outros mais ou menos previsíveis ou anedóticos. Indo pelos menos óbvios e escassamente relevantes, sempre acabo por eleger a hipótese peregrina de vermos Relvas envolvido na compra da ex-PT, a concretização de uma liderança canhestra por parte de Rio (havia quem soubesse ou suspeitasse, mas a gestão da imagem foi fazendo maravilhas), a inacreditável ameaça da Fenprof ao Governo, o regresso da ideia de um aeroporto na Região Centro (a somar ao Metro do Mondego, pois claro) e o chefe dos patrões a duvidar da sustentabilidade do turismo em Portugal. Venha setembro, pois, e com ele o outono – se possível, sem mudança de hora...

BOLÍVAR ESTÁ INOCENTE!

(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

(cartoon de David Parkins, https://www.economist.com)


A situação social, económica e política que se vive na Venezuela está a atingir limites verdadeiramente inconcebíveis e absolutamente intoleráveis para os supostos padrões de normalidade democrática que deveriam caraterizar um país do século XXI não atingido por extravagantes excecionalidades (guerra ou outro qualquer tipo de calamidade). A coisa vai ao ponto de a governação estar entregue a um presidente nitidamente desajustado e visivelmente ensandecido (Nicolás Maduro) que já conseguiu fazer de Hugo Chávez uma verdadeira saudade, sendo que o pior de tudo está obviamente no sofrimento de um povo que vai sobrevivendo entre o alienado, o abismado e o aterrorizado. A seleção de números abaixo ajuda a que se possa minimamente imaginar a barbaridade das catastróficas circunstâncias em presença. Num quadro destes, parece da maior evidência que o que é mesmo politicamente incorreto é o que tem a ver com a formulação de uma pergunta irreverente em torno de saber se haverá alguém que possa pôr mão naquilo – porque o mânfio em causa foi afinal eleito por sufrágio direto e universal!





LIBERAIS HETERODOXOS



(O The Economist começou (link aqui) a publicar há cinco semanas uma série preciosa de Philosophy Briefs sobre um conjunto de pensadores liberais que integra nomes como Stuart Mill, Tocqueville, Keynes, Schumpeter, Popper, Hayek e alguns outros. Para além da riqueza interpretativa que as duas páginas de cada registo oferecem, num período de ameaças totalitárias e de diferentes exemplos de liberalismo não democrático como aquele que vivemos, é a altura certa para recordar ideias e velhos debates.)

Os tempos que vivemos não recomendam debates estéreis e inúteis. Numa altura em que a democracia americana se debate contra as excrescências do populismo trumpiano e, na União Europeia, o grupo de Visogrado incentiva descaradamente a Itália de Salvini a juntar forças, é tempo de frentes alargadas contra o avanço das ameaças à democracia, das forças desagregadoras da União e dos sinais autocráticos e totalitários que expectantes ou mais ativos se manifestam. A esquerda, como não pode deixar de ser, não pode ficar indiferente a este contexto. Sem abdicar dos seus valores fundamentais, não pode alhear-se de convergências mais alargadas para a defesa dos valores da liberdade e da democracia. Há vinte, trinta anos não imaginaríamos que este tipo de ameaças regressasse ao espectro das nossas preocupações e temos até dificuldade de acordar para gerir este pesadelo e para o esvaziamento da Voz das elites. Mas é necessário acordar e depressa. Caso contrário, acordaremos à força.

É neste contexto que a iniciativa do The Economist é preciosa. Há ideias que tínhamos arquivado seja pela força inexorável do tempo, seja pelos contrapontos da história e do alinhamento dessas mesmas ideias que são de novo relevantes para repensar os nossos posicionamentos.

No grupo de pensadores liberais que o Economist revisita há compreensivelmente uma enorme diversidade e até algumas surpresas de catalogação. Ninguém duvida que, apesar da sua diversidade, Stuart Mill, Alexis de Tocqueviile, Popper, Hayek, Schumpeter, Isahia Berlin ou Rawls são alimentadores do pensamento liberal, alguns como Schumpeter menos acomodáveis em catalogações. Mas a decisão de considerar Keynes um pensador liberal exige uma explicação aos mais desprevenidos (concordo com a classificação da revista) e estou com curiosidade acerca do registo que vai ser assumido para justificar o último Philosophy Brief que é dedicado, nada mais nada menos, do que a Marx, Rousseau e Nietzche.

Dos materiais já publicados, há três perspetivas que vale a pena destacar.

Primeiro, a importância do pensamento de Tocqueville para compreender os desafios e confrontos que pesam hoje sobre a sociedade americana e para avaliar a sua desejável resiliência face aos desvarios e desagregação de valores em que o Partido Republicano está mergulhado. O meu conhecimento de Tocqueville está longe de ser o que desejaria ter.

Segundo, a importância de Keynes ser considerado como alinhado com o pensamento liberal quando ele combateu arduamente as falácias do “laissez-faire”. É de facto importante não confundir a defesa das virtualidades da intervenção pública quando ela é estruturalmente necessária com a adoção de conceções estatizantes da organização social. Keynes é um intervencionista económico quando o mercado é incapaz de corrigir os problemas estruturais, sem deixar de poder ser um liberal em termos políticos. É isto que uma certa direita portuguesa não entende, fascinada que fica pelas privatizações.

Terceiro, o registo sobre o chamado grupo de Viena (que aliás nunca foi um grupo), constituído por Schumpeter, Popper e Hayek. Estes três pensadores foram profundamente marcados pelo contexto que conduziu ao nazismo e à destruição do ambiente cosmopolita e de excelência de pensamento que se vivia na Viena da época. Por caminhos diferentes, Schumpeter, Popper e Hayek estavam sobretudo preocupados com a aparente indiferença e complacência ocidentais relativamente à possibilidade e avanços do totalitarismo e com os riscos de modelos políticos mais centralizados. Schumpeter concentrou-se no estudo da dinâmica intrínseca de inovação das economias de mercado e do seu processo de destruição criadora, embora anotando que o capitalismo poderia perder essa força dinâmica intrínseca se matasse a liberdade de aparecimento de novos empresários (heróis e inovadores). Popper transformou-se no pai da epistemologia anti-totalitária, focando-se no combate aos fundamentos intelectuais do totalitarismo. Sabemos que The Open Society foi escrita após a invasão da Áustria pelas tropas de Hitler. Hayek evoluiu no sentido de demonstrar os riscos de sistemas de poder económico e político muito concentrado (as diferentes formas de coletivismo). A evolução do trabalho de Hayek nos EUA para onde emigrou (juntamente com Schumpeter, enquanto que Popper foi para a LSE em Londres) tem algo de misterioso, pois nada apontaria para que a sua obra anti-coletivista fosse transformada numa espécie de patrono intelectual do liberalismo económico mais selvagem que nos tempos de Thatcher e Reagan fez o seu caminho.

De certa maneira mal-amados por uma esquerda que foge da autocrítica histórica a sete pés, Schumpeter, Popper e Hayek recuperam forças face ao regresso dos ventos não democráticos. Schumpeter foi totalmente reabilitado pela força que a economia da inovação hoje apresenta como alternativa de pensamento ao mainstream para equacionar a dinâmica do capitalismo. A sua maneira de pensar a inovação abriu caminho ao evolucionismo económico que conserva hoje a sua força e inspira as políticas públicas de apoio à inovação por todo o mundo. Popper e Hayek continuam a ser referências para combater o concentracionismo que, estranhamente, pode hoje resultar dos efeitos do próprio mercado, concentrando o poder económico para além do tolerável. As derivas em torno do acesso aos big data são uma outra força de contração de recursos e de manipulação possível numa lógica mais centralizada. As contradições de pensamento e de envolvimento político de Hayek nos seus últimos tempos de vida nos EUA não podem fazer esquecer o contexto das suas preocupações iniciais, formadas no contexto da Viena invadida e devastada.

Em meu entender, é tempo de reunir forças e ideias para combater os sinais não democráticos e totalitários que grassam hoje pelo mundo. A esquerda não pode abandonar esse debate, ainda que ele implique capacidade de autocrítica. Por isso, a heterodoxia destes pensadores não pode ser deixada no arquivo das ideias, por mais tropelias que a utilização do seu pensamento possa ter suscitado-

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

FÉRIAS E TRABALHO, A MESMA LUTA!


A capa digital do “Diário de Notícias” integra hoje esta preciosidade, digna de ficar a constar dos nossos humildes arquivos. Humildes mas escrupulosamente seletivos, tentamos nós. Marcelo está, pois, de volta ao trabalho – quem diria?

A CATALUNHA SEM PAIXÕES EXCESSIVAS


(Raquel Marín, http://elpais.com)

Eduardo Mendoza é um dos grandes ficcionistas espanhóis contemporâneos. Este autor de obras como “A Cidade dos Prodígios”, “O Ano do Dilúvio”, Uma Comédia Ligeira” ou “A Assombrosa Viagem de Pomponio Flato” é um cidadão de origem e vivência catalã e sentiu-se recentemente impulsionado a publicar um opúsculo sobre a situação político-social da Catalunha que designou por “O que se passa na Catalunha”. O texto, integralmente traduzido para português pela revista “Ler” que ainda está nas bancas, é consistente e tem excertos reveladores de um conhecimento simultaneamente sentido e adquirido.

Escolho três, o primeiro dos quais enquadrador: “Houve ocasiões em que a relação entre a Catalunha e Espanha teria podido seguir por outros caminhos. (...) Não se trata tanto da relação da Catalunha com Espanha ou com o resto de Espanha, consoante considerarmos, mas sim da relação dos interesses da Catalunha com a representação do poder vigente em Espanha num dado momento.”

O segundo é mais especulativo: “Não há dúvida que o independentismo é um movimento real, que calou fundo em amplos setores da população. Enquanto movimento, existe desde tempos imemoriais. (...) Mas antes era coisa de indivíduos isolados. Em geral, pertenciam à classe média ou alta, tinham um grau considerável de educação (...). A sua atitude tinha muito de romântica e um pouco de mística (...). A sua rejeição só se estendia aos espanhóis. (...) Este protótipo foi evoluindo paulatinamente. Uma vez afiançada a transição democrática, isto é, uma vez desaparecidos do horizonte os receios de um possível golpe de Estado, o independentismo entrou numa fase possibilista.”

O terceiro é mais opinativo: “Não há razão prática que justifique o desejo de se independentizar de Espanha. Comparativamente, e apesar de tudo, Espanha não é um mau país. Poderia ser melhor, mas duvido que a Catalunha, entregue às suas forças, se convertesse no paraíso que os partidários da nova república anunciam. Além disso, as unidades nacionais têm hoje pouca margem de manobra (...). Na realidade, os países não existem.” As aberturas à exploração e ao pensamento deixadas por Mendoza são assim inúmeras e nem sempre facilmente consensualizáveis mas, não obstante o seu aviso final (“Quase sempre é tarde quando nos pomos a pensar as coisas”), talvez não seja tempo perdido o que se lhes dedique e qualquer que seja a dimensão que se possa e queira privilegiar.

OS EUA NÃO SÃO UMA TRUMPLÂNDIA!



Depois da iniciativa contra os ataques de Trump aos media (“o inimigo do povo”, disse ele) levada a cabo pelo “The Boston Globe” em meados de agosto e à qual aderiram 350 jornais de todo o mundo (sendo 200 locais, tendo o “The Wall Street Journal” sido a recusa mais notada – “o esforço do Globe concorre contra a independência que os conselhos editoriais proclamam buscar”), a imprensa americana prossegue – ora mais ativamente, ora mais discretamente – o seu trabalho paulatino de crítica e denúncia em nome da verdade e dos valores democráticos. E, ou muito me engano, ou vai ser às mãos dela que o presidente vai acabar por se estender ao comprido e cair com estrondo...

O BRASIL NUM BURACO

(Hubert Aranha, https://www.folha.uol.com.br)

Daqui desta lonjura, e com tanto mar a separar-nos, o que mais parece é que o amigo brasileiro do meu colega de blogue é um otimista inveterado. Deus queira que me engane, mas do que leio e ouço as coisas apresentam-se bem mais complicadas do que ele sugere. E aquela aparente lógica local de que, se não puder ser Lula, então que seja Bolsonaro – um “Hitlerzinho tropical”, segundo Ciro Gomes – é de todo incompreensível aos meus pobres olhos...

MAIS LOGO...


Mais logo temos o sorteio da fase de grupos da Champions deste ano. A ambição de ganhar mais uns trocos – a sua posterior aplicação é toda uma outra conversa... – por parte dos dois principais clubes nacionais depende em quase tudo da sorte daquelas bolinhas a tirar daqueles potes. Querem perceber porquê? É que tanto podem calhar num grupo com o Lokomotiv de Moscovo, o PSV Eindhoven e o Young Boys (ou o AEK de Atenas) como podem cair num outro constituído pelo Real Madrid (ou Barcelona ou Paris Saint-Germain), pelo Liverpool e pelo Hoffenheim. Uma situação possível e talvez não completamente desfavorável seria a de uma parceria com a Juventus, o CSKA de Moscovo e o Estrela Vermelha de Belgrado, mas já seria igualmente indesejável apanhar o Manchester City, o Schalke 04 e o Inter de Milão. Como hipótese intermédia ainda resta, por exemplo, um alinhamento com o Atlético de Madrid, o Lyon (ou o Mónaco) e o Galatasaray (ou o Bruges). As combinações são múltiplas, pois – mais logo saberemos...

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

PARA COMPREENDER A SUÉCIA DE HOJE



(Para uma certa esquerda em que me incluo a Suécia e o modelo escandinavo sempre representaram a possibilidade de combinar inovação e maior igualdade, desenvolvimento e descentralização, tolerância, modernidade, vanguarda de causas sociais. Talvez essa fixação nos tenha impedido de ver a realidade mutável do modelo escandinavo, requerendo uma mais profunda análise crítica dos nossos referenciais.)

Nos meus trabalhos com a colega Pilar González para a Organização Internacional do Trabalho (ILO) tive a felicidade de privar no âmbito dos estudos que realizámos com as experiências de outros países, entre os quais a Suécia. As análises do colega Dominique Anxo alertaram-nos para a resiliência manifestada pelo modelo sueco, mas simultaneamente ajudaram-nos a perceber que o seu modelo também sofreu a erosão das causas sociais, aliás determinada pelo afastamento do poder dos sociais-democratas.

À boleia do Financial Times (link aqui) cruzei-me com um conjunto de gráficos que nos dão conta de mudanças na situação global sueca, sem as quais tenderemos a formar uma perceção presa no tempo das nossas aspirações sobre a sociedade sueca e o seu modelo.

O primeiro gráfico que abre este post traz-nos algo de surpreendente. A desigualdade tem evoluído a um ritmo apreciável na Suécia. Embora o país apresente ainda valores bastante inferiores aos valores padrão na OCDE, a verdade é que a sociedade sueca não escapou à erosão da desigualdade que atravessou nos tempos mais recentes as economias mais maduras. O que aconteceu ao distributivismo sueco das nossas aspirações e referenciais?

A um outro nível, a abertura sueca tolerante traduziu-se na relevante evolução da população imigrada, medida aqui pelo número de autorizações de residência registados no país e pelo número de pedidos de asilo, que tem em 2015 uma queda a pique (gráficos abaixo).




O gráfico seguinte dá-nos conta das dificuldades de integração da população imigrada, o que também não deixa de representar algo de dissonante face aos nossos referenciais. Para além do desemprego de imigrantes ter aumentado, o gráfico abaixo mostra que é sobretudo a variável educação da população imigrada que está na origem das dificuldades de integração.


Além disto, o modelo educativo sueco não faz milagres. O desvio entre os resultados nos testes de PISA obtidos por população nascida na Suécia e nascida no exterior é progressivamente penalizador para esta última.


Os suecos estão próximos de eleições e será provavelmente um primeiro-Ministro de centro-direita a governar o país. A pergunta óbvia é a de saber se o modelo sueco continuará resiliente nos seus valores fundamentais ou se, pelo contrário, experimentará também o recuo civilizacional que anda por aí a pairar.

ÁFRICA COM ELA!


A Senhora May está em crescente estado de negação. Por um lado, a sua falta de foco e a sua inabilidade negocial no dossiê “Brexit” já surgem como indisfarçáveis aos olhos de qualquer observador minimamente atento. Por outro lado, a sua ameaça de dar luta a quem quer que se lhe apresente pela frente a questionar a sua liderança (assim ela lhe chama). Por fim, a sua desesperada tentativa de apresentar alternativas à Europa, levando-a aos caminhos inconsequentes que vem agitando na sua atual digressão africana. Cada vez mais pírrica aquela vitória do leave...

(Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

O CERCO À DEMOCRACIA NA EUROPA


Excelente destaque de primeira página no “Público” de hoje, com o respetivo editorial do novo diretor – salvé, Manuel Carvalho! – a completar pertinentemente o seu crítico e precavido sentido. Um aplauso total, quer para a denúncia da cobardia do PPE quer para a denúncia da cobardia das autoridades europeias. E não deixa de causar arrepios aquela nota final do “até um dia”...

TRUMP, SEMPRE ELE...

(Ben Jennings, http://www.guardian.co.uk)

(Jeff Danziger, http://www.nytimes.com)

Donald Trump esteve igual a si próprio, i.e., mal demais para ser verdade no modo como evitou a todo o custo reagir à morte do seu arqui-inimigo John McCain, um correligionário republicano mas de outra cepa porque feito de outra massa de valores. As análises dividiram-se entre os que se limitaram a estranhar o seu silêncio e visivelmente deliberada ausência e os que admitiram ainda poder vir localizá-lo numa infantilizada espécie de última despedida feliz junto da campa do senador. À última, tarde e a más horas, lá veio com o rabo entre as pernas revalidar o sentido daquela velha máxima de ser sempre pior a emenda que o soneto, agradecendo friamente os serviços por este prestados à Nação de que ele próprio tão desonradamente é o representante máximo.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

SHOULD I STAY OR SHOULD I RETURN?



(Revisitemos a canção dos Clash para formular uma pequena reflexão sobre a valia dos 50% de descida de IRS para atrair jovens emigrantes qualificados. Outras querelas do tipo irão suceder-se ao longo do próximo tempo eleitoral, preparemo-nos.)

Foi num trabalho que coordenei há já alguns anos para a já defunta (ou pelo menos inativa) Rede-Associação de Municípios do Corredor Azul alentejano (de Sines até Elvas, passando por Évora), focado na atração de residentes aqueles territórios, que revisitei a canção dos Clash e a utilizei como referencial do tema. Na sua origem, “Should I Stay or Should I Go?” é uma oportunidade de colocar a questão da atração não do ponto de vista de quem concebe os incentivos à transferência, mas antes do ponto de vista de quem está a ser atraído. Não é uma subtileza menor, nem apenas um refinamento de expressão. É antes a recordação de que não há política eficaz de atração de residentes se não for possível influenciar as decisões individuais que, neste caso, um regresso implica. O cálculo individual do retorno possível é um processo de decisão muito complexo. Certamente que poderão formar-se efeitos de arrastamento para uma decisão que contenha algo de impulso coletivo. Imaginemos, por exemplo, que o país, Portugal neste caso, atravessava um ressurgimento coletivo poderoso (o que não é o caso) e que o regresso assumia um efeito massa considerável. Só nesse caso limite poderá dizer-se que o cálculo individual do retorno é suplantado pelo efeito emulação de uma dinâmica coletiva. Infelizmente não é isso que está a acontecer em matéria de retorno à terra. Quer isto significar que o retorno que está a pretender-se influenciar permanece associado a um cálculo marcadamente individual ou de família, de difícil modelização. É sobre isto que o governo de António Costa pretende intervir e daí a proposta da redução do IRS em 50% como incentivo de atração.

Já há longo tempo madrugador no trabalho, ouço regularmente de manhã antes das oito, na Antena 1, as entrevistas da jornalista Alice Vilaça no programa Portugueses no Mundo. Para a matéria desta reflexão é material riquíssimo. Não podemos como é óbvio associar-lhe uma representatividade estatística, mas apenas o que poderei chamar de representatividade impressiva. Algumas regularidades emergem das entrevistas de forma clara. Estamos a falar de gente decidida, com alguma formação, que tenta a experiência de trabalho de raiz ou a partir de uma outra experiência (um doutoramento, um estágio) em função do efeito-país de origem (o Portugal de fracas oportunidades), as dificuldades de construção de uma trajetória de emprego compatível com a qualificação, as diferenças salariais. Praticamente todos os entrevistados reconhecem na nova residência resposta positiva a essas interrogações da terra, apesar das dificuldades de alguns em estabilizar a alternativa nos países de destino. Esses fatores de resposta contrabalançam a saudade da identidade portuguesa e da família. Nada de substancialmente diferente dos padrões de emigração de outros tempos, apenas com a diferença de se tratar de um padrão com outra qualificação.

É pois neste contexto que devemos perguntar se a proposta do governo PS de reduzir o IRS para os jovens que terão saído por efeito da crise e regressem tem condições para influenciar o cálculo individual dos que encontraram alternativa na diáspora. Vou concentrar-me nessa dimensão central da questão e passar ao lado de alguns comentários de outra natureza, como por exemplo os argumentos da discriminação dos que ficaram e aguentam com uma carga fiscal de relevo.

Compreendo a decisão do Governo em querer a marcar a diferença face ao governo anterior nesta matéria. Mas não me parece que o incentivo da redução do IRS tenha grandes condições para interferir no mencionado cálculo individual. As razões parecem-me óbvias a partir da formalização mínima que ensaiámos anteriormente sobre o padrão da decisão. Estará criado um ambiente de regresso potenciador de novos padrões de remuneração compatível com o aumento de qualificações dos jovens portugueses mais apetrechados para a sociedade global? O mercado mostra sinais de reação a essa necessidade mas os gaps salariais entre a nova vida e a do regresso continuam a pesar. O incentivo IRS não parece suficiente para compensar essa perceção. O gap remuneratório é ainda demasiado elevado para poder ser influenciado na margem pela afetividade do regresso. A probabilidade de emprego melhorou mas a da correção do desvio remuneratório nem por isso. Parece-me bem mais consequente orientar as apostas do governo para a melhoria das condições gerais de atração da economia portuguesa para jovens qualificados, melhorando por exemplo as condições de criação de emprego científico, do que anunciar medidas isoladas desta natureza. Estou convencido que um aliviamento lento e marginal da fadiga fiscal teria efeitos mais alargados.

Nem o próprio Governo estará convencido da bondade da proposta. A rentrée obriga sempre a uma caixa. Este ano foi o IRS como veículo de retorno de jovens qualificados. Não passará disso mesmo. Uma caixa como tantas outras, de que já lhes perdemos o rasto das consequências efetivas. Não há mal nisso. Haveria se o Governo não compreendesse que tem de trabalhar outras frentes, menos suscetíveis de se transformarem em caixas apelativas.