terça-feira, 21 de agosto de 2018

CRÉDITO, MALDITO CRÉDITO



(A crise financeira já lá vai há mais de uma década. Ela mexeu com as economias e com a economia política, mais com as primeiras do que com a segunda, apesar dos esforços de muitos para que os seus ensinamentos não passem despercebidos e à margem da revisão de paradigmas. Multiplicam-se os estudos sobre os fatores que precipitaram 2007-2008 e a tentação das analogias com o tempo presente está aí mais forte do que nunca)

As sequelas de 2007-2008 trouxeram-nos penosidade, na Europa mais aos irlandeses e espanhóis, mas também obras de referência para compreender os acontecimentos. No caso que nos interessa, o português, está pouco estudada a relação entre os efeitos de 2007-2008 na economia portuguesa (bem menos exposta à crise do que a Irlanda e a Espanha, mas com impactos diferidos nas malditas imparidades bancárias e desagregação do BES) e o seu encavalitamento com a crise das dívidas soberanas e o posterior resgate financeiro. É um espaço de explicação que está ainda por preencher totalmente. Entre as obras de referência dirigidas à economia americana, onde tudo começou, HOUSE OF DEBT (The University of Chicago Press, 2014) de Atif Mian (Princeton) e Amir Sufi (Chicago) é certamente uma das mais relevantes, obra oportunamente discutida neste blogue (ver link aqui). Do meu conhecimento, pouco profundo diga-se sobre esta literatura, não existe equivalente europeu para a obra de Mian e Sufi, destacando-se o trabalho de Daniel Gros que já em 2007 (link aqui) assinalava a evolução em conformidade das bolhas imobiliárias na Europa e nos Estados Unidos (veja-se o gráfico acima).

Mian e Sufi têm prosseguido a sua investigação analisando o comportamento em paralelo dos movimentos especulativos dos preços de habitação e da atividade de construção em algumas cidades americanas, algo aparentemente de difícil explicação pois a intensificação da atividade construtiva de novas habitações tende nas explicações a fazer baixar as expectativas especulativas sobre o preço das habitações. O período de análise é o de 2000 a 2010 e os autores cavalgam a ideia original de Kindleberger de que é essencialmente o comportamento do crédito que explica os surtos especulativos sobre os preços dos ativos. Retomando as suas ideias de que o financiamento da habitação experimentou nos EUA uma significativa alteração das suas modalidades, os economistas americanos reúnem evidência segura da intensificação do papel do crédito no desenvolvimento do processo especulativo que precipitou os acontecimentos de 2007-2008. O crédito é o principal responsável pela entrada no mercado de uma massa então marginal de compradores de habitação.

A sua conclusão no curto artigo publicado no VOX EU é revelador:

O surto especulativo fornece também importantes lições sobre a interação do crédito e dos preços dos ativos. Enquanto que todos os compradores em códigos de residência mais expostos ao mercado de PLS (Private Label Mortgage Securitisation) usaram um empréstimo hipotecário para comprar uma casa entre 2003 e 2006, o peso dos compradores em cash aumentaram significativamente em 2007 e depois. Este padrão é consistente com a ideia de que os preços colapsaram em parte porque um crédito mais apertado impediu os otimistas de comprar casa durante o período de venda, o que significou que os compradores em dinheiro mais pessimistas tornaram-se nos definidores do preço marginal. O crédito mais facilitado puxou os preços para cima durante a expansão e o crédito mais apertado exacerbou a falência. As flutuações do crédito e as flutuações dos preços dos ativos estão fortemente conexionados”.

Claro que todos compreendemos que em Portugal, dada a nossa dimensão, teremos bolhinhas quando comparadas com as que são objeto de investigação por parte de Mian e Sufi. Mas na pequena dimensão as bolhinhas não deixam de ter impacto. A distorção para os não transacionáveis andou por aqui. De tudo isto fica a reflexão mais importante. O crédito é um dos mecanismos fundamentais do capitalismo, como os grandes economistas de Keynes a Schumpeter o compreenderam. Mas é também uma das variáveis cruciais pelas quais se transmite a instabilidade e a incerteza, alimentando por vezes as exuberâncias irracionais que atravessam os mercados. Daí o desabafo, crédito, maldito crédito. Compreende-se também o cuidado com que o Banco de Portugal segue a variável e o comportamento dos bancos na sua concessão. Conviria não sermos apanhados de novo em contra-mão e iniciar depois um outro longo e penoso processo de desalavancagem.

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