(É um sinal dos tempos. Nunca imaginei que algum dia pudesse estar significativamente
preocupado com os avanços do protecionismo, atendendo a que sempre fui um crítico
atento dos malefícios do livre-câmbio mundial. Mas a verdade é que estou, tanto mais que os
economistas continuam com dificuldades para demonstrar com rigor e objetividade
que dimensão real podemos associar aos seus efeitos penalizadores.)
Como crítico reformista e não radical da
globalização e dos seus avanços desregulados sempre estive mais atento à crítica
dos excessos e desmandos do livre-câmbio do que aos avanços do protecionismo mais
generalizado. Mas os tempos estão a mudar a um ritmo surpreendente. O
protecionismo beligerante está hoje transformado em combustível do populismo mais
vociferante e abjeto. É necessário por isso fazer reset de pensamentos anteriores e focar-nos na realidade da
economia mundial de hoje, com ameaças no horizonte, tanto mais que não podem
ser isoladas dos inúmeros exemplos de degenerescência política e dos valores democráticos.
Nos meus últimos cursos de globalização e desenvolvimento
económico, tive oportunidade de desenvolver os casos mais relevantes de gestão
pontual e seletiva dos mecanismos do comércio internacional e anotar o aparente
sucesso económico de tais experiências, com maior evidência entre as economias
emergentes (China, Vietname e alguns outros). Esses mecanismos de gestão
seletiva do comércio internacional assumiam-se como modalidades de intervenção
compatíveis com os ditames e regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e
não como alternativas deliberadas desse referencial. Sempre foram entendidas
como medidas inseridas em estratégias de desenvolvimento e crescimento económico
mas vastas. Estratégias que visam dotar os países emergentes de uma robustez
económica que lhes permita acolher as exigências do comércio internacional
livre. Estratégias que consoante a criatividade das respetivas administrações económicas
podem ser vistas como transformações para o tempo presente do velho argumento
das indústrias nascentes, argumento velhinho dos tempos de List. Na minha
interpretação, essas estratégias e essas administrações diligentes nada mais
fizeram do que aproveitar o esgotamento do chamado consenso de Washington, sem
que algo de coerente tivesse emergido como alternativa para organizar a ordem
económica internacional. O êxito que podemos associar a essas experiências
seletivas em termos de crescimento económico veio simplesmente demonstrar uma
evidência que os economistas do desenvolvimento originais sempre tiveram claro:
o comércio internacional livre a e a globalização produzem efeitos benéficos só
a partir do momento em que os países atingem um patamar de desenvolvimento
(nunca foi muito claro que características deve esse patamar apresentar e como é
o identificámos em termos de variáveis económicas).
Por contraponto com essas ideias, sempre
defendi que a União Europeia, com desiguais níveis de desenvolvimento no seu
interior, com países como Portugal não tendo ainda atingido esse patamar e com
o constrangimento da moeda única, deveria prestar mais atenção à sua política industrial
e comercial externa. Tais políticas não podem ser conduzidas como se todos os
países apresentem a robustez da economia alemã. Gostaria, por isso, que os
partidos socialistas e social-democratas europeus tivessem dedicado mais atenção
a essa questão e tivessem resistido à sereia da tentação da ortodoxia monetária.
Ora, aquilo que nos parecia pouco plausível,
está hoje instalado com ferro e fogo comercial. O possível desmembramento da
economia turca ditado pela declaração de guerra comercial de Trump a algumas
exportações turcas, como represália pela prisão de um pastor americano, é apenas
a ponta de uma catadupa de acontecimentos que podem precipitar-se na sequência do
ambiente de guerra comercial que o populismo está a decretar. É claro que no
caso turco há outros motivos de interesse a ter em conta. Causa alguma perplexidade
que o autoritarismo em curso de Erdogan não tenha medido as consequências de um
modelo económico que necessita permanentemente de influxo de capital
estrangeiro, para assegurar uma adequada liquidez em dólares. O todo-poderoso autocrata
turco terá pensado que “business is business”
e que os investidores americanos não confundiriam os planos de intervenção. As
reações em torno do mercado da lira turca e as suas consequências em várias bolsas,
incluindo a espanhola, mostram como seria de esperar que política e economia andam
de mãos dadas em tempos de protecionismo assanhado. Trump está nas suas quintas,
porque até pode erguer a bandeira da luta contra o autoritarismo de Erdogan,
mesmo que saibamos que quem ergue essa bandeira tem telhados de vidro que
baste.
A questão turca é, assim, um incidente de uma
realidade mais abrangente, cuja efetividade depende em grande medida dos
desenvolvimentos da guerra comercial entre os EUA e a China. O ambiente comercial
que está a desenhar-se é péssimo para pequenas e médias economias em busca do
tal patamar de robustez que lhes permita tirar partido do comércio
internacional livre.
Sabemos hoje que uma grande parte dos argumentos
que levaram o populismo a acordar para o protecionismo beligerante é falsa ou,
pelo menos, não corresponde ao discurso justificativo agitado junto das massas
perdedoras com o comércio internacional. Por exemplo, os gráficos que mostram a
queda abrupta do peso do emprego na indústria transformadora no emprego total
das economias fazem parte da narrativa populista. Trump agita repetidas vezes o
gráfico relativo à economia americana, para acomodar o America Great again e gerar empatia com as populações dos distritos
americanos mais atingidos pelo declínio industrial. Mas como Brad DeLong (link aqui) muito
bem assinala, se olharmos para o gráfico similar da economia alemã (ver gráfico
que abre este post) é impressionante a similaridade entre os dois. Ora não
consta que a Alemanha enfrente um processo de declínio industrial. A economia
que Trump considera uma das suas inimigas apresenta também uma queda
devastadora do peso do emprego na indústria transformadora. O que significa que
as forças do declínio relativo do emprego industrial não estão necessariamente
ou não estarão pelo menos apenas situadas no comércio internacional. A
narrativa é outra e não pode deixar de envolver o progresso técnico.
Para agravar o problema, é preciso reconhecer
que a economia política está ainda muito longe de fornecer, cabalmente, uma explicação
e medida dos efeitos nefastos do protecionismo, que não seja a evidência de que
no fim de uma guerra comercial todos estarão em pior posição.
Uma das razões (a que Krugman se refere num
dos seus últimos artigos de opinião no New York Times, link aqui) prende-se com
o facto do comércio internacional estar hoje predominantemente organizado em
sistemas de cadeias de valor globais. Os fluxos de exportações e importações de
produtos intermédios são muito fortes (apesar da sua relativa estagnação nos
tempos mais recentes). Neste tipo de economia é bem mais difícil prever os
efeitos de um imposto aduaneiro sobre uma determinada importação. Há dias
corria nas redes sociais um divertimento sobre os efeitos imprevistos para a
economia americana de uma imposição de direitos aduaneiros sobre a importação
de painéis solares. Do mesmo modo, Justin Lahart, no Wall Street Journal, publicava
provocatoriamente um artigo cujo título era “The Imperfect Science of How Much Tariffs Will Hurt” (A Ciência Imperfeita
dos Efeitos Penalizadores dos Direitos Aduaneiros) (link aqui). Poderíamos acrescentar ainda
o velho problema de distinguir entre efeitos a curto e a longo prazo desses
direitos aduaneiros, distinção tanto mais importante quanto a economia de Trump
vive hoje um período de crescimento económico acentuado.
Moral da história: não basta hoje a um crítico
reformista da globalização agitar a necessidade de regular e ordenar a ordem
económica internacional e conjugar a arquitetura das trocas com princípios de
maior liberdade para as economias emergentes construírem os seus patamares de
desenvolvimento. Uma nova aliança é necessária. É preciso combater as
narrativas do protecionismo generalizado.
Em 8 de setembro de 2012 (como o tempo
passa), escrevi neste blogue (link aqui) o seguinte:
“O patrono
deste blogue, Albert O. Hirschman, estudou há largo tempo a evolução do
comércio externo alemão no período que levou à ascensão e implantação do
nazismo (creio que o assunto já mereceu reflexão minha neste espaço) e detetou
nesse processo uma política minuciosa de bisturi para organizar as relações
comerciais como instrumento de poder de economias vizinhas. O mecanismo é
conhecido e consiste na construção paulatina de relações de poder, dependência
e subjugação, facilitadoras da posterior negociação diplomática mais dura e, no
caso vertente, do posterior assalto a esses países.”
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