(Sou daqueles nativos que têm muita dificuldade de pensar
uma mudança de sítio para viver. Copenhaga e algumas pequenas cidades
dinamarquesas far-me-iam pensar um pouco, suspeitando sempre que a nossa
perceção é enviesada pelo estatuto de visitante acidental. Vem isto
a propósito da decisão dinamarquesa de proibir o uso pelas mulheres islâmicas
do véu e de outras formas de ocultação do corpo da mulher no espaço público.
Medida corajosa, temerária ou em contradição com a organização social dos
dinamarqueses?)
Tenho especial apreço
pelas dinamarquesas e pelos dinamarqueses. É verdade que nunca residi todo um
ano em qualquer cidade dinamarquesa, simplesmente algumas estadias de curta
duração, que são sempre indutoras de perceções distorcidas, em que tendemos a
sobrevalorizar o bom e a desvalorizar o mau. Mas aprecio o estatuto de pequeno
país com orgulho, de grande tolerância, forte participação na ajuda pública
internacional, a flexi-segurança do mercado de trabalho, a sagrada eficiência
da despesa pública e o seu controlo. Com este modelo, Copenhaga e outras
cidades dinamarquesas foram das primeiras a revelar o cromatismo da chegada de
imigrantes, sem que pelo menos nos primeiros períodos tal afluxo perturbasse o
normal funcionamento convivial e respeitador dos direitos humanos do modo de
vida dinamarquês.
O principal problema da
tolerância escandinava é que ela não é um recurso infinito. Face à insistente
intolerância e rejeição da solidariedade dos outros, as sociedades escandinavas
ficam sujeitas a uma pressão que obviamente a direita (que também existe e
expressiva nestas paragens) explora sem o mínimo pudor, cavalgando ondas de
insatisfação, receio, extremadas pela sensação de serem vítimas da intolerância
dos outros.
Os jornais dos últimos
dias documentaram a primeira multa registada na Dinamarca à proibição do uso do
véu islâmico. A notícia significa várias coisas e gera reflexões de vária
ordem. A primeira prende-se com a aparente dissonância do que esta proibição
representa face ao que conhecemos sobre a tolerância dinamarquesa. Se nada se
tivesse passado neste mundo tenderíamos a achar perfeitamente normal que os
véus se passeassem pelas ruas de Copenhaga.
A segunda reflexão é
produto de uma evidência. O registo da penalidade significa que as mulheres
imigrantes islâmicas na Dinamarca não estarão dispostas a abdicar daquela
tradição por mais cerceadora da liberdade feminina que ela nos pareça,
mostrando-se dispostas a arcar com as consequências e têm lutado por isso nas
ruas, afirmando a sua rejeição da medida.
A terceira reflexão é um
misto de desabafo e de desapontamento pelo estado do mundo em matéria de
tolerância/intolerância. A matéria é complexa, pois vem na linha do que regra
geral acontece quando se relacionam duas culturas com padrões muito
diversificados de tolerância, aos quais se juntam, explosivamente, diferenças
muito contrastadas quanto ao estatuto da mulher e ao modo como esta projeta a
sua inserção na sociedade em que vive. A abertura à imigração faz-se segundo os
bons princípios do respeito pela individualidade do outro, nela incluindo o
sistema de valores (também os religiosos). Segundo esta conceção, o véu deveria
ser considerado como fazendo parte desse sistema de valores e por isso deveria
ser respeitado. Porquê então o aparente retrocesso da inviabilização dessa
prática? Há quem pense que a sociedade de acolhimento, por mais aberta que seja
à diferença, não pode deixar de ponderar o significado de determinados símbolos
nas sociedades de origem dos imigrantes e da continuidade dos laços com tais
sociedades que os imigrantes tendem a manter. O problema é que o véu islâmico
se transformou num símbolo do islamismo radical, que não é amante da relação
convivial com as outras culturas, mas antes as pensa como algo a combater e
erradicar, incluindo as formas violentas dessa erradicação. Ou
seja, a intolerância de valores de uns (os que buscam acolhimento) afirma-se à
custa da tolerância das sociedades de acolhimento dos imigrantes. A
desigualdade de tolerância instala-se. Pode questionar-se por que razão são os
que valoram a tolerância a ter de ceder. Dirão alguns que é um custo dos
valores da tolerância. Mas dirão outros, grupo em que cada vez me incluo, que
não existe interpenetração de culturas quando alguns a rejeitam
deliberadamente. Penso que nestas condições as sociedades tolerantes não se
contrariam a si próprias e ao seu sistema de valores quando rejeitam a formação
de guetos deliberados e autoimpostos. Até porque temos belos exemplos
respeitantes à população muçulmana, não islâmica e não radical, que não
praticam a imposição do véu e que conservam traços da sua identidade na sua
maneira de vestir e ninguém se intromete com essa reserva.
Sou dos que penso que o
espaço público e o seu potencial de convivialidade constituem elementos da
nossa maneira de equacionar a Cidade que não podem ser destruídos. Se o fossem
estaríamos a destruir um dos nossos valores fundamentais que nem o terrorismo
mais violento o conseguiu. O véu islâmico, por mais carga cultural que lhe
possamos associar, não está de acordo com os valores da convivialidade. Não podemos
ser complacentes com a degenerescência dessa cultura de espaço público, seja a
provocada pelo véu islâmico, seja a da violência gratuita e da pura destruição.
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