quinta-feira, 23 de agosto de 2018

A VIA SACRA DA DIREITA



(A génese e a aparente resiliência da solução política da geringonça foram uma surpresa, não custa reconhecê-lo, para toda a gente interessada pela política, o que continuo a interpretar como um sinal da vitalidade da democracia. O que não consegui antecipar foi o efeito que iria provocar nessa coisa, longe de estar bem definida, da direita portuguesa.)

Quando o PSD de Passos Coelho saiu das últimas legislativas como o partido mais votado após a saída do resgate financeiro e não conseguiu formar governo com apoio parlamentar garantia de estabilidade para uma legislatura, a democracia portuguesa viveu um choque à sua maneira. A imagem que retenho na memória dessa altura é a de uns rostos estupefactos e alterados de participantes em pequenas manifestações em Lisboa e no Porto, incrédulos pelo que estava a passar-se, sobretudo com a chegada ao poder de um primeiro-Ministro objetivamente derrotado em eleições que tinha todas as condições para ganhar, dada a penosidade dos sacrifícios impostos aos portugueses. Convenhamos que não era para menos, até porque António Costa tinha desfeito a convicção de que o PCP e o Bloco de Esquerda não se envolveriam em questões de governação. Qualquer que seja o resultado efetivo dos anos de governação da geringonça, a história mostrará um dia que o evento não se deveu apenas à habilidade política de Costa. Deveu-se também, em grande medida, à sensibilidade revelada pelas lideranças do PCP e do Bloco de que essa era a vontade do seu eleitorado. E aí é que esteve a surpresa da direita.

Do ponto de vista das consequências sobre a direita portuguesa, a que está parlamentarmente representada no Parlamento e a que está concentrada em alguns centros de opinião como principalmente o Observador ou em projetos de formação de novos partidos ou movimentos (Iniciativa Liberal), confesso que não consegui antecipar a extensão e diversidade desses efeitos. Numa fórmula resumida, poderei dizer que se passou do efeito-surpresa ao efeito-choque, não direi com segurança traumático, mas suficientemente forte para gerar longos efeitos de ajustamento, não sei se plenamente concretizados até as próximas legislativas.

Senão vejamos.

A reação mais tumultuosa e desesperada foi a do próprio PSD de Passos Coelho. A projeção de cataclismos inconfessáveis que a geringonça iria determinar que a nível parlamentar esse PSD antecipou ocultou durante longo tempo a incapacidade de compreender a nova situação política criada e de ajustar a ação política à nova realidade. Compreensivelmente, esse PSD ressabiado contra o não êxito da preparação da saída limpa e da gestão eleitoral que a governação de Passos Coelho fez nesse período foi acompanhado pelos mais contundentes adversários da solução política de Costa, então fortemente concentrados no Observador. Mas, à medida que os sucessivos orçamentos da geringonça eram aprovados com a anuência de Marcelo e a situação internacional ajudava, o tempo de não adaptação do PSD de Passos Coelho começou a revelar-se incompatível com o pensamento da direita ideologicamente mais liberal. Entretanto, a ascensão de Rui Rio e dos seus tempos políticos mais distendidos (veremos se tão distendidos que acabarão por cair de maduros) tendeu a complicar o que já era muito complicado nas hostes do PSD, sobretudo a disfuncionalidade entre a base parlamentar e a da nova liderança.

A posição do CDS-PP de Cristas é de explicação mais complexa. Embora tendo participado inicialmente na denúncia da habilidade política de Costa, o CDS compreendeu mais depressa que a coisa poderia durar. Mas o próprio estilo de Cristas é incompatível com discursos mais virulentos de oposição. Vai apresentando algumas propostas como bem-comportada líder de oposição, mostrou-se com a desgraça dos incêndios, mas verdadeiramente o estilo de Cristas é o de fazer algumas viagens de comboio para mostrar o que todos os utentes mais atentos já compreenderam há muito, o estado lamentável do abandono que a via férrea foi votada em Portugal. Lembra-me a ingenuidade política dos que em tempos de inflação acelerada gostam de ir para a saída dos mercados mostrar dados da subida vertiginosa dos preços dos produtos essenciais, como se isso fosse necessário. Tenho para mim que Cristas, ciente de que a margem de manobra de captação de novos eleitores é limitada, apostou implicitamente na desagregação interna do PSD para garantir alguns eleitores trânsfugas.

Como é óbvio, com todo este contexto, não há ideólogo de direita mais liberal que não se passe dos carretos. É incómodo perceber que há algum pensamento mas que não existem intérpretes. Os ideólogos de serviço do Observador não escondem o incómodo e tenho para mim que desejam mais que Rio se estatele a curto prazo do que a geringonça se desmorone.

É claro que no meio deste contexto há o projeto da Iniciativa Liberal, um programa liberal e o desejo de combater o estado paternalista. Bom proveito. E mais recentemente teremos o efeito Santana Lopes, com o Aliança. O tribuno do PSD tem as suas senhoras de estimação e representará por certo algum capital eleitoral, o qual irá sempre ter origem no eleitorado PSD-CDS. Não creio que tenha um efeito propulsor de formação de novos eleitorados, por exemplo junto de população mais jovem que normalmente não vota ou não se interessa pelas questões da política. Li há dias, não me recordo quem é o patrono da ideia, de que Santana joga numa não maioria absoluta do PS, nas dificuldades de reedição da geringonça e na captura de um núcleo de eleitorado capaz de viabilizar a formação de um governo com o PS. A Iniciativa Liberal acusa-o entretanto de furto de ideias programáticas, mas há que convir que elas são tão gerais que o furto é compreensível, pois podem ser entendidas como bem público da direita.

Não me parece que Santana seja puxado para navegar em águas populistas. Quando muito tenderá a ser um populista q.b. mas felizmente as causas favoráveis em Portugal a visões populistas não têm ainda expressão forte, com exceção dos desvarios do mundo do futebol.

Creio que o eleitor de direita deverá sentir-se um pouco perdido. Se o contexto internacional continuar a não trazer constrangimentos sérios, esse eleitor vai pensar duas vezes entre escolher na barafunda das suas hostes ou dar um voto de alguma expectativa à governação atual, esperemos que renovada do ponto de vista da acutilância governativa. Quanto aos ideólogos do Observador sem terem cavalo que justifique grandes apostas, tenderão por mais algum tempo a focar-se na crítica da governação, órfãos de intérpretes para os seus desígnios mais vastos. Se essa crítica for rigorosa não serei eu que os vai atingir por isso. Só espero que a orfandade não lhes ofusque o rigor.

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