segunda-feira, 6 de agosto de 2018

O VÉU



(Sou daqueles nativos que têm muita dificuldade de pensar uma mudança de sítio para viver. Copenhaga e algumas pequenas cidades dinamarquesas far-me-iam pensar um pouco, suspeitando sempre que a nossa perceção é enviesada pelo estatuto de visitante acidental. Vem isto a propósito da decisão dinamarquesa de proibir o uso pelas mulheres islâmicas do véu e de outras formas de ocultação do corpo da mulher no espaço público. Medida corajosa, temerária ou em contradição com a organização social dos dinamarqueses?)

Tenho especial apreço pelas dinamarquesas e pelos dinamarqueses. É verdade que nunca residi todo um ano em qualquer cidade dinamarquesa, simplesmente algumas estadias de curta duração, que são sempre indutoras de perceções distorcidas, em que tendemos a sobrevalorizar o bom e a desvalorizar o mau. Mas aprecio o estatuto de pequeno país com orgulho, de grande tolerância, forte participação na ajuda pública internacional, a flexi-segurança do mercado de trabalho, a sagrada eficiência da despesa pública e o seu controlo. Com este modelo, Copenhaga e outras cidades dinamarquesas foram das primeiras a revelar o cromatismo da chegada de imigrantes, sem que pelo menos nos primeiros períodos tal afluxo perturbasse o normal funcionamento convivial e respeitador dos direitos humanos do modo de vida dinamarquês.

O principal problema da tolerância escandinava é que ela não é um recurso infinito. Face à insistente intolerância e rejeição da solidariedade dos outros, as sociedades escandinavas ficam sujeitas a uma pressão que obviamente a direita (que também existe e expressiva nestas paragens) explora sem o mínimo pudor, cavalgando ondas de insatisfação, receio, extremadas pela sensação de serem vítimas da intolerância dos outros.

Os jornais dos últimos dias documentaram a primeira multa registada na Dinamarca à proibição do uso do véu islâmico. A notícia significa várias coisas e gera reflexões de vária ordem. A primeira prende-se com a aparente dissonância do que esta proibição representa face ao que conhecemos sobre a tolerância dinamarquesa. Se nada se tivesse passado neste mundo tenderíamos a achar perfeitamente normal que os véus se passeassem pelas ruas de Copenhaga.

A segunda reflexão é produto de uma evidência. O registo da penalidade significa que as mulheres imigrantes islâmicas na Dinamarca não estarão dispostas a abdicar daquela tradição por mais cerceadora da liberdade feminina que ela nos pareça, mostrando-se dispostas a arcar com as consequências e têm lutado por isso nas ruas, afirmando a sua rejeição da medida.

A terceira reflexão é um misto de desabafo e de desapontamento pelo estado do mundo em matéria de tolerância/intolerância. A matéria é complexa, pois vem na linha do que regra geral acontece quando se relacionam duas culturas com padrões muito diversificados de tolerância, aos quais se juntam, explosivamente, diferenças muito contrastadas quanto ao estatuto da mulher e ao modo como esta projeta a sua inserção na sociedade em que vive. A abertura à imigração faz-se segundo os bons princípios do respeito pela individualidade do outro, nela incluindo o sistema de valores (também os religiosos). Segundo esta conceção, o véu deveria ser considerado como fazendo parte desse sistema de valores e por isso deveria ser respeitado. Porquê então o aparente retrocesso da inviabilização dessa prática? Há quem pense que a sociedade de acolhimento, por mais aberta que seja à diferença, não pode deixar de ponderar o significado de determinados símbolos nas sociedades de origem dos imigrantes e da continuidade dos laços com tais sociedades que os imigrantes tendem a manter. O problema é que o véu islâmico se transformou num símbolo do islamismo radical, que não é amante da relação convivial com as outras culturas, mas antes as pensa como algo a combater e erradicar, incluindo as formas violentas dessa erradicação. Ou seja, a intolerância de valores de uns (os que buscam acolhimento) afirma-se à custa da tolerância das sociedades de acolhimento dos imigrantes. A desigualdade de tolerância instala-se. Pode questionar-se por que razão são os que valoram a tolerância a ter de ceder. Dirão alguns que é um custo dos valores da tolerância. Mas dirão outros, grupo em que cada vez me incluo, que não existe interpenetração de culturas quando alguns a rejeitam deliberadamente. Penso que nestas condições as sociedades tolerantes não se contrariam a si próprias e ao seu sistema de valores quando rejeitam a formação de guetos deliberados e autoimpostos. Até porque temos belos exemplos respeitantes à população muçulmana, não islâmica e não radical, que não praticam a imposição do véu e que conservam traços da sua identidade na sua maneira de vestir e ninguém se intromete com essa reserva.


Sou dos que penso que o espaço público e o seu potencial de convivialidade constituem elementos da nossa maneira de equacionar a Cidade que não podem ser destruídos. Se o fossem estaríamos a destruir um dos nossos valores fundamentais que nem o terrorismo mais violento o conseguiu. O véu islâmico, por mais carga cultural que lhe possamos associar, não está de acordo com os valores da convivialidade. Não podemos ser complacentes com a degenerescência dessa cultura de espaço público, seja a provocada pelo véu islâmico, seja a da violência gratuita e da pura destruição.
 

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