quarta-feira, 8 de agosto de 2018

FOGO CRUZADO



(O grande incêndio de Monchique, Silves e Portimão, grande pela extensão de área ardida e pela duração, evidencia de novo que continuamos a não ter como país um entendimento homogéneo e estabilizado do fenómeno e da sua gravidade. Face a esta evidência, seria aconselhável que o sistema de atores envolvido na sua abordagem tivesse um discurso que mostrasse a necessidade de que é necessário caminhar para esse entendimento e não a presumida convicção de que tudo está a caminhar sobre rodas.)

Todos os estudos existentes em matéria de risco de incêndio mostravam que o risco, elevado, estava lá. A atipicidade do início do verão deste ano ajudou e de que maneira (e ainda bem para nossa proteção) a que esse risco permanecesse potencial e não tivesse confirmação. Mas a chegada da vaga de calor, infernal, diga-se, sobretudo em algumas zonas do interior mas também em algumas cidades do litoral (noites de 34º em Lisboa, por exemplo) foi prevista com tempo e com rigor pelos serviços meteorológicos. Como seria de esperar, o risco passaria de risco potencial para risco efetivo e assim aconteceu, com maior expressão a partir da serra de Monchique, que reincidiu nos trágicos acontecimentos de 2003. Este encadeamento de ocorrências mostra, em primeiro lugar, que estamos hoje com um grau de conhecimento que não tínhamos, criando condições para respostas mais atempadas às ocorrências. O que não é despiciendo do ponto de vista do meu comentário.

Na altura em que escrevo, não há ainda (e não é altura para tal face à gravidade da situação) uma indicação objetiva do que terá provocado a ignição mãe de todo o processo. Sabe-se, entretanto, que a nível nacional passámos por dias de elevado número de ignições, aparentemente resolvidas sem grandes danos, com exceção das ocorrências de Monchique e, com menor expressão, de Marvão. Isto significa para já que continuamos a evidenciar comportamentos de risco incendiário, provavelmente em grande medida correlacionados com o baixo nível de qualificação da população. Sabe-se ainda que a ocorrência de Monchique mostrou de novo uma perigosa coexistência de uma situação de elevadíssimo risco com o desenvolvimento de fatores climáticos de momento muito desfavoráveis (a fúria do vento que parece querer rivalizar com a fúria do fogo).

Como não tenho qualquer especialização ou conhecimento aprofundado de matérias de proteção civil e de combate a fogos florestais, olho para estas coisas na perspetiva de um cidadão médio que busca informação que lhe permita construir uma interpretação coerente do que se está a passar e, por essa via, uma avaliação das condições reais de proteção oferecidas aos cidadãos. Tenho insistido na ideia (praticamente ausente do comentário político e económico) de que as novas condições de risco de fogos florestais estão a transformar radicalmente as condições em que os cidadãos devem avaliar a atratividade das condições de vida nestes territórios. É que face às condições de risco identificadas e sobretudo face aos problemas e falhas do sistema de proteção civil, o risco de morte e de danos materiais nesses territórios aumentou consideravelmente. Não temos todos a mesma fleuma que revelava aquele residente irlandês numa aldeia perto de Silves que dizia ontem ao jornalista de circunstância que enquanto não podia regressar à sua habitação iria provavelmente até ao bar da aldeia beber a sua cerveja e esperar que tudo passasse.

Ora, na perspetiva desse cidadão indiferenciado que busca informação para uma interpretação coerente do que lhe entra pela casa dentro pela televisão, pelos jornais ou pela internet, o que espanta é a mais desregrada cacofonia de avaliações e registos sobre os acontecimentos de Monchique. Pelo que se vai ouvindo, não é coisa que preocupe a nossa comunicação social. Antes pelo contrário. Ela trabalha sistematicamente na exploração da dúvida.

Senão vejamos. Comecemos pela avaliação do que realmente terá sido feito em matéria de limpeza e proteção florestal na serra de Monchique. Como seria de esperar, lá apareceu a imagem de António Costa e Eduardo Cabrita em junho a fazer a sua visita de reconhecimento à serra de Monchique, assegurando-nos que desta vez as coisas necessárias estavam a ser feitas. Mas há matéria no ar que permite ao cidadão interessado no assunto duvidar. Leio, por exemplo, o que diz o Professor Xavier Viegas (no Observador, link aqui) e concluo que o plano de execução das chamadas faixas primárias desenhado a partir de 2006 para toda a Região está longe de ser concretizado, sobretudo a partir do momento em que a responsabilidade do seu cumprimento passou para as autarquias. Intuo que a relevância dessas faixas primárias será estruturalmente bem mais elevada do que a limpeza das zonas em redor das habitações, o que não significa que estas últimas não sejam necessárias. Ora busco informação e não tenho. Apanhei uma afirmação da voluntariosa Presidente da Câmara de Silves que aponta para a sua efetividade na área de Silves, mas em relação aos restantes municípios deparei com um grande nevoeiro. Reflito nestas questões porque entendo que elas minam a confiança dos cidadãos na democracia. Em vez daqueles “números” comunicacionais preparados para mostrar ao cidadão que tudo rola sobre rodas, seria bem mais importante a publicação de informação rigorosa sobre o grau de concretização de limpeza das faixas primárias.

Passemos agora finalmente para a linha de combate. A cacofonia de interpretações sobre o que está a passar-se impressiona qualquer um. O Professor Xavier Viegas, em quem tenho a máxima confiança, diz por exemplo que a não aplicação de produtos químicos no combate, com forte efeito no não reacendimento, se deve provavelmente a uma avaliação errada de custos, podendo pagar-se caro. Para complicar ainda mais, as associações dos bombeiros profissionais e voluntários vêm à liça evidenciando a sua perplexidade sobre a continuidade do incêndio apesar da fortíssima concentração de meios que está a ser realizada. Não deixa de ser surpreendente que os profissionais e voluntários envolvidos questionem a eficácia da abordagem ao fogo. Fruto da eterna escaramuça dos bombeiros face às autoridades locais, regionais e nacionais da proteção civil? Dúvidas técnicas quanto às técnicas de abordagem dos fogos? Procura de protagonismo? Posicionamento para a captura de meios? Desvalorização da gravidade do contexto meteorológico em que se produziu a ocorrência? Não sei o que pensar e a minha incredulidade aumenta.

Reflexão final: a nossa cultura de não produção de informação pública rigorosa sobre os resultados da decisão política a qualquer nível de intervenção do Estado, combinada com a manipulação da estratégia da dúvida por parte da comunicação social, produz um caldinho nada favorável à cidadania apostada na valorização das estruturas democráticas. O que me preocupa.

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