quinta-feira, 30 de junho de 2022

AINDA NO FUNCHAL

 


(Gostaria de vos falar com calma do cosmopolitismo cada vez mais acolhedor do Funchal, não da zona altamente concentrada e turistificada dos grandes equipamentos hoteleiros em direção ao Lido, com o monstro do novo Savoy a sugerir a questão, “alguma vez aquele capital fixo vai ser recuperado”, mas do centro da cidade e da zona velha, mas a força das circunstâncias políticas obriga-me a declinar esse prazer. Por maus motivos, e nada melhor do que a síntese de Manuel Carvalho para descrever a situação, o Governo está transformado numa associação de estudantes. Muitos de vocês leitores saberão o que me custa reconhecer essa evidência, mas acho que o devo fazer, embora a partir da amenidade do Funchal tudo tenha uma outra configuração.)

Peço muita desculpa, mas sempre fui claro nesta tomada de posição. Bem pode o jornalismo português encontrar em Pedro Nuno Santos uma alternativa para conduzir, sabe-se lá quando será, os destinos do Partido Socialista. E bem pode essa tenaz aposta acabar por criar no próprio e intrépido ministro esse imaginário, convencer-se que alguma vez o eleitor mediano de Portugal o conduzirá ao poder. Eu nunca acreditei nessa possibilidade porque essencialmente tenho uma conceção da governação que não se confunde com experimentações de poder pessoal. E isso não quer dizer de todo que seja um apoiante devoto e crítico de António Costa, antes pelo contrário. Mas a governação é uma coisa muito séria. O editorial de Manuel Carvalho é cru e incómodo, mas é assim que tem de escrever-se.

Talvez a decisão obtusa e aventureira de PNS, que alguém designaria de doença infantil de um certo esquerdismo, tenha contornos que este cidadão embrenhado em duas intervenções no 29ª Congresso da APDR e rendido à amenidade cosmopolita do Funchal desconhece e que talvez nunca venha a conhecer. Com a informação disponível, é óbvio que não se trata de qualquer erro de comunicação, mas antes de um ato calculado de rebeldia política interna. E que pelo facto de não ter sido simplesmente demitido gera nuvens de suspeição que atingem obviamente o primeiro-Ministro.

E fico-me por aqui pois a amenidade calorosa do Funchal exige que esteja menos amargo do que esta notícia sugere.

Até ao meu regresso.

NUM PAÍS DECENTE...

Num país decente o que ocorreu ontem e hoje, tendo por principais protagonistas Pedro Nuno Santos (PNS) e António Costa (AC) e por ator secundário Marcelo Rebelo de Sousa, não poderia nunca ocorrer ou, caso acidentalmente ocorresse, teria de ser objeto de explicações claras, aprofundadas e convincentes. Tudo foi vergonhoso do princípio ao fim, quer do lado de PNS ― que ou cometeu um erro clamoroso (o que parece improvável dadas as caraterísticas que se lhe reconhecem e dada a forma assumida como ontem passou pelos ecrãs de todos os canais televisivos) ou tentou entalar o primeiro-ministro e saltar fora de um governo que irá passar as passas do Algarve nos tempos que aí vêm (o que parece mais plausível mas poderá ter-lhe saído furado depois da conversa com Costa, determinando uma nova e agora humilde/humilhante passagem televisiva desculpabilizante) ― quer do lado de AC ― que teve de optar entre demitir o ministro (com riscos políticos enormes para o trajeto pessoal que tem definido) ou engolir um sapo (a desautorização de que foi alvo sem dela retirar as devidas consequências, mesmo que por um frio calculismo de assim o ir desgastando em termos sucessórios). Como quer que seja, a situação teve contornos gravíssimos em todos os planos mas aquele que privilegio é o da dimensão absolutamente ímpar da falta de dignidade revelada por qualquer das partes ― porque, na realidade, esta gente não se enxerga! Para eles, vale tudo menos tirar olhos no reino das guerras partidárias sem limites que se prestam a travar e das maiorias absolutas que injustamente obtêm e transformam em verdadeiros exercícios de poder absoluto! Sendo que o cidadão ingénuo, que hoje aqui quero encarnar sem mais, só poderá perguntar-se pertinentemente se é mesmo assim, se estas indecências e mentiras terão mesmo de ser as obrigatórias regras do jogo da real politik que inexoravelmente nos envolve...


quarta-feira, 29 de junho de 2022

DOIS LIVROS

Li por estes dias dois livros daqueles que nos ajudam a abrir a cabeça, no caso em relação ao racional (um qualificativo naturalmente hiperbólico, é bom de ver) que subjaz à lógica expansionista russa e largamente explica a sua recente deriva com a invasão da Ucrânia. Ambos os textos são fascinantes pela descoberta que proporcionam, revelando-se aliás largamente complementares, o primeiro relativamente mais denso e abrangente é assinado pelo historiador de Yale (Timothy Sneider) que acompanhou o excelente Tony Judt na sua doença degenerativa e com ele escreveu “Pensar o Século XX” e o segundo mais escrito ao jeito de ensaio é assinado pelo editor-chefe da revista “Philosophies” e especialista em história do pensamento russo Michel Eltchaninoff. Não cabe aqui explorar em detalhe o conteúdo das 367 mais 155 páginas que compõem as referidas duas obras. Mas sempre quero deixar alguns breves apontamentos especialmente sensibilizadores do interesse e qualidade das análises em presença.

 

Do livro de Sneider, escolho a sua criativa proposta de leitura da história do nosso tempo, traduzida, por um lado, numa política da inevitabilidade (“a ideia de que o futuro é apenas mais do presente, de que as leis do progresso são conhecidas, de que não há alternativas e de que por isso não há realmente nada que possa ser feito”, ou seja, “na versão capitalista americana desta história, a natureza criou o mercado, que criou a democracia, que criou a felicidade” e “na versão europeia, a história criou a nação, que aprendeu com a guerra que a paz era boa, e por isso escolheu a integração e a prosperidade”) e, por outro lado, numa política da eternidade (“enquanto a inevitabilidade promete um futuro melhor para todos, a eternidade coloca uma nação no centro de uma história cíclica de vitimização”, pelo que “o tempo já não é uma linha para o futuro, mas um círculo onde se regressa interessantemente às mesmas ameaças do passado”). E é assim que uma obra que se desenvolve em torno de seis dicotomias (individualismo ou totalitarismo, sucessão ou fracasso, integração ou império, inovação ou eternidade, verdade ou mentiras, igualdade ou oligarquia) nos explica que “aquilo que já aconteceu na Rússia é o que pode vir a acontecer na América e na Europa: a estabilização da desigualdade maciça, a anulação da política pela propaganda, a mudança da política da inevitabilidade para a política da eternidade”.

 

Mas o que mais importará acentuar será o facto de tudo quanto hoje nos abala nas afirmações e nos atos de Putin e dos seus acólitos surgir por ali devidamente equacionado e contextualizado. Por exemplo: “A Rússia foi o primeiro país a recorrer à política da eternidade, e os líderes russos protegeram-se a si mesmos e à sua riqueza exportando essa política. O oligarca-chefe, Vladimir Putin, escolheu o filósofo fascista Ivan Ilyin como guia.” E ainda mais: “Reanimado hoje em condições de desigualdade como política da eternidade, o fascismo serve aos oligarcas como catalisador de transições que se afastam da discussão pública e se aproximam da ficção política; longe da votação com sentido e próximas da democracia falsa; longe do Estado de direito e próximas dos regimes personalistas.” Com a Ucrânia a marcar presença bem visível no ideário que Putin explicitou em 2012: “Ao falar da Rússia como uma civilização, Putin referia-se a todos os que via como pertencentes a essa civilização. Em vez de falar do Estado ucraniano, cuja soberania, integridade territorial e fronteira eram oficialmente reconhecidas pela Rússia, Putin preferia imaginar os Ucranianos como um povo disperso na vasta extensão que ele definia como território russo, ‘dos Cárpatos até Kamchatka’, e, portanto, um elemento da civilização russa. Se os Ucranianos eram apenas mais um grupo russo (como ‘os Tártaros, os Judeus e os Bielorussos’), então o Estado ucraniano era irrelevante, e Putin, como líder russo, tinha o direito de falar pelo povo ucraniano.” Citando o artigo de Putin: “Vivemos juntos há séculos. Juntos, triunfámos na mais terrível das guerras. E continuaremos a viver juntos. E aos que querem dividir-nos, só posso dizer uma coisa: esse dia nunca virá.” E mais, e mais, e mais, com as políticas anti-gay da Rússia, a Eurásia, o “relativismo estratégico”, o objetivo de destruição da UE e dos EUA, a ciberguerra e a invasão russa da Ucrânia em 2014 (“guerra híbrida) em planos de destaque, tudo numa longa e aprofundada digressão que só pode ser recomendada para uma visita a merecer o devido foco.

 

Passando ao ensaio de Eltchaninoff, e como atrás já sublinhei, o facto é que ele encaixa como uma luva na investigação de Sneider. Da sua introdução: “Destaca-se cada vez mais claramente uma doutrina que já há vários anos, ainda que atabalhoadamente, se adivinhava. Tal como a personagem de Putin, inescrutável e imprevisível, trata-se de uma doutrina complexa. Porém, depois de também nós termos lido e relido os clássicos do pensamento russo, depois de termos questionado comentadores informados e atores da vida intelectual russa, depois de termos dissecado os discursos de Vladimir Putin desde a sua ascensão até à Presidência, há uma imagem que emerge. Essa doutrina organiza-se em vários níveis: com base numa herança soviética assumida e num falso liberalismo, o primeiro nível é o de uma visão conservadora; o segundo, uma teoria da ‘via russa’; o terceiro, um sonho imperial inspirado em pensadores eurasiáticos. Tudo sob o signo de uma filosofia com pretensões científicas.” Que termina do seguinte modo: “De caráter híbrido e mutante, essa doutrina promete-nos a todos um futuro turbulento”. Como já estamos a vivenciar no momento presente, sempre na expectativa de que o pior possa ser evitado.

 

Em brilhantes páginas, o autor fundamenta a sua explanação através do tratamento de questões tão centrais como aquelas que sintetizo nestas sete telegráficas notas: (i) “soviéticos acima de tudo” (citando Putin: “acima de tudo, deve reconhecer-se que a queda da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século”, uma queda que sublinha ter afetado vinte e cinco milhões de cidadãos soviéticos, de etnia russa, que se encontravam fora das fronteiras da nova Rússia), embora menos por crença na ideologia marxista-leninista do que por uma “lealdade sem mácula” a uma convicção patriótica, a um princípio de cultura militar e ao papel institucional da polícia política (com inclusão do projeto putiniano de União Eurasiática); (ii) uma falsa veste liberalizante (Kant, Pedro, o Grande, e a filosofia do judo), já que “não é mais do que uma mera faceta do modo como aborda os problemas, uma forma de tranquilizar os ocidentais enquanto espera que eles cometam os primeiros erros que lhe permitirão surpreende-los”; (iii) os amores filosóficos (com Ivan Ilyin como principal referência) e a viragem conservadora (incluindo “o deslizamento da defesa dos valores familiares tradicionais para a homofobia”, no quadro de “uma diatribe antimoderna e antiocidental”); (iv) a “via russa” explicitada por Putin no “discurso mais importante da sua vida” (18 de março de 2014) que o leva a um raciocínio luminoso (“como a Rússia se recusa a cumprir as ordens de um mundo unipolar e homogeneizador, como deseja salvaguardar o seu caminho específico, é então impedida de influenciar os seus vizinhos, é empurrada para um beco sem saída, é isolada, é marginalizada” e “deve daí em diante defender a sua vontade de seguir ‘uma via que lhe é própria’ e reivindicar o direito de ser ouvida e respeitada na sua diferença”); (v) o sonho eurasianista (a Eurásia, “um mundo geográfico à parte, cujo centro é a Rússia”), com o “guru” Aleksandr Dugin a escrever quase premonitoriamente que “[à Ucrânia ocidental], não poderá nunca encarnar um Estado” e “só lhe resta tornar-se uma zona folclórica da identidade ucraniana, mas sem qualquer independência política”; (vi) as formas que poderão estar em causa no “novo império”, afinal uma espécie de “imperialismo à la carte” (“invoca a nostalgia da URSS, dos princípios religiosos comuns, da Rússia, da língua russa, do projeto eurasianista consoante as circunstâncias...”) que nunca abdica também de uma componente de “apologia da guerra”; (vii) uma ideologia para a Europa e para o mundo, com duas partes distintas (a defesa e afirmação do “mundo russo” e a liderança do movimento conservador na Europa, devendo o sentido deste ser encarado como “contrário à homossexualidade, ao ateísmo, ao cosmopolitismo, à internet e qualquer expressão de criatividade equiparada à desordem”).

 

Concluo, portanto, com uma vivíssima recomendação das duas obras acima citadas, as quais ganham em ser lidas em termos mais ou menos simultâneos ou sequenciais. Porque, como digo, elas nos fornecem perceções e dados objetivos e factuais capazes de nos fazerem sair das vulgatas do bom e do mau para que vão sendo encaminhados os cidadãos deste “mundo imundo” de que o bem está praticamente ausente e de que o mal, para ser adequadamente denunciado e combatido, tem de ser mais bem conhecido e melhor compreendido.

 

(Agustin Sciammarella, http://elpais.com e Fernão Campos, http://ositiodosdesenhos.blogspot.pt)

terça-feira, 28 de junho de 2022

UMA CERTEZA NO PRINCÍPIO DA INCERTEZA

 


(Confesso que nos últimos tempos tenho visto poucas edições do Princípio da Incerteza na CNN Portugal, com Alexandra Leitão, António Lobo Xavier e José Pacheco Pereira, moderados por Carlos Andrade. Alguma imprevisibilidade de horário e sobretudo o dia, domingo, já a pensar na semana de trabalho seguinte e regra geral a deitar-me cedo explicam essa reduzida assiduidade da minha parte. No Funchal, cada vez mais cosmopolita, e com pouco tempo para pensar no blogue, arranjei uns minutos para analisar o que parece resultar deste momento do programa depois da saída de Ana Catarina Mendes.)

Em poucas palavras, o que marca fundamentalmente esta edição do Princípio da Incerteza é a “certeza” que Alexandra Leitão e a significativa melhoria de qualidade do programa graças à capacidade de intervenção da agora deputada da Assembleia da República representam.

Claro que também penso que a saída de Alexandra Leitão do Governo foi mal explicada. Não me quero aventurar em interpretações fantasiosas sobre o que de impensável para um cidadão normal passa frequentemente pelo mundo da política partidária. Até posso dar de barato que esse facto poderá não ter tido qualquer significado.

Agora, o que me parece resultar claro da qualidade e autoridade com que Alexandra Leitão se passeia pelo programa, sem qualquer inferioridade ou inibição face aos pesos pesados Pacheco Pereira e Lobo Xavier, como aliás acontecia, por vezes, com Ana Catarina Mendes, é que temos Mulher para grandes voos políticos e poder de decisão não lhe falta.

Dou comigo a pensar que entre as personalidades da governação PS, que pensam naturalmente, os ou as mais novas em horizonte de longo prazo, pós António Costa, não haverá ninguém com o perfil de Alexandra Leitão. Não faço a mínima ideia se a personagem tem ou não ambição política para mais largos voos. As Marianas, as Anas, os Fernandos, Nunos ou Duartes que se cuidem, pois ou muito me engano ou está aqui a nascer uma Mulher, uma Política de grande nível.

Cara Alexandra, bastaria ouvir a sua posição sobre a decisão do Supremo Tribunal americano sobre o aborto para me convencer. Que firmeza, que clareza, que contundência! É assim que entendo a política.

NA BAVIERA, MAIS CALMA QUE PEITORAIS?

(Pierre Kroll, https://www.lesoir.be) 

(Patrick Blower, https://www.telegraph.co.uk) 

Para sermos justos, todos teremos de convir que o chamado “Ocidente” tem exibido alguma firmeza e unidade no tocante ao enfrentamento da bárbara agressão russa à Ucrânia. O que não significa, todavia, que tal enfrentamento não vá ocorrendo sem a manifestação de várias contradições inter-nacionais, por muito que relativamente secundárias e até agora significativamente levadas de vencida por processos negociais mais ou menos complexos mas que se saldam por atrasos e/ou inconsequências numa reação que muito ganharia em ser mais atempada e/ou estruturada. A reunião do G7 na Baviera foi a mais recente prova disso mesmo já que, bonitas e até sinceras proclamações à parte, a aguardada nova e mais dirigida geração de sanções não chegou a ver a luz do dia.

TEMIDO OU NÃO

(cartoon de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt

Marta Temido poderá ter atingido o seu prazo de validade política, coisa que só António Costa materializará quando melhor lhe aprouver e lhe der jeito (que o mesmo é dizer: ou não lhe provocar grande mossa). Adalberto Campos Fernandes, por seu lado, entende que chegou a sua hora de falar (“não podemos entreter problemas” é cáustico quanto baste para com aquilo que parece considerar ser uma inação fundamental do governo). Já Marcelo continua a carregar a sua cruz, decorrente da maioria absoluta que nunca lhe passou pela cabeça ser possível; na fase atual da sua cura de adaptação opta por algum seguidismo em relação a Costa, não sem se dispensar de meter a sua pequena dose de veneno. O jogo está, assim, numa empatada pausa, de que só sairemos quando as falhas do SNS voltarem novamente ao de cima e de modo insuscetível de mais disfarces ou cosméticas ― porque, como escrevia João Vieira Pereira no seu editorial de Sábado, “vai chegar o dia em que os beijinhos já não chegam”...