(imagem interior da Cappella Palatina)
(Já no aconchego protetor das nossas coisas e fazendo de novo companhia a esta massa de livros que me rodeia, enquanto aprecio a dimensão exuberante dos dois liquidambares que compõem a perspetiva da varanda do salão-escritório de trabalho em que passo tantas horas, recupero de uma oferta siciliana que não estava programada – não foi apenas limoncello que trouxemos na bagagem mas um COVID siciliano à maneira. De mal o menos, não pode dizer-se que se tenha apresentado com muita dureza e assim tem sido, um pouco fanhoso e encatarrado, dá para trabalhar, ma non troppo, e a SNS 24 funcionou na perfeição, sem esperas ou delongas, código praticamente imediato para o teste de confirmação do autoteste realizado. Seguindo as regras, no dia 9 de junho estarei de novo em condições de livre circulação, podendo assim acrescentar ao meu curriculum um COVID siciliano com sabor a limoncello.)
Não irei aqui dissertar sobre a primeira viagem organizada desde a origem que fiz, primeira e talvez a única, já que cheguei à conclusão que sou demasiado indisciplinado para esse tipo de viagem, o que não significa de modo algum desconsideração ou menor apreço pelas pessoas do grupo em que nos integramos. Não deu por isso para uma rápida digressão sobre os ambientes de Scicli em que a série do Comissário Montalbano era filmada, recriando uma Vigata inexistente. Em viagem individual teria sido fácil essa adaptação de percurso, em viagem organizada é impossível, até porque em grupos já com idade avançada e condições físicas muito diferenciadas a entidade que organiza confronta-se com uma série de problemas e controlos, dos quais não irei aqui falar, por proteção e respeito dos membros do grupo.
Já conhecia parte da Sicília em viagem de viatura de aluguer a partir de Nápoles, essa Nápoles que historicamente alguns pretenderam integrar sem grandes resultados no conceito das duas Sicílias, porque Sicília singular e personalizada só há uma. Nesse contexto, o conhecimento de Catânia, a passagem por Agrigento, o Vale dos Templos, a Vila Romana del Casale, a medieval Erice sobranceira sobre o porto de Trapani, a visita às joias arquitetónicas de Palermo permitiram-me consolidar uma perspetiva mais estruturada da singularidade Siciliana.
Considerando que a riqueza patrimonial de lugares como Taormina, o Vale dos Templos junto a Agrigento e a Vila Romana del Casale junto a Piazza Armerina e a Caltanisseta e a própria Erice junto a Trapani valem por si, espantando por exemplo que o vale dos Templos tenha sido local de implantação grega de uma população de cerca de 200.000 almas, a minha leitura da Sicília organiza-se essencialmente em torno do confronto Catânia versus Palermo. Esta ideia foi para mim o principal resultado desta viagem, uma vez que conhecia Catânia apenas à distância, vista das fraldas do Etna, que continuava a fumegar incessantemente.
O confronto Catânia-Palermo é sugestivo pois ao maior dinamismo e juventude da primeira corresponde o maior conservadorismo e declínio aristocrático de Palermo. Pairando sobre este confronto, existe uma Sicília agrícola de grande expressão, com um grau apreciável de tratamento e aproveitamento do solo, com citrinos, amêndoa, olival e vinha explorados até à exaustão.
Historicamente, compreendi finalmente a importância dos Normandos (cristianizados) na construção da singularidade siciliana, em que as influências grega, romana, cartaginesa, árabe, bizantina, aragonesa, espanhola dos Bourbons parecem coexistir ainda hoje. Esta importância é tanto mais notável quanto a presença normanda foi inferior a um século. O estado de obra em permanência das principais autoestradas sicilianas ilustra bem de que modo a singularidade siciliana enfrenta as duras condições da perifericidade no Estado italiano, que ainda está muito longe de poder ser entendido como uma nação.
Embora Catânia me tenha surpreendido fortemente, os meus amores Sicilianos vão naturalmente para Palermo e para as suas ambiências. A Cappela Palatina (de construção normanda em 1130 com arquiteto árabe) é uma joia localizada em pleno Palácio Normando (hoje sede do Parlamento regional siciliano) constitui o melhor exemplo da complexidade cultural siciliana que a influência normanda conseguiu imprimir, afinal num período de tempo de permanência bastante reduzido. Vale a pena visitar, tamanha é a profundidade de símbolos de coabitação cultural que ela evidencia, não esquecendo que foram artesãos gregos e bizantinos que Rogério II trouxe para Palermo para construir os mosaicos que tanto nos espantam.
E para terminar, a joia da Catedral de Monreale (1184), talvez um dos melhores exemplos da arquitetura Normanda na Sicília, incorporando elementos e influências normandos, árabes, bizantinos e clássicos, vem trazer de novo razões históricas profundas para a singularidade e personalidade sicilianas.
Enquanto organizo memórias e recupero forças, deixo-vos com um disco notável - CHIAROSCURO - que é um pouco como me sinto nesta ressaca, da pianista de origem russa Zlata Chochieva, com um originalíssimo diálogo entre Mozart e Scriabine. Simplesmente fabuloso.
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