(Para além da sua agressividade atenta sobre a economia e a política
americana, o blogue de Brad DeLong, Grasping
Reality with at Least Three Hands, é um autêntico baú-biblioteca de suporte
à investigação económica e política. É por esta via inesgotável que chego a um artigo de Tony Judt publicado em
17 de dezembro de 2009 na New York Review
of Books sobre um tema de hoje: What is Living and What is Dead in Social
Democracy)
O Grasping Reality with at LeastThree Hands (link aqui)
de Brad DeLong e o Economist’s View (link aqui) de Mark Thoma são hoje dois
importantes instrumentos de trabalho de qualquer investigador em economia
política. A estes dois blogues muito deve a minha persistência de escrita neste
espaço, tamanha e variada é a sua influência na orientação das minhas próprias
leituras, completada com a tentativa nem sempre conseguida da minha parte de
projetar os temas suscitados para uma maior proximidade com a sociedade
portuguesa. Ambos os blogues se transformaram num valioso repertório de
informação. Mas a filosofia mais construtiva e experimental que inspira a
coluna de Brad DeLong, na qual partilha a génese da sua vasta produção,
incluindo as suas próprias aulas em Berkeley, transforma-o num arquivo digital
de grande alcance. Ou seja, pela leitura diária do Grasping é possível chegar a um arquivo digital praticamente
impossível de reproduzir a partir de uma universidade portuguesa. Por esta via,
acedemos frequentemente à valia das bibliotecas americanas, sob condições
editoriais bem conhecidas, transparentes e que o economista americano coloca
permanentemente a escrutínio público dos seus alunos e leitores. Se me
perguntarem como é possível ter vida e atividade organizadas, incluindo
família, para assegurar a intensidade editorial que o Grasping respira, isso para mim é um verdadeiro mistério. Tenho a
vaga ideia que um colega da Faculdade de Economia do Porto visitou em tempos
Berkeley (seria o Professor Pedro Teixeira? Já não me lembro bem!) e teve o
privilégio de privar algum tempo com Brad e a família, compreendendo pela
experiência que se trata de uma cabeça em permanente movimento intelectual.
No baú-biblioteca digital do Grasping fui transportado para um artigo
do saudoso Tony Judt, publicado na New
York Review of Books, em dezembro de 2009 (link aqui) , elaborado a partir de uma
conferência na Universidade de Nova Iorque. O tema seduziu-me, pois quase dez
anos depois da sua publicação, ele continua apontado ao coração da
transformação da social-democracia que espero ainda venha pelo menos a dar
alguns passos comigo desperto. Curiosamente, é o próprio artigo de Judt que me
levou a conhecer o artigo seminal de Judith Shklar, “The liberalism of fear”, com o qual Judt faz uma analogia no fim e
que obviamente DeLong disponibilizara no seu artigo digital, dedicando-lhe um
dos seus habituais “Should Read”.
A curiosidade do artigo de Judt é estar
organizado a partir da velha questão colocada pelo sociólogo alemão Werner
Sombart “Porque é que não há socialismo
na América?”. O fenómeno Bernie Sanders é posterior à morte de Judt. Caso
contrário, teríamos por certo uma explicação robusta da emergência dos “HAVE
NOT’s” que parece mexer também com os Democratas americanos.
Judt insurge-se, com razão, contra a
desistência de discutir opções segundo critérios éticos ou morais, dando lugar
ao foco exclusivo nas questões da eficiência, da produtividade, dos efeitos
sobre o PIB e crescimento económico. O debate oculto nessa desistência e na
soberania do economismo é no fundo aquele que foi travado entre Hayek (e Von
Mises) e Keynes. Os primeiros, profundamente marcados pelo colapso da Áustria
em que viviam após experiências de planeamento central e o segundo claramente
influenciado pela sua própria vivência do entre duas guerras, a sua participação
ativa nas negociações de Versalhes do pós 1ª Guerra Mundial e depois pela
caminhada para a Grande Depressão. A social-democracia não pode deixar de
recuperar a herança de Keynes e essa está na ponderação da incerteza
estrutural, afinal resultante da imprevisibilidade humana e dos negócios em
geral. Se relermos a incerteza de Keynes nos dias de hoje, a incerteza
transformou-se em insegurança e numa espécie de medo coletivo que, nas barbas
dos sociais-democratas, são explorados profissionalmente pelo discurso
populista, quaisquer que sejam as suas variantes, da plutocracia ao
protofascismo que grassa por aí.
A social-democracia prosperou na chamada
idade de ouro do crescimento económico na medida em que a incerteza e a insegurança
foram travadas pela redução das desigualdades, a construção de um estado social
e protetor, a confirmação das aspirações ascendentes das classes médias, a
redução da pobreza e de certa maneira a reconfiança no Estado e no seu poder
regulador. Mas, paradoxalmente, à medida que tais conquistas se foram solidificando,
foi desaparecendo a memória do seu contrário. Judt é claríssimo nesse registo: “O paradoxo do estado de bem-estar e na verdade de todos
os estados sociais-democratas (e cristão-democratas) da Europa, é muito simples,
o seu sucesso tenderá com o tempo a minar a sua sedução. A geração que se recordava
dos anos 30 era compreensivelmente a mais preparada para preservar instituições
e sistemas fiscais, de serviço social e de fornecimento público que viam como uma
proteção contra os horrores do passado. Mas os seus sucessores – mesmo na Suécia-
começaram a esquecer a razão porque procuraram essa segurança em primeiro lugar”.
Estamos ainda numa longa transição que
começou a cavar-se quando a harmonia e o equilíbrio entre o crescimento e o
modelo económico, por um lado, e o aprofundamento do estado social e protetor
foram destruídos. Nessa longa transição várias coisas se passaram. A má consciência
do Estado e do planeamento levou a uma política de privatizações com modelos
diversos, mas todos em grande medida ruinosos na defesa e preservação do
serviço público e da equidade ao seu acesso. Em Portugal, exemplo desse
desvario, privatizou-se primeiro à tripa forra e só depois se publicou a estratégia.
A desigualdade intensificou-se e uma certa sedução pela aparência e modos de
consumo do 1% mais rico instalou-se, hábil e ardilosamente vendida como o predomínio
da meritocracia. Perdeu-se o terreno da gestão política da incerteza, da insegurança
e do medo, hoje ocupado por discursos políticos securitários, xenófobos,
populistas para todos os gostos. A narrativa da história que conduziu ao
aparecimento da social-democracia foi-se perdendo, esquecida e como algo fora de
moda, perdendo por essa via a recordação dos ganhos do passado.
É neste campo que a reflexão de Judt é mais
provocatória: ”Se a social-democracia tem um futuro, será
como uma social-democracia do medo. Em vez de procurar restaurar uma linguagem
otimista do progresso, temos de nos reencontrar com o passado recente. A
primeira tarefa dos dissidentes radicais de hoje é recordar à sua audiência as
conquistas do século XX, ao mesmo tempo que se apresentam as consequências mais
prováveis da corrida para o seu desmantelamento”.
Para Judt combater pela social-democracia do
medo (é aqui que entra a analogia com o liberalismo do medo de Judith Shklar) é
algo que vale a pena, para não trairmos gerações passadas que conseguiram a sua
implantação e as gerações futuras que dela podem vir a beneficiar. Dez anos
passaram e as palavras de Judt permanecem armas apontadas à nossa reflexão. Em
vez delas, vemos a procura de uma narrativa de encenação de progressos que
sabemos não serem viáveis, designadamente os que são construídos em torno das
maravilhas do digital, como se este não fosse mais uma fórmula geradora de
novos “divides” e desigualdades. Não podemos ignorar que uma transformada social-democracia
tem uma palavra a dizer quanto à incerteza, a insegurança, os mecanismos do
medo. Desistir desse campo é entregar de mão beijada a sua gestão aos interesses
mais inconfessáveis. Claro que não chega para um programa. Mas é um bom ponto
de partida.
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