(O grande incêndio de Monchique, Silves e Portimão, grande
pela extensão de área ardida e pela duração, evidencia de novo que continuamos
a não ter como país um entendimento homogéneo e estabilizado do fenómeno e da
sua gravidade. Face a esta evidência, seria aconselhável que o
sistema de atores envolvido na sua abordagem tivesse um discurso que mostrasse
a necessidade de que é necessário caminhar para esse entendimento e não a
presumida convicção de que tudo está a caminhar sobre rodas.)
Todos os estudos existentes em matéria de risco
de incêndio mostravam que o risco, elevado, estava lá. A atipicidade do início
do verão deste ano ajudou e de que maneira (e ainda bem para nossa proteção) a
que esse risco permanecesse potencial e não tivesse confirmação. Mas a chegada
da vaga de calor, infernal, diga-se, sobretudo em algumas zonas do interior mas
também em algumas cidades do litoral (noites de 34º em Lisboa, por exemplo) foi
prevista com tempo e com rigor pelos serviços meteorológicos. Como seria de
esperar, o risco passaria de risco potencial para risco efetivo e assim
aconteceu, com maior expressão a partir da serra de Monchique, que reincidiu
nos trágicos acontecimentos de 2003. Este encadeamento de ocorrências mostra,
em primeiro lugar, que estamos hoje com um grau de conhecimento que não tínhamos,
criando condições para respostas mais atempadas às ocorrências. O que não é
despiciendo do ponto de vista do meu comentário.
Na altura em que escrevo, não há ainda (e não
é altura para tal face à gravidade da situação) uma indicação objetiva do que
terá provocado a ignição mãe de todo o processo. Sabe-se, entretanto, que a nível
nacional passámos por dias de elevado número de ignições, aparentemente
resolvidas sem grandes danos, com exceção das ocorrências de Monchique e, com
menor expressão, de Marvão. Isto significa para já que continuamos a evidenciar
comportamentos de risco incendiário, provavelmente em grande medida correlacionados
com o baixo nível de qualificação da população. Sabe-se ainda que a ocorrência
de Monchique mostrou de novo uma perigosa coexistência de uma situação de elevadíssimo
risco com o desenvolvimento de fatores climáticos de momento muito desfavoráveis
(a fúria do vento que parece querer rivalizar com a fúria do fogo).
Como não tenho qualquer especialização ou
conhecimento aprofundado de matérias de proteção civil e de combate a fogos florestais,
olho para estas coisas na perspetiva de um cidadão médio que busca informação que
lhe permita construir uma interpretação coerente do que se está a passar e, por
essa via, uma avaliação das condições reais de proteção oferecidas aos cidadãos.
Tenho insistido na ideia (praticamente ausente do comentário político e económico)
de que as novas condições de risco de fogos florestais estão a transformar
radicalmente as condições em que os cidadãos devem avaliar a atratividade das
condições de vida nestes territórios. É que face às condições de risco identificadas
e sobretudo face aos problemas e falhas do sistema de proteção civil, o risco
de morte e de danos materiais nesses territórios aumentou consideravelmente. Não
temos todos a mesma fleuma que revelava aquele residente irlandês numa aldeia
perto de Silves que dizia ontem ao jornalista de circunstância que enquanto não
podia regressar à sua habitação iria provavelmente até ao bar da aldeia beber a
sua cerveja e esperar que tudo passasse.
Ora, na perspetiva desse cidadão indiferenciado
que busca informação para uma interpretação coerente do que lhe entra pela casa
dentro pela televisão, pelos jornais ou pela internet, o que espanta é a mais
desregrada cacofonia de avaliações e registos sobre os acontecimentos de
Monchique. Pelo que se vai ouvindo, não é coisa que preocupe a nossa comunicação
social. Antes pelo contrário. Ela trabalha sistematicamente na exploração da dúvida.
Senão vejamos. Comecemos pela avaliação do
que realmente terá sido feito em matéria de limpeza e proteção florestal na
serra de Monchique. Como seria de esperar, lá apareceu a imagem de António Costa
e Eduardo Cabrita em junho a fazer a sua visita de reconhecimento à serra de
Monchique, assegurando-nos que desta vez as coisas necessárias estavam a ser feitas.
Mas há matéria no ar que permite ao cidadão interessado no assunto duvidar. Leio,
por exemplo, o que diz o Professor Xavier Viegas (no Observador, link aqui) e concluo que
o plano de execução das chamadas faixas primárias desenhado a partir de 2006 para
toda a Região está longe de ser concretizado, sobretudo a partir do momento em
que a responsabilidade do seu cumprimento passou para as autarquias. Intuo que
a relevância dessas faixas primárias será estruturalmente bem mais elevada do
que a limpeza das zonas em redor das habitações, o que não significa que estas últimas
não sejam necessárias. Ora busco informação e não tenho. Apanhei uma afirmação
da voluntariosa Presidente da Câmara de Silves que aponta para a sua
efetividade na área de Silves, mas em relação aos restantes municípios deparei
com um grande nevoeiro. Reflito nestas questões porque entendo que elas minam a
confiança dos cidadãos na democracia. Em vez daqueles “números” comunicacionais
preparados para mostrar ao cidadão que tudo rola sobre rodas, seria bem mais
importante a publicação de informação rigorosa sobre o grau de concretização de
limpeza das faixas primárias.
Passemos agora finalmente para a linha de combate.
A cacofonia de interpretações sobre o que está a passar-se impressiona qualquer
um. O Professor Xavier Viegas, em quem tenho a máxima confiança, diz por
exemplo que a não aplicação de produtos químicos no combate, com forte efeito
no não reacendimento, se deve provavelmente a uma avaliação errada de custos,
podendo pagar-se caro. Para complicar ainda mais, as associações dos bombeiros
profissionais e voluntários vêm à liça evidenciando a sua perplexidade sobre a
continuidade do incêndio apesar da fortíssima concentração de meios que está a
ser realizada. Não deixa de ser surpreendente que os profissionais e voluntários
envolvidos questionem a eficácia da abordagem ao fogo. Fruto da eterna escaramuça
dos bombeiros face às autoridades locais, regionais e nacionais da proteção
civil? Dúvidas técnicas quanto às técnicas de abordagem dos fogos? Procura de
protagonismo? Posicionamento para a captura de meios? Desvalorização da
gravidade do contexto meteorológico em que se produziu a ocorrência? Não sei o
que pensar e a minha incredulidade aumenta.
Reflexão final: a nossa cultura de não produção
de informação pública rigorosa sobre os resultados da decisão política a
qualquer nível de intervenção do Estado, combinada com a manipulação da estratégia
da dúvida por parte da comunicação social, produz um caldinho nada favorável à cidadania
apostada na valorização das estruturas democráticas. O que me preocupa.
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