quarta-feira, 22 de agosto de 2018

AS DUAS FACES DE CENTENO



(As reações desabridas de Varoufakis, Galamba e outros personagens do tipo ao vídeo de Mário Centeno como presidente do Eurogrupo sobre o fim do resgate financeiro à economia grega tanto podem ser interpretadas como fogachos de uma silly season que caminha para o fim como reflexos de algo mais profundo. A questão faz-me lembrar o adágio “quem não quer ser lobo não lhe veste a pele”)

Comecemos pelo vídeo em si (link aqui). É mais um entre centenas e milhares de vídeos que a tecnoburocracia de Bruxelas edita. Nele se assinala o fim do resgate financeiro à Grécia, destacando-se a recuperação que a economia grega apresenta em termos de crescimento, emprego, saldo comercial externo e, com mais dúvidas sobre a bondade da evolução que está a acontecer, de modernização (com tudo o que isso pode significar). A mensagem não oculta os custos do ajustamento, mas fá-lo de modo algo viciado: não refere a quebra de produto potencial da economia grega e a destruição de recursos observada, não acusa o facto da economia grega, apesar dos progressos, estar ainda baixo dos valores do pré-resgate e associa tais custos e sacrifícios às “más políticas” do governo grego. Mensagens truncadas ou distorcidas editadas pela comunicação de Bruxelas são frequentes e só o facto de quem a emite, Mário Centeno ser quem é, conduz a diferenciar a mensagem do Eurogrupo de tantas outras com que a tecnoburocracia da Comissão e do Conselho afirmam a sua influência.

Como o referi então, ter à frente do Eurogrupo o ministro das Finanças de um governo com apoio parlamentar à esquerda (de partidos que não morrem de amores pelo projeto europeu como ele se apresenta) teria sempre o condão de procurar reações alérgicas nos mais sensíveis. Mas em meu entender são reações alérgicas sem qualquer expressão. Será assim porque Centeno é uma espécie de contorcionista político, um ZELIG das finanças que se adapta camaleonicamente aos contextos em que passeia a sua competência como economista? Nada disso. A razão é mais profunda e exige uma formulação de bisturi para não colocar os meus amigos do PS em estado de revolta.

Encadeemos o raciocínio. Sabemos que a abordagem europeia à crise das dívidas soberanas e aos programas de resgate financeiro foi desastrosa, sobretudo do ponto de vista da dose de contração da despesa pública e dos rendimentos das famílias que foi imposta e dos obstáculos que os mercados internacionais em baixa colocavam à recuperação dos transacionáveis nos países intervencionados. Essa abordagem, racionalizada por economistas da austeridade como Alesina e por economistas que exageraram o determinismo negativo dos pesos elevados da dívida pública no PIB, como Kenneth Rogoff, só não produziu custos mais gravosos porque a intervenção do BCE do tipo “tudo será feito para conter a desagregação do euro” conseguiu acalmar as hostes. Esta política desastrosa tem hoje críticas mais demolidoras do que as que timidamente eram invocadas quando foram decididas. Mas temos de perguntar: foi ensaiada alguma alternativa, testada em situação de guerra? Não, não foi ensaiada qualquer alternativa. Podemos dizer que se criaram melhores condições do ponto de vista do entendimento económico da questão. Mas no interior do Eurogrupo essas ideias estão longe de ser maioritárias. A posição alemã e do seu ordoliberalismo económico continua a secar tudo que é pensamento alternativo à sua volta e esse é o problema principal.

O que é que representa então o governo de António Costa e Centeno e da geringonça face a esse contexto? Uma alternativa global e coerente a essas políticas, demonstrando que é possível fazer diferente sem perder a estabilidade orçamental e financeira? A resposta é negativa. A trajetória é diferente mas não constitui uma alternativa global e consistente. Qual é então a diferença que veicula? O modelo da governação económica atual, com o controlo das finanças públicas assegurado por Centeno, conseguiu demonstrar que, aproveitando as janelas de oportunidade que a recuperação da economia mundial proporcionou, era possível fazer uma transição para uma aposta mais sólida nos transacionáveis, com melhorias de procura interna geradas pela recuperação progressiva de rendimentos e recuperação também progressiva de cortes de despesa pública introduzidos pelo resgate financeiro. A recuperação de rendimentos representa uma transição positiva, almofadada, que permitiu, entre outras coisas, recuperar a confiança na economia e nas instituições, com Marcelo a ajudar e muito. Não se trata por isso de uma alternativa global à estabilização com austeridade a todo o preço. O investimento público está ainda em níveis muito abaixo do desejável e as escolhas públicas para a sua recuperação tardam em ser explicitadas e é legítimo admitir que combinações diferentes de reposição de rendimentos e de carreiras e de investimento público podem ser no futuro equacionadas.

O que quero significar com isto é que Centeno não está perante a quadratura do círculo quando atua como ministro das Finanças em Portugal e como Presidente do Eurogrupo. E não precisa de todo de ser o contorcionista mais hábil e flexível para compatibilizar as duas funções. Será assim para todo o sempre e o homem sairá imaculado da dobradinha? Não, tempos virão em que as necessidades e as opções de estabilização de uma qualquer economia em dificuldades irão exigir abordar a questão crucial: vamos abordar a questão como o fizemos antes? Não sabemos se nessa altura Centeno será ainda ministro das Finanças ou Presidente do Eurogrupo ou se terá regressado ao ISEG ou a um cargo internacional qualquer.

Por agora, o vídeo de Centeno não é mais nem menos dissimulador do que outras mensagens comunicacionais da Comissão e de outras instituições. Comete a meu ver o erro de fazer recair os custos da destruição produtiva e de vidas apenas nos erros das políticas internas gregas, que existiram tal como em Portugal. Mas se tivesse alguma força regeneradora poderia modestamente admitir que o Eurogrupo está disponível para aprender com os erros e ir adaptando as terapias do resgate. Não o fez. Não talvez porque pense que isso não é necessário, mas pelo receio de levar um valente puxão de orelhas dos mais ortodoxos. Mas quem não quer ser lobo …

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