quinta-feira, 23 de agosto de 2018

LUCIDEZ E DIGNIDADE



(A família do José Afonso mostrou que está atenta ao mais profundo das convicções do ativista, resistente, compositor e artista. Não está disposta a entrar nisso de Panteão e até indicou um rumo para honrar verdadeiramente a obra do Zeca. Mas que mensagem de lucidez e dignidade!)

Os portugueses pelam-se por controvérsias e reivindicações em torno dos símbolos oficiais da Nação. O Panteão está entre esses símbolos. Quem deve ou não deve estar é uma questão que tem andado por aí, solenidade a toda a prova, mas ainda recentemente veio a saber-se que o Panteão tem sido um equipamento utilizado para gerar receita num depauperado Ministério da Cultura. Tudo isto é simbólico de um conceito muito formal de cultura, o que para mim é contraditório com o próprio conceito, mas isso levar-nos-ia demasiado longe.

Esta semana a Sociedade Portuguesa de Autores, com José Jorge Letria a tomar a palavra e a defender o argumento, veio à liça defendendo a ida dos restos mortais de José Afonso para o Panteão, invocando sobretudo a sua relação com Abril e a liberdade. Nestas coisas deveria ter-se perguntado se tal decisão estaria ou não em linha com o pensamento em vida do Zeca, com a sua maneira de viver e de estar no País. Aparentemente, a SPA desligou-se dessa importante referência.

A família do Zeca, num registo de grande lucidez e dignidade, veio corrigir a proposta, afirmando que a ida para o Panteão seria uma contradição com a maneira de pensar do compositor, enterrado por sua própria e livre vontade em campa rasa, em Setúbal. E não se ficou por aí. Veio defender que a melhor forma de honrar a obra e o legado do Zeca seria criar as condições para uma efetiva e segura preservação da música que ele sabia fazer, tratando de salvar todas as gravações conhecidas e disponíveis do autor. Ou seja, aparentemente uma preocupação que deveria ser mais relevante para a SPA do que a defesa do Panteão.

Benditos os que desaparecem e que as respetivas famílias mostram estar à altura do seu pensamento. Tudo o resto é acessório.

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