(A génese e a aparente resiliência da solução política da geringonça foram
uma surpresa, não custa reconhecê-lo, para toda a gente interessada pela política,
o que continuo a interpretar como um sinal da vitalidade da democracia. O que não consegui antecipar foi o efeito que iria
provocar nessa coisa, longe de estar bem definida, da direita portuguesa.)
Quando o PSD
de Passos Coelho saiu das últimas legislativas como o partido mais votado após
a saída do resgate financeiro e não conseguiu formar governo com apoio
parlamentar garantia de estabilidade para uma legislatura, a democracia
portuguesa viveu um choque à sua maneira. A imagem que retenho na memória dessa
altura é a de uns rostos estupefactos e alterados de participantes em pequenas
manifestações em Lisboa e no Porto, incrédulos pelo que estava a passar-se,
sobretudo com a chegada ao poder de um primeiro-Ministro objetivamente
derrotado em eleições que tinha todas as condições para ganhar, dada a
penosidade dos sacrifícios impostos aos portugueses. Convenhamos que não era
para menos, até porque António Costa tinha desfeito a convicção de que o PCP e
o Bloco de Esquerda não se envolveriam em questões de governação. Qualquer que
seja o resultado efetivo dos anos de governação da geringonça, a história
mostrará um dia que o evento não se deveu apenas à habilidade política de Costa.
Deveu-se também, em grande medida, à sensibilidade revelada pelas lideranças do
PCP e do Bloco de que essa era a vontade do seu eleitorado. E aí é que esteve a
surpresa da direita.
Do ponto de
vista das consequências sobre a direita portuguesa, a que está parlamentarmente
representada no Parlamento e a que está concentrada em alguns centros de opinião
como principalmente o Observador ou em projetos de formação de novos partidos ou
movimentos (Iniciativa Liberal), confesso que não consegui antecipar a extensão
e diversidade desses efeitos. Numa fórmula resumida, poderei dizer que se passou
do efeito-surpresa ao efeito-choque, não direi com segurança traumático, mas
suficientemente forte para gerar longos efeitos de ajustamento, não sei se
plenamente concretizados até as próximas legislativas.
Senão vejamos.
A reação
mais tumultuosa e desesperada foi a do próprio PSD de Passos Coelho. A projeção
de cataclismos inconfessáveis que a geringonça iria determinar que a nível
parlamentar esse PSD antecipou ocultou durante longo tempo a incapacidade de
compreender a nova situação política criada e de ajustar a ação política à nova
realidade. Compreensivelmente, esse PSD ressabiado contra o não êxito da
preparação da saída limpa e da gestão eleitoral que a governação de Passos Coelho
fez nesse período foi acompanhado pelos mais contundentes adversários da solução
política de Costa, então fortemente concentrados no Observador. Mas, à medida
que os sucessivos orçamentos da geringonça eram aprovados com a anuência de
Marcelo e a situação internacional ajudava, o tempo de não adaptação do PSD de
Passos Coelho começou a revelar-se incompatível com o pensamento da direita ideologicamente
mais liberal. Entretanto, a ascensão de Rui Rio e dos seus tempos políticos
mais distendidos (veremos se tão distendidos que acabarão por cair de maduros)
tendeu a complicar o que já era muito complicado nas hostes do PSD, sobretudo a
disfuncionalidade entre a base parlamentar e a da nova liderança.
A posição do
CDS-PP de Cristas é de explicação mais complexa. Embora tendo participado inicialmente
na denúncia da habilidade política de Costa, o CDS compreendeu mais depressa
que a coisa poderia durar. Mas o próprio estilo de Cristas é incompatível com discursos
mais virulentos de oposição. Vai apresentando algumas propostas como bem-comportada
líder de oposição, mostrou-se com a desgraça dos incêndios, mas verdadeiramente
o estilo de Cristas é o de fazer algumas viagens de comboio para mostrar o que todos
os utentes mais atentos já compreenderam há muito, o estado lamentável do
abandono que a via férrea foi votada em Portugal. Lembra-me a ingenuidade política
dos que em tempos de inflação acelerada gostam de ir para a saída dos mercados
mostrar dados da subida vertiginosa dos preços dos produtos essenciais, como se
isso fosse necessário. Tenho para mim que Cristas, ciente de que a margem de manobra
de captação de novos eleitores é limitada, apostou implicitamente na desagregação
interna do PSD para garantir alguns eleitores trânsfugas.
Como é óbvio,
com todo este contexto, não há ideólogo de direita mais liberal que não se passe
dos carretos. É incómodo perceber que há algum pensamento mas que não existem
intérpretes. Os ideólogos de serviço do Observador não escondem o incómodo e
tenho para mim que desejam mais que Rio se estatele a curto prazo do que a
geringonça se desmorone.
É claro que
no meio deste contexto há o projeto da Iniciativa Liberal, um programa liberal
e o desejo de combater o estado paternalista. Bom proveito. E mais recentemente
teremos o efeito Santana Lopes, com o Aliança. O tribuno do PSD tem as suas
senhoras de estimação e representará por certo algum capital eleitoral, o qual
irá sempre ter origem no eleitorado PSD-CDS. Não creio que tenha um efeito
propulsor de formação de novos eleitorados, por exemplo junto de população mais
jovem que normalmente não vota ou não se interessa pelas questões da política. Li
há dias, não me recordo quem é o patrono da ideia, de que Santana joga numa não
maioria absoluta do PS, nas dificuldades de reedição da geringonça e na captura
de um núcleo de eleitorado capaz de viabilizar a formação de um governo com o
PS. A Iniciativa Liberal acusa-o entretanto de furto de ideias programáticas,
mas há que convir que elas são tão gerais que o furto é compreensível, pois podem
ser entendidas como bem público da direita.
Não me
parece que Santana seja puxado para navegar em águas populistas. Quando muito
tenderá a ser um populista q.b. mas felizmente as causas favoráveis em Portugal
a visões populistas não têm ainda expressão forte, com exceção dos desvarios do
mundo do futebol.
Creio que o eleitor
de direita deverá sentir-se um pouco perdido. Se o contexto internacional continuar
a não trazer constrangimentos sérios, esse eleitor vai pensar duas vezes entre
escolher na barafunda das suas hostes ou dar um voto de alguma expectativa à
governação atual, esperemos que renovada do ponto de vista da acutilância
governativa. Quanto aos ideólogos do Observador sem terem cavalo que justifique
grandes apostas, tenderão por mais algum tempo a focar-se na crítica da
governação, órfãos de intérpretes para os seus desígnios mais vastos. Se essa
crítica for rigorosa não serei eu que os vai atingir por isso. Só espero que a
orfandade não lhes ofusque o rigor.
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