segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O ARQUIVO DE BRAD DELONG



(Para além da sua agressividade atenta sobre a economia e a política americana, o blogue de Brad DeLong, Grasping Reality with at Least Three Hands, é um autêntico baú-biblioteca de suporte à investigação económica e política. É por esta via inesgotável que chego a um artigo de Tony Judt publicado em 17 de dezembro de 2009 na New York Review of Books sobre um tema de hoje: What is Living and What is Dead in Social Democracy)

O Grasping Reality with at LeastThree Hands (link aqui) de Brad DeLong e o Economist’s View (link aqui) de Mark Thoma são hoje dois importantes instrumentos de trabalho de qualquer investigador em economia política. A estes dois blogues muito deve a minha persistência de escrita neste espaço, tamanha e variada é a sua influência na orientação das minhas próprias leituras, completada com a tentativa nem sempre conseguida da minha parte de projetar os temas suscitados para uma maior proximidade com a sociedade portuguesa. Ambos os blogues se transformaram num valioso repertório de informação. Mas a filosofia mais construtiva e experimental que inspira a coluna de Brad DeLong, na qual partilha a génese da sua vasta produção, incluindo as suas próprias aulas em Berkeley, transforma-o num arquivo digital de grande alcance. Ou seja, pela leitura diária do Grasping é possível chegar a um arquivo digital praticamente impossível de reproduzir a partir de uma universidade portuguesa. Por esta via, acedemos frequentemente à valia das bibliotecas americanas, sob condições editoriais bem conhecidas, transparentes e que o economista americano coloca permanentemente a escrutínio público dos seus alunos e leitores. Se me perguntarem como é possível ter vida e atividade organizadas, incluindo família, para assegurar a intensidade editorial que o Grasping respira, isso para mim é um verdadeiro mistério. Tenho a vaga ideia que um colega da Faculdade de Economia do Porto visitou em tempos Berkeley (seria o Professor Pedro Teixeira? Já não me lembro bem!) e teve o privilégio de privar algum tempo com Brad e a família, compreendendo pela experiência que se trata de uma cabeça em permanente movimento intelectual.

No baú-biblioteca digital do Grasping fui transportado para um artigo do saudoso Tony Judt, publicado na New York Review of Books, em dezembro de 2009 (link aqui) , elaborado a partir de uma conferência na Universidade de Nova Iorque. O tema seduziu-me, pois quase dez anos depois da sua publicação, ele continua apontado ao coração da transformação da social-democracia que espero ainda venha pelo menos a dar alguns passos comigo desperto. Curiosamente, é o próprio artigo de Judt que me levou a conhecer o artigo seminal de Judith Shklar, “The liberalism of fear”, com o qual Judt faz uma analogia no fim e que obviamente DeLong disponibilizara no seu artigo digital, dedicando-lhe um dos seus habituais “Should Read”.

A curiosidade do artigo de Judt é estar organizado a partir da velha questão colocada pelo sociólogo alemão Werner Sombart “Porque é que não há socialismo na América?”. O fenómeno Bernie Sanders é posterior à morte de Judt. Caso contrário, teríamos por certo uma explicação robusta da emergência dos “HAVE NOT’s” que parece mexer também com os Democratas americanos.

Judt insurge-se, com razão, contra a desistência de discutir opções segundo critérios éticos ou morais, dando lugar ao foco exclusivo nas questões da eficiência, da produtividade, dos efeitos sobre o PIB e crescimento económico. O debate oculto nessa desistência e na soberania do economismo é no fundo aquele que foi travado entre Hayek (e Von Mises) e Keynes. Os primeiros, profundamente marcados pelo colapso da Áustria em que viviam após experiências de planeamento central e o segundo claramente influenciado pela sua própria vivência do entre duas guerras, a sua participação ativa nas negociações de Versalhes do pós 1ª Guerra Mundial e depois pela caminhada para a Grande Depressão. A social-democracia não pode deixar de recuperar a herança de Keynes e essa está na ponderação da incerteza estrutural, afinal resultante da imprevisibilidade humana e dos negócios em geral. Se relermos a incerteza de Keynes nos dias de hoje, a incerteza transformou-se em insegurança e numa espécie de medo coletivo que, nas barbas dos sociais-democratas, são explorados profissionalmente pelo discurso populista, quaisquer que sejam as suas variantes, da plutocracia ao protofascismo que grassa por aí.

A social-democracia prosperou na chamada idade de ouro do crescimento económico na medida em que a incerteza e a insegurança foram travadas pela redução das desigualdades, a construção de um estado social e protetor, a confirmação das aspirações ascendentes das classes médias, a redução da pobreza e de certa maneira a reconfiança no Estado e no seu poder regulador. Mas, paradoxalmente, à medida que tais conquistas se foram solidificando, foi desaparecendo a memória do seu contrário. Judt é claríssimo nesse registo: “O paradoxo do estado de bem-estar e na verdade de todos os estados sociais-democratas (e cristão-democratas) da Europa, é muito simples, o seu sucesso tenderá com o tempo a minar a sua sedução. A geração que se recordava dos anos 30 era compreensivelmente a mais preparada para preservar instituições e sistemas fiscais, de serviço social e de fornecimento público que viam como uma proteção contra os horrores do passado. Mas os seus sucessores – mesmo na Suécia- começaram a esquecer a razão porque procuraram essa segurança em primeiro lugar”.

Estamos ainda numa longa transição que começou a cavar-se quando a harmonia e o equilíbrio entre o crescimento e o modelo económico, por um lado, e o aprofundamento do estado social e protetor foram destruídos. Nessa longa transição várias coisas se passaram. A má consciência do Estado e do planeamento levou a uma política de privatizações com modelos diversos, mas todos em grande medida ruinosos na defesa e preservação do serviço público e da equidade ao seu acesso. Em Portugal, exemplo desse desvario, privatizou-se primeiro à tripa forra e só depois se publicou a estratégia. A desigualdade intensificou-se e uma certa sedução pela aparência e modos de consumo do 1% mais rico instalou-se, hábil e ardilosamente vendida como o predomínio da meritocracia. Perdeu-se o terreno da gestão política da incerteza, da insegurança e do medo, hoje ocupado por discursos políticos securitários, xenófobos, populistas para todos os gostos. A narrativa da história que conduziu ao aparecimento da social-democracia foi-se perdendo, esquecida e como algo fora de moda, perdendo por essa via a recordação dos ganhos do passado.

É neste campo que a reflexão de Judt é mais provocatória: ”Se a social-democracia tem um futuro, será como uma social-democracia do medo. Em vez de procurar restaurar uma linguagem otimista do progresso, temos de nos reencontrar com o passado recente. A primeira tarefa dos dissidentes radicais de hoje é recordar à sua audiência as conquistas do século XX, ao mesmo tempo que se apresentam as consequências mais prováveis da corrida para o seu desmantelamento”.

Para Judt combater pela social-democracia do medo (é aqui que entra a analogia com o liberalismo do medo de Judith Shklar) é algo que vale a pena, para não trairmos gerações passadas que conseguiram a sua implantação e as gerações futuras que dela podem vir a beneficiar. Dez anos passaram e as palavras de Judt permanecem armas apontadas à nossa reflexão. Em vez delas, vemos a procura de uma narrativa de encenação de progressos que sabemos não serem viáveis, designadamente os que são construídos em torno das maravilhas do digital, como se este não fosse mais uma fórmula geradora de novos “divides” e desigualdades. Não podemos ignorar que uma transformada social-democracia tem uma palavra a dizer quanto à incerteza, a insegurança, os mecanismos do medo. Desistir desse campo é entregar de mão beijada a sua gestão aos interesses mais inconfessáveis. Claro que não chega para um programa. Mas é um bom ponto de partida.

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